Transmitindo super-poderes

Uma perspectiva sobre o poder e a propriedade

Os super-poderes dos babies de Skottie Young

Invento e proponho um faz-de-contas bobo, uma ficção, uma fantasia, algo não real, não verdadeiro, você só precisa entender o sentido do que eu vou escrever, não importa que não seja verdade.

<ficção> Vamos imaginar que toda pessoa tem algo que podemos chamar de super-poder. Não que todos tenham um poder singular, não!, muitos poderes se repetem, muitas pessoas tem o mesmo poder, e algumas tem muitos poderes. Mas ninguém tem todos os poderes que existem. Cada pessoa, no entanto, tem um super-poder universal, comum a todos os seres humanos, o poder de ceder voluntariamente — e apenas voluntariamente — seu poder a outra pessoa.

Agora vamos imaginar que você sabe pintar, ou programar, ou conversar com outros seres humanos, ou que você toca trombone de vara como Rita Payés1, e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!

A primeira coisa que me vem a cabeça quando penso nessa ficção é: se tivéssemos de fato esses poderes nós criaríamos um circuito livre de transmissão de poderes ou nós mercantilizaríamos nossas competências? Eu acho que nós criaríamos um mercado e venderíamos os nossos super-poderes e que essa seria a forma preferencial de transmissão de super-poderes, dada a força e a influência do capitalismo na vida e na visão humana — constatar isso me dá uma enorme tristeza! </ficção>

Por outro lado, no mundo real e não fictício, na chamada realidade (para quem acredita nela), independente do modo como cada um responde a essa sandice que eu inventei, a cultura de desenvolvimento de software tem uma atitude claramente anticapitalista diante de uma situação parecida a que eu criei.

A ideia de (software livre || código aberto) não é de nenhum modo uma ideologia comunista e na verdade aplicações open source estruturam todo o rentabilíssimo mercado de clouding computing e o futuro da transição digital; não por outra razão, e eu não canso de repetir, a IBM comprou a Red Hat, qualquer sistema Windows hoje em dia pode abrigar um subsystem Linux dentro de si e a Azure depende fundamentalmente do Linux. E pra se ter uma ideia da importância estrutural do open-source pra economia de uma sociedade digital, eu vou citar apenas quatro projetos open-source importantíssimos para toda infra-estrutura de clouding e Big Data, vinculados a uma única entidade, a Apache Foundation: Apache HTTP server (naturalmente), Apache Hadoop e Apache Spark, Apache Kafka.

A cultura de desenvolvimento de software está visceralmente articulada ao sistema capitalista, é verdade, mas é um mundo onde a propriedade privada não entra. Tudo é de todos e o fato de que tudo seja de todo mundo é decisivo pra que os softwares open-source sejam o que são hoje, um paradigma de desenvolvimento e uma certa atitude diante do código que se escreve e das inteligências que terão acesso a esse código. Nada, absolutamente nada, do que o poderoso mercado e o Capital podem comprar ou fabricar consegue superar a força e a magnitude do trabalho colaborativo. (Como se nos faltasse provas de que a colaboração é o melhor) Não falta dinheiro a Bill Gates para contratar os melhores engenheiros de software do mercado.. e durante muito tempo ele certamente teve os melhores que o dinheiro pode comprar. Mas como superar a força de uma coletividade voluntária quase-anônima e torrencial? (Mesmo que apenas uma parcela dos desenvolvedores do kernel Linux seja efetivamente voluntária, não é essa a questão)

A força quase inconsciente e inadvertida dessa colaboração — que tem alimentado na internet uma vontade de ensinar cada vez mais abundante e alegre, e de disponibilizar ferramentas para os outros gratuitamente — me faz sonhar e imaginar o que poderíamos fazer se, ao invés de criar um mercado, nós resolvêssemos (distribuir || transmitir || repassar) nossos super-poderes e nossas competências de forma igualmente aberta (não mercantilizada).. tendo a amizade como o elemento que nesse sistema não-mercantil cumpre função semelhante à do dinheiro no sistema mercantil.

Juro, meu coração vagabundo transborda e não aguenta pensar nessas coisas!


1 “Vamos supor agora que você sabe (pintar || programar || conversar com outros seres humanos || que você toca trombone de vara como Rita Payés) e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!”

Eu gosto muito da lógica booleana e ela é muito importante na computação, incluir a estranheza da sintaxe de um cálculo de booleanos no texto é um recurso enfático (inspirado por && que me faz lembrar) a necessidade, comum a Wittgenstein e Foucault, de repetir suas ideias uma e outra vez, como recurso enfático, mas, sobretudo, como abordagem pedagógica e modo peculiar de edição e apresentação do pensamento.


Tudo isso me faz lembrar também o micro-conto El mundo, de Eduardo Galeano, que está no Libro de los abrazos.

Un hombre del pueblo de Neguá, en la costa de Colombia, pudo subir al alto cielo.
A la vuelta contó. Dijo que había contemplado desde arriba, la vida humana.
Y dijo que somos un mar de fueguitos.
—El mundo es eso —reveló— un montón de gente, un mar de fueguitos.
Cada persona brilla con luz propia entre todas las demás.
No hay dos fuegos iguales. Hay fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco que llena el aire de chispas. Algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman; pero otros arden la vida con tanta pasión que no se puede mirarlos sin parpadear, y quien se acerca se enciende.

Capacidade para o mal

Podemos nos equivocar sobre as impressões que temos de nós mesmos? É certo que é possível se iludir, mas as ilusões são na maior parte das vezes simbólicas, constructos complexos articulados a outros símbolos. As impressões costumam ser intuições, que embora inevitavelmente também se articulem ao universo simbólico, têm algo de cru e imediato; algo que, de tão direto, parece dispensar mediações. O que pode significar para uma pessoa sentir que tem dentro de si a capacidade (disposição, know how) para o mal? E como ela deve reagir a essa parte de si mesma, se a gente pode chamar assim? A repressão parece a única saída, pois não nos parece tolerável deixar que o mal em nós se expresse e se manifeste em ações. Mas reprimir o que precisamente?

Essa cena de Killing Eve é desconcertante, mas revela algo que todos os que assistem a série já sabem.

Eve tem seus momentos de Dexter.

A cena revela a naturalidade de Eve ao redor de um monte de coisas que nós abominamos: sangue, mutilações, lacerações, assassinatos, tortura, violência extrema, crueldade. No entanto, ninguém diria por isso que Eve é má, ao contrário. Ela parece doce, atenciosa, sensível, empática até, a despeito dos seus interesses mórbidos. Eve é apenas alguém que está a vontade com um dos aspectos de si mesma que a maioria de nós simplesmente reprime. A coisa não é nada simples, mas já dá para pressentir que a maldade tem outra conotação no contexto no qual o desejo de esfaquear outro ser humano é visto como algo compreensível. Continua sendo uma tarefa hercúlea convencer as pessoas a ter uma visão das ações humanas para além do bem e do mal. Hoje em dia, entretanto, o cinema, as séries podem nos familiarizar com o anormal e assim tornar nosso juízo mais plástico para compreender o que está fora do nosso campo de visibilidade (o campo normativo).

É preciso clicar em CC para ver as legendas. O Jesus de Willem Defoe e Martin Scorsese tem Lúcifer dentro de si. E o que diz Lúcifer a Cristo? Ele lhe diz ele é o filho de Deus e o próprio Deus. O medo da verdade!

Mesmo que tenhamos mapeada a maldade nesse quadro de forças plásticas que regem a vida, mesmo que possamos tratá-la com a objetividade dos Caça Fantasmas, a experiência individual da maldade raramente escapa às coordenadas da moral, isto é, raramente passa sem punição às transgressões, sem culpa e dívida. O que significa que sentir a capacidade para o mal é ter um inimigo dentro de si, ter dentro de si alguém que está o tempo todo sendo combatido. Esqueçamos por um momento a suposta pretensão de unidade do Eu, vamos trabalhar com uma ficção, <fiction> vamos supor que nossa subjetividade é uma pluralidade de Eus (egos). Seria como se cada pessoa tivesse dentro de sua cabeça tantos Eus quanto tinha Fernando Pessoa, ou como aquele personagem de Fragmentado.

Shyamalan, sempre polêmico.

Se um desses Eus é o inimigo, isso quer dizer que parte de nossa própria energia está mobilizada na repressão das manifestações do inimigo em nossas próprias ações. Não há melhor analogia que a de um sistema operacional. Ter o inimigo dentro de si é como ter um processo (uma aplicação) que drena boa parte da capacidade computacional de uma máquina, impedindo que os outros processos possam utilizar todos os recursos computacionais. Como se cada Eu fosse um Processo competindo por recursos computacionais.

O uso do processador está em níveis normais até que eu lanço um processo que consome quase todos os recursos do sistema.

A analogia é útil, mas apaga justo a presença de Lúcifer, do inimigo. Ela apaga a dimensão simbólica de ter dentro de si não um processo pesado, mas o próprio mal. O mal é sempre um outro, outra entidade que nos possui e que domina nosso corpo, enfraquece nossa vontade até tornar-se senhora de nossas próprias ações. Enquanto o mal só se reconhece como outro, somos sempre vítimas de uma entidade mais forte que nós mesmos. Mas e se nós mesmos somos o mal? E se não houver nenhuma entidade externa, mas apenas nossas próprias manifestações espirituais, quero dizer, aquelas que nós consentimos em ser seus donos e aquelas que nós atribuímos a outros que não nós mesmos. As fontes do mal são sempre externas para os moralistas, pois eles jamais se reconhecem como fontes do mal, o mal nunca nasce deles.

Reconhecer apenas fontes externas do mal é quase sempre cultivar o auto ódio, é alimentar esse conflito interno entre diferentes Eus. Mas este é apenas um cenário fictício, pois nosso marco teórico estabelece que o Eu é uma unidade e não uma pluralidade, não pode haver mais de um. </fiction>

A capacidade para o mal, essa presença precariamente represada, busca pretextos, motivos para se materializar em ações. E é bom que, mais uma vez, a ficção torne real um pensamento, ou o apresente ao seu modo. Dexter apresenta situações nas quais se vê o pretexto para expressar o mal, o irrecusável convite para usar o mal como uma ferramenta. O problema é que quem usa o mal como ferramenta sempre acaba corrompido pelo seu poder. Como Smeágol e como Isildur antes dele. O mal não é uma ferramenta, é um senhor, mestre orgulhoso e cruel, que não aceita senão completa submissão. Não terminei de ver Dexter, vi pouco mais de uma temporada, na verdade, mas a série atrai por normalizar certas estranhezas que parecem muito comuns. Estranhezas que Killing Eve também tem no radar, e também Sharp Objects, The Sinner, Mr Robot, True Detective, The Servant, a lista é quase interminável. Essas séries, claro, abordam esse aspecto de modo muito mais elaborado que Dexter.

O que fazer com o mal dentro de si? O que fazer com a inconfessável empatia que às vezes podemos sentir pelos que praticam as piores ações, a indeclarável certeza de que somos como eles, de que não há nenhum homem pior que nós mesmos? Esse não é um problema teórico, mas um problema prático (ético, terapêutico).


O terror tem se tornado o único gênero que consegue dar conta daquilo que está mais-além da cegueira normativa, mais além do espaço de estabilidade constituído pelas normas. As possibilidades são infinitas, isto é, o normal estabiliza e nos fazer sonhar com a determinação, mas o lado de fora é inesgotável (indecidível). Fiz uma lista com alguns filmes de Terror ricos em sentidos e perspectivas, que abordam de forma incomum temas inesperados, em contextos inesperados, como: It follows, It comes at night, Aniquilação.


A todo momento ideias de Jung e Nietzsche são encenadas nos capítulos de The Sinner. E essas ideias são fundamentais na construção de toda a história, especialmente na segunda e terceira temporadas. A sombra é uma delas, aliás, a sombra e o abismo.

Filosofia e Ficção

Por uma razão simples a ficção não pode ter um papel central na ciência nem na filosofia científica que temos adotado: elas estão centradas na verdade e em sua eficácia causal. A ficção não tem nenhum compromisso essencial com a verdade. Alguém poderia até dizer que algumas das experiências ficcionais mais significativas fazem da verdade um mero fantoche no jogo complexo de articulações em nada redutíveis ao verdadeiro. Pensem, pra ficar num exemplo a mão, nas muitas séries que amamos. Isso não significa que o ficcional não tenha nenhuma função na filosofia. Desde o gênio maligno de Descartes temos usado ficções para muitos propósitos, no entorno da fundamentação da ciência moderna. Até mesmo na filosofia analítica há celebres usos ficcionais, como a Terra Gêmea de Hilary Putnam. O próprio Richard Rorty, cada vez mais crítico da filosofia analítica, apontou magnificamente o papel central da ficção na cultura literária. Ainda assim, a variedade desses usos se distingue radicalmente dos usos de Wittgenstein, que sublinham a irredutibilidade do sentido e colocam a verdade num lugar secundário.

Quando Wittgenstein nos convida a imaginar pessoas que jogam xadrez sem o rei, outras que determinam o preço de madeira de um forma completamente disparatada, tribos que não tem mais que alguns pares de palavras, seu propósito não é trazer à luz alguma verdade. O propósito desses usos ficcionais é fazer ver o sentido de nossos próprios jogos, de nossas próprias normas, usando como instrumento regras e práticas estranhas (aliens seria a palavra mais adequada) aos nossos parâmetros. Seu propósito (ou o principal deles) é mostrar o óbvio, isto é, aquilo que estando sempre diante do nossos olhos, nós não conseguimos ver.

Para Wittgenstein, o óbvio é o mais difícil de notar e isso diz algo sobre aquilo que é mais geral num sistema de crenças. A generalidade dos aspectos mais centrais do nosso sistema lança sobre eles um véu que nos impede de enxergá-los. Como a visibilidade dos fatos naturais é um assunto que ronda minha pesquisa, quando tive que escolher a epígrafe da minha tese, decidi por um fragmento de Borges que, embora apontasse no sentido oposto, estava na mesma direção. Um pedaço de Deutschem Requiem que há tempos me fascina justo porque parece fazer daquilo que está sempre diante de nós não o fiador da própria racionalidade e do sentido, como julgava Wittgenstein, mas a própria semente da loucura:

Yo había comprendido hace muchos años que no hay cosa en el mundo que no sea germen de un Infierno posible; un rostro, una palabra, una brújula, un aviso de cigarrillos, podrían enloquecer a una persona, si esta no lograra olvidarlos. ¿No estaría loco un hombre que continuamente se figurara el mapa de Hungría? 

De todo modo, a filosofia de Wittgenstein se distancia decisivamente da tradição ocupada com a verdade e com seu arcabouço lógico/formal e inaugura, nas entranhas dessa própria tradição, onde então ele se encontrava, uma abordagem que privilegia o sentido em relação à verdade. Isso não significa que a verdade fosse para ele desimportante, de modo algum, mas sua preocupação passa a centrar-se nos efeitos bombásticos de práticas para a determinação das regras e não o contrário, conforme pensava a tradição logicista da qual ele vinha. Seu olhar muda de uma perspectiva lógica para um enfoque etnológico.

Entretanto, as atividades de dar razões, de justificar a evidência, chegam a um limite — mas o limite não são certas proposições que nós reconhecemos imediatamente como verdadeiras, como se fosse um modo de ver de nossa parte; é nosso agir que se encontra na base do jogo de linguagem.

Wittgenstein, Sobre a certeza, § 204

Wittgenstein radicalizou a ideia de sentido de Frege, perdida na crítica de Russell ou simplesmente atrapalhadamente confundida na mistura entre sentido e significado (sense e meaning ou Sinn e Bedeutung). Mas nada disso interessa. O que interessa na ficção é a possibilidade de imaginar o mundo de forma radicalmente diferente — ficção e imaginação são ideias que vão juntas. Uma mudança radical num sistema de crenças pode resultar da imersão na experiência ficcional. Uma conversão. Os acordos tem limites e quando topamos com esses limites só podemos transpô-los deixando de ser quem somos. Abandonando alguma identidade, a identidade de certos acordos. E do abandono dessa identidade sairíamos como o rei, convencido por Moore:

Os homens tem acreditado que podem fazer chover, por que não poderia ser o caso de um rei que acreditasse que o mundo começou junto com ele? E se Moore e esse rei se encontrassem e discutissem, Moore poderia realmente provar que sua crença é a única verdadeira? Eu não digo que Moore não poderia converter o rei à sua perspectiva, mas essa seria uma conversão de um tipo especial; o rei seria levado a ver o mundo de um modo diferente.

Wittgenstein, Sobre a certeza, § 92

A ficção nos ajuda a transpor os limites da nossa cegueira, da cegueira imposta pelas nossas próprias normas. A cegueira que nos impede de superar desacordos e entender para além dos limites das nossas próprias regras — e das normas que nos confinam a uma identidade. A normatividade clínica e jurídica, como nos conta Foucault, é quem produz a identidade das sexualidades periféricas. É ela que transforma o que era estritamente moral em jurídico, portanto sujeito não à censura (moral) mas à interdição (institucional). Vejam o caso de Alan Turing. Se nós fossemos outros talvez pudéssemos ter evitado o final de Alan Turing. Talvez não tivéssemos sidos seus verdugos, mas fomos. Somos seus carrascos. E ele é nosso herói, não? Lutou com a inteligência contra o nazismo, sua espada era a matemática. Nós matamos nosso herói, Sófocles não teria pensado melhor. Sem a ficção — apegados a um desejo de controle e determinação impulsionado pelo crescimento exponencial na capacidade de produzir, armazenar e processar dados — dificilmente conseguiremos nos libertar do desejo de dominar, caminharemos cegamente em direção a esse abismo, sonhando um dia realizar algo semelhante àquilo que apresenta Minority Report (Philip Dick mais uma vez).

O ritmo das transformações de nossa era é inédito na história da humanidade, as coisas mudam numa velocidade que nada consegue acompanhar. As instituições e os processos deliberativos que elas exigem, processos de legitimicação e normatização, não conseguem acompanhar as mudanças determinadas em grande parte pela transformação tecnológica. A única coisa que acompanha, ou melhor, que alimenta esse ritmo é o mercado. São as economias dos nossos países crescimentistas e a necessidade de trabalho. É preciso haver produção, é preciso inovação, mais produtividade, automação completa, pois essas são as regras da competição nas economias modernas, nos lembra David Harvey. No mais, todo o resto segue atrasado, sendo arrastado pela locomotiva de mudanças aparentemente inescapáveis. Precisamos mudar o ritmo, escolher nosso próprio ritmo, não meramente aceitar o ritmo imposto de fora — mas também precisamos saber mudar. Sem a ficção (sem a imaginação) é difícil criar o sentido necessário para transformar nossas visões de mundo, e assim estaremos condenados a preservar a estabilidade de uma visão de mundo que recebemos sem questionar (daí porque a tendência a confirmação). Condenados a rejeitar a mudança (a acreditar em ideias conservadoras), a ter uma visão histórica estreita, maniqueista, talhada para atrair pessoas inclinadas à segregação e não à miscigenação. Necessitamos a mudança e a transformação para não estar em nossas mentes como um animal que não consegue mudar de pele, impedido de reacomodar as novas dimensões do nosso espírito. A exigência do nosso tempo é a de que sejamos capazes de derrogar nossas identidades e nos transformar num ritmo que nenhum outro ser humano jamais se transformou, e isso significa passar por um período sombrio de incerteza. Um período de transformações angustiante, apavorante, diferente da idílica conversão do rei persuadido por Moore. A transformação é um período de instabilidade porque a perda das certezas, dos eixos que orientam nossas visões de mundo, é um processo traumático, conturbado, de desorientação e, como Safatle não cansa de lembrar (com Freud), de desamparo. Não há garantias de que há um outro lado, de que um dia chegaremos a ser outra coisa, um outro tão estável e equilibrado como isso o que somos hoje, isso que defendemos e preservamos da mudança. É uma aposta, é como sair navegando pelo oceano a espera de encontrar algum novo lugar.

Não por outra razão eu quis escrever ¿Hemos ido a la Luna?, para discutir os efeitos da alteração nos eixos de nosso sistema de crenças. Sem imaginação, arriscamos perder-nos nessa passagem entre visões de mundo, incapazes de repor o sentido que se foi junto com as certezas fundamentais. Coincidentemente, quando eu estava escrevendo esse texto, Mia Couto deu uma entrevista pro Nexo em que dizia algo central pra tudo isso que eu esbocei precariamente aqui. Ele disse: “Eu tenho medo é de que as crianças não sejam capazes de criar suas próprias histórias”.

Bem, todo esse texto é apenas uma maneira de antecipar e registrar uma mudança. Quero usar a ficção, o cinema, a literatura, como instrumento principal de reflexões filosóficas. Por isso os textos ficarão cada vez menos comprometido com a verdade, com a realidade, com os nossos acordos e mais comprometidos com a imaginação, com a ficção e com a realidade do irreal. A excentricidade é uma margem do rio da loucura e nenhuma grande conversão pode se dar sem margear esse rio (esse margear não é um capricho, é uma necessidade lógica exigida pelas conversões, portanto não é acidente que seja assim).

Racionais por definição

O crânio de um homem moderno e de um neanderthal.

As formas mais primitivas de falsificacionismo sustentavam que um contra-exemplo poderia efetivamente pôr abaixo uma teoria. Eu já citei por aqui os curiosos expedientes empregados pelos cientistas e elencados por Lakatos para dissolver os contra-exemplos e anomalias que poderiam, em tese, falsificar uma teoria.

For instance, if a planet does not move exactly as it should, the Newtonian scientist checks his conjectures concerning atmospheric refraction, concerning propagation of light in magnetic storms, and hundreds of other conjectures which are all part of the programme. He may even invent a hitherto unknown planet and calculate its position, mass and velocity in order to explain the anomaly.

Os princípios gerais da ciência, como as regras e proposições de uma linguagem, são como lentes: nós enxergamos através delas. Por isso é extrema ingenuidade pensar que na ciência, como na vida cotidiana, qualquer experiência contrária será o bastante para nos fazer abandonar nossas convicções mais profundas.

Imaginem que vocês estão andando pela rua e de repente veem um boi voado, flutuando em pleno ar (perdão, mas eu queria uma imagem bem extravagante). Diante disso, quase ninguém estaria disposto a esquecer as leis da física e a incompatibilidade desse evento com o modo de organização da nossa experiência que, aliás, não é mistério nem para uma criança de 5 anos. Na certa vocês buscariam alguma explicação, suporiam truques, ilusões; um mágico, David Copperfield, pode estar por perto, nunca se sabe! Talvez, por fim, desistiriam de buscar a explicação — mas mesmo então não estariam ainda dispostos a desacreditar as leis da física. É certo que pode haver alguém que prontamente abandone tais crenças, acreditando que o boi é manifestação da vontade de Deus. Mas pense: que tipo de experiência poderia fazer essa pessoa abandonar a sua crença nesse Deus que agora se manifesta na presença de um boi voador? Você verá que o embaraço é o mesmo em que se mete alguém que tenta pensar as circunstâncias que nos levariam a abandonar as leis da física. Nós podemos sempre transformar um evento patentemente desajustado aos padrões mais elementares da nossa organização racional numa anomalia que não os compromete enquanto princípios de organização. E assim, fazer conviver as mais absurdas incongruência e a mais sincera fé na racionalidade.

(É claro que eu sei que há respostas razoavelmente satisfatórias em filosofia da ciência para essa tendência ao ad hoc. A dificuldade de se chegar a um acordo sobre que tipo de experiência poderia contrariar um teoria e como isso acontece não é o que eu quero destacar aqui. Na curso da ciência as coisas se transformam, ainda que vagarosamente. Antigas experiência agora são admitadas, outras, preteridas. Mas na vida cotidiana, isso é quase impossível. Não há um equivalente a comunidade científica definido e julgando padrões para aceitar uma teoria ou outra.)

O que me deixa angustiado é pensar que talvez todo o “projeto humano” seja uma espécie de crença bem mascarada, porém, inútil. Não é que eu precise ter garantias de que seja possível “triunfar” ou pelo menos dar bons passos em direção à resolução dos problemas centrais da nossa espécie, a questão é outra: será que somos capazes de identificar limites que ponham em cheque nossos modelos? Ou será que somos como cientistas hipostasiando planetas nunca vistos (ou inexistentes) para explicar desvios de órbitas? Ou como os crentes bradando o eterno mantra: “Deus escreve certo por linhas tornas” (que é, no final das contas, uma tautologia)? Ou seja, será que somos capazes de reconhecer a tempo que estamos indo em direção a um abismo ou estaremos sempre inventando novos meios de nos convencer de que estamos no caminho certo, para não arcar com o custo das mudanças?

Talvez Schopenhauer estivesse certo e nós sejamos meramente uma vontade cega e incontrolada que impulsiona nossos projetos e estimula nossas máscaras. Sempre que penso nisso, sinto um enorme fastio, como quem contempla outro alguém num trabalho penoso e manifestamente vão. Talvez sejamos racionais só por definição.