O cavalo de Turim e as certezas da nossa razão

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Imagem do excêntrico filme Cavalo de Turim, de Béla Tarr

Contam que a loucura de Nietzsche manifestou-se num instante preciso. Se é verdade ou não, eu não sei, mas mesmo que o caso não tenha sido um episódio de loucura, ele tem seu valor simbólico. Nietzsche andava pela rua quando viu um cavalo sendo açoitado pelo seu dono. Sua reação foi a de abraçar o pescoço do cavalo aos prantos — para protegê-lo dos golpes, supomos. É comum pensar na loucura como um processo, de tal sorte que vê-la representada assim, como uma espécie de conversão, não deixa de exercer um fascínio. Sempre que eu imagino alguém ficando louco, imagino alguém que pouco a pouco vai deixando de dizer coisas com sentido. Imagino alguém que gradativamente vai dizendo coisa sem sentido até que, de repente, absolutamente nada do que ele diz faz sentido. Isto é, minha imaginação concentra sua atenção no dizer, nas expressões linguísticas.

Mas as pessoas também agem como loucas. O caso de Nietzsche, por exemplo, seria a loucura manifesta em ação, na prática. Mas dizer é também um fazer, um agir, de sorte que a distinção perde sua força.

Bem, toda essa história na verdade era apenas um preâmbulo de uma consideração: Wittgenstein distinguia conhecimento e certeza. Trocando em miúdos, digamos que para ele o conhecimento era sempre verdadeiro ou falso, enquanto que a certeza era algo sempre verdadeira — e seu contrário, a falsidade, era sem sentido. A proposição “o copo está sobre a mesa” pode ser verdadeira ou falsa, mas ao dizer  “meu nome é Leonardo” não estou dizendo uma verdade, mas uma certeza: algo que tenderíamos a reconhecer como necessariamente verdadeiro e cuja falsidade parece sem sentido. Qual é a diferença? A diferença é que isso que eu tomo como necessariamente verdadeiro não pode ser falso. Como assim? Pergunte-se: que situação falsificaria meu enunciado? Que fatos me fariam acreditar que eu não sou quem penso que sou, que esse não é meu nome? Se eu pudesse tomar essa proposição como falsa, estaria provavelmente à beira da loucura. Enquanto a proposição “o copo está sobre a mesa” você pode imaginá-la como verdadeira e também como falsa, eu não posso imaginar o que seria o falsidade da proposição “meu nome é Leonardo”. Agora imagine que você está andando pela calçada, dando passos firmes e sem hesitação. O que te faria hesitar? Bem, você hesitaria se, por exemplo, pensasse que um abismo fosse se abrir à sua frente. Nesse sentido, a condição do seu caminhar firme e seguro é que você mantenha, a cada passo, isso que vamos chamar de a crença de que um abismo não se abrirá a sua frente. Cada passo seu é um testemunho de que você não acredita que o chão se abrirá. Mas essa é uma crença verdadeira ou uma certeza? Se ela for uma crença verdadeira isso significa que a cada passo você “sabe” que o chão não se abrirá: isto é, você acredita estar justificado na sua crença. Se ela for uma certeza, então não há nenhuma justificação e você apenas age como se isso fosse verdadeiro. Qual é a diferença? Algum dia pode acontecer que um abismo de fato se abra a sua frente, mas a mera possibilidade de que isso aconteça não é o suficiente para abalar sua confiança enquanto você caminha pela calçada. Você pode andar pela calçada refletindo sobre essa possibilidade, sem que seus passos se detenham, porque você não confunde a possibilidade e a realidade. Se você confundisse, começaria a agir como um louco. É sempre possível que o chão se abra a sua frente, mas alguém que se detivesse na rua paralisado pela mera possibilidade de que se abra um abismo adiante de si seria como Nietzsche abraçando o cavalo. Isto é, seria alguém que exibe em seu comportamento a atitude de quem já não faz parte da mesma comunidade simbólica que nós, pois suas ações estão orientadas por eixos diferentes. Enquanto para nós a firmeza do chão é, não um conhecimento justificado, mas uma certeza, para ele cabe dúvida sobre essa questão.. e quem pensa que é real a possibilidade de que o chão se abra a seus pés no instante seguinte não pode fazer outra coisa senão se deter. Certas ações parecem indicar que cruzamos o limiar entre a razão e loucura. Mas será que existe de fato uma razão, no singular? Ou apenas razões desconhecidas? Há limites entre a excentricidade e a loucura?

PS. Não lembro onde eu li a história de Nietzsche e do cavalo, mas acho que Milan Kundera se refere a ela em Insustentável leveza do ser.

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