Camus e o compromisso

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Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo tinha sido preso e que todas as noites se deitava no chão do seu quarto para não gozar de um conforto de que havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu próprio seria capaz? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes, um dia, e será a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída, ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode. Acaso, no fim de contas, não o quererá bastante? Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós durante a vida inteira. Mas sabe porque somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, arrumar a homenagem entre o copo de água e uma gentil amante, nas horas vagas, em suma. Se algo nos impusessem, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, é o morto de fresco que nós amamos nos nossos amigos, o morto doloroso, a nossa emoção, enfim, nós próprios.

Albert Camus, A queda

Este fragmento de A queda sempre exerceu forte impacto sobre mim. O exame de uma constituição ética é um forte traço da literatura e filosofia camusiana, mas considero que só neste livro ele apresentou explicitamente uma generosa abordagem da relação entre ética e compromisso. Neste espaço por muitas vezes tratei de estabelecer uma ordem hierárquica que impunha um fundamento como pressuposto do desenvolvimento político, ora, o que é mais além do comprometimento público que mantém a engrenagem que coordena a luta pelas conquistas democráticas?

Malgrado sua posição ateísta, Camus sempre conservou um quadro de referências religiosas que tornam sua obra um terreno de coexistências paradoxais, místicas. Talvez porque atribuísse à força da imagem do calvário de Cristo, sua capacidade de converter todos os homens em iguais sob um princípio, o princípio do perdão. Se a ação de Jesus não logrou produzir exemplos, perseverou no imaginário dos homens através dos séculos, como símbolo do único gesto humano capaz de realizar as pretensões políticas de igualdade: o compromisso.

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