Formas de interação com máquinas e seres computacionais
O terminal é uma interface interativa, lógica e sintática, uma forma de interação entre um ser humano e um computador, uma máquina computacional. Há interfaces não interativas, que são meros displays. Uma definição genérica e abrangente, pois eu não sou dos que aposta na precisão, eu prefiro a vagueza — entender o vago é importante, porque significa imaginar o vago. Um terminal permite que um humano possa usar recursos computacionais sem saber programar, apenas sabendo operar os seus comandos básicos. O curioso é que depois de um tempo, quando você se familiariza com muitos comandos e parâmetros de um terminal, dá pra dizer que ao final do processo você aprendeu a programar. Mesmo que o interpretador de comandos (outro nome para terminal) não permita que você construa ou execute scripts, ainda assim alguém poderia dizer que saberia construí-los, escrever num papel a sequência de comandos. Mas a possibilidade de construir essas rotinas só ficaria interessante num interpretador de comandos que trouxesse embutido laços e condicionais. Daí tudo pareceria o suficiente para que possamos identificar sua sintaxe como a de uma linguagem de programação, no mesmo sentido em que se diz que o sed ou awk são linguagens de programação.
Os espanhóis usam a palavra “terminal” para se referir também aos smartphones. Isso é muito bom porque diversifica o entendimento do que é uma interface, ou seja, desse instrumento com o qual instruímos os computadores e os levamos a fazer o que queremos! Um smartphone executa uma interface interativa gráfica que é imensamente complexa, embora não exija nem mesmo o domínio de comandos simples. Você só precisa saber como manipular o sistema usando os dedos como cursor sobre um painel tátil. Interfaces gráficas são construídas a partir do paradigma de programação orientada a eventos. Uma interface que responde a comandos é em certo sentido muito menos complexa que uma interface construída para responder a eventos. O kernel do Linux — só o kernel — tem mais de 20 milhões de linhas de código, não parece nada simples. E não é. — Mas em certo sentido é. O Linux é simples e não é. Não importa o uso que se faça de uma interface gráfica, o mero uso não te faz capaz de programar, porque não supõe que você saiba usar uma sintaxe, não há sintaxe nas interfaces gráficas!
Saber programar significa ser capaz de desenvolver suas próprias ferramentas para usar os recursos computacionais sem depender de (muitas) ferramentas desenvolvidas por outros, sem precisar de (muitos) softwares alheios. — E quem se importa de usar ferramentas desenvolvidas por outros num mercado tão diverso e acessível como o mercado de software? Esse mercado não é para todo mundo, apesar da popularidade dos smartphones. Terminais baratos conectam às pessoas à internet, aos seus serviços e ferramentas, mas não importa saber programar!
Além de nos abrir à possibilidade (inútil) de saber programar, os terminais conservam o que se pode chamar simplicidade inteligente (a inteligência tecnológica que idolatramos está visceralmente ligada à complexidade, daí porque é difícil notá-la no simples). Terminais não são formas primitivas de interação, são formas fundamentais de interação. (O software nasce antes dos terminais, mas é somente com os terminais que a dinamicidade da computação começa; com as possibilidades abertas pela programação com linguagens de alto nível e não em linguagem de máquina.) Nossa imaginação sonha com androides, formas de inteligência e máquinas de computação cuja interação é inteiramente simbólica, linguística. Como as máquinas dos Jetsons (desenhos dos anos 60). As máquinas da Apple ou da Amazon, que respondem ao comando de voz, já são suficientemente impressionantes, imagine então a ideia de discutir com um androide — que tem a acesso a conteúdos (dados?) numa velocidade inconcebível para nós — sobre os fatos do mundo ou sobre os poemas de E. E. Cummings, ou de Celan. A complexidade de uma interação natural é o sonho dos criadores de máquinas de computação.
Talvez um dia sejamos capazes de criar máquinas computacionais com as quais conseguiremos interagir sem precisar de comandos, utilizando a voz, mas não como se tais dispositivos fossem máquinas e sim seres vivos, como nosotros, com uma subjetividade que nos desconcerta e enche de mistério, como a de Ava. Máquinas como aquelas imaginadas por Ian McEwan em Máquinas como eu, como seu Adão. Escravos criados já sem dignidade, por serem coisas (como Ava, mais uma vez), de quem não fosse esperado sequer o anseio por dignidade, pois construídos para servir. Existem seres que são ao mesmo tempo inteligentes e abnegadamente servis?
O fascínio da humanidade por tiranos parece nos dizer que sim! Mas essa discussão não vem ao caso, o caso é que formas sofisticadas e elaboradas de interação com as máquinas computacionais são o que fazem os terminais parecerem primitivos. As formas de interação mais sofisticadas, segundo os nossos sonhos, já não serão sequer com máquinas, pois talvez já não convenha chamá-las assim. Como é possível que queiramos criar consciência a partir da Inteligência Artificial e ainda assim tratá-las como em coisas (Ex Machina)? Estes novos seres reivindicarão uma identidade humana (Ghost in the shell), assim como macacos reivindicam dignidade e respeito nos filmes da série O planeta dos macacos. Talvez reivindiquem a própria exclusividade existencial, como David de Ridley Scott (em Prometheus e Alien: Covenant), ou muitos em Westworld, ou talvez sejam nossos guardiões, como em I am Mother e Raised by wolves, pais e mães postiços. Mas isso é o que contam nossos sonhos, na literatura, no cinema.
O meio do caminho entre o sonho e o presente são os painéis táteis parecidos com os de Minority Report. O grafeno como realidade tecnológica torna possível que quase qualquer superfície se torne um painel, mesmo as não-planas. Não é a mesma coisa que os painéis holográficos de Minority Report, mas é uma mudança de paradigma. Ainda assim, estão no marco de uma interação gráfica, não lógica. Você não precisa conhecer e dominar comandos.
A interação gráfica é para muitas coisas indispensável, para outras, saber usar o terminal é muito mais vantajoso. Contudo, aprender a usar o terminal leva tempo e o resultado não é necessariamente útil, isto é, não pode ser empregado na maior parte dos usos cotidianos de máquinas computacionais; numa sociedade com o ritmo acelerado tudo que leva tempo deve ser preterido em favor de formas mais imediatas e úteis de uso. Uma criança de poucos anos consegue manipular uma interface gráfica, um sistema operacional como o Android ou o iOS. Manipular um terminal é mais complicado, embora bastante promissor; nós aprendemos outro ritmo e, sobretudo, aprendemos a desconfiar de uma certa visão do desenvolvimento e do progresso. O terminal nos ensina o papel da simplicidade e é surpreendente que a justo a tecnologia possa ser um lugar de aprendizado sobre a simplicidade, pois o dogma do desenvolvimento parece nos fazer olhar os sistemas interativos sintáticos (lógicos) como tecnologias obsoletas, superadas, outdated.
Nesse mundo enfeitiçado pela complexidade, os terminais mantêm nossos pés no chão, pois ainda que sejam igualmente sujeitos a updates constantes, conservam um senso de simplicidade e autonomia criativa que não podemos ter em relação às interfaces gráficas (e às interfaces androides, que são geneticamente máquinas); e fazem lembrar o preço da complexidade num mundo de máquinas tão potentes que nos dão a impressão de que nada tem custo e já não precisamos nos preocupar com alocação de recursos computacionais (talvez somente nas operações de grande porte, como as realizadas no entorno de Big Data). Isso significa que apontam também para outro dogma atrelado à complexidade: a abundância (contraposta a um senso de suficiência) que nos leva à atitude perdulária com a qual temos devastado o planeta. Não são poucas as lições!
Quais são as formas de computadores, como eles se apresentam hoje em dia? Eu não saberia dizer, penso que eles estão por toda a parte, mas além dos nossos ordinários PCs (ou Macs), há notebooks, smartphones (que hoje em dia devem ser a forma mais comum de computador), mas também televisões (smart TVs), consoles de vídeo games. Todas os tipos dependem de interfaces gráficas, e essas interfaces são produtos dos mais desejados, e experiências de usuário das melhores que existem — das melhores que o dinheiro pode comprar.
Mesmo que os softwares formem também um mercado, que movimenta muito dinheiro, como se pode ver, parte fundamental de tudo que compõe as interfaces gráficas, as únicas que a maioria dos usuários de computador sabe utilizar, funciona num regime no qual a ideia de propriedade está banida. Exemplos ilustres de tecnologias que não estão no jogo da propriedade: o Linux-based Android, sistema da Google, talvez o sistema mais usado no mundo, dada a dianteira assumida pela ubiquidade dos smartphones; pacotes de compiladores fundamentais, como o gcc; o Apache, servidor open-source mais utilizado no mundo. Estudos estimam que 80 ou 90% dos softwares são open source. Por que será que no reino do software a ideia de propriedade é tão indesejada e nociva, a ponto de gerar manifestos em favor do código aberto? Essa pergunta poderia ser respondida tanto por Richard Stallman quanto por Kropotkin.
Her já é manjado como referência a essa exploração cultural (especialmente literária e cinematográfica) da psicologia androide. O que significaria a presença de uma inteligência de outro tipo, e quais seriam as consequências sociais dessa presença? Uma amiga me recomendou recentemente esse filme, que vai na mesma linha.
Recentemente li dois livros excelentes sobre androides, Máquinas como eu, de Ian McEwan (que já mencionei algumas vezes por aqui) e Klara and the Sun, último livro de Kazuo Ishiguro. Os dois livros são fantásticos, cada um ao seu modo — o livro de Ishiguro tem algo de polêmico e, talvez, não inteiramente palatável para muitos gostos. Eles partem de perspectivas impensáveis há algumas décadas, não apenas pela evolução recente dos algoritmos de Inteligência Artificial, mas, sobretudo, pela internet e pelo desenvolvimento estrutural dos computadores. Contudo, Philip Dick ainda conserva algo especial porque sua compreensão dos androides em Androides sonham com ovelhas elétricas? parece elegantemente articulada ao próprio paradigma de Alan Turing, ao eixo fundamental do jogo da imitação: só será inteligente um ser que puder imitar indiscernivelmente o comportamento humano, ou seja, que conseguir superar o Turing Test.
A extração de grafite em Minas e na Bahia, o Brasil tem a maior reserva de grafite do mundo, será mais uma fonte de problemas ambientais futuros.