Linux: o mais importante projeto da humanidade

Tux, o famoso mascote do Linux

Antigamente eu argumentava com qualquer pessoa que não admitisse a superioridade do Linux como sistema operacional (SO), tendo em conta todos os seus aspectos. Hoje em dia eu ainda discuto por isso, mas agora, saber o que uma pessoa acha do Linux equivale a estabelecer uma medida do que ela conhece de informática! Porque em 2023 o mundo é bem diferente do que era em 2013, muita coisa mudou desde então. Em 2013 você ainda podia achar que Windows era não apenas um sistema preferível — o que ainda é uma opção perfeitamente razoável —, como também um SO melhor e mais importante, dada a sua posição no mercado de SO, o seu market share. Hoje em dia esse ainda é um critério importante, e o Windows sempre será o rei dos desktop/notebooks, mas novos dispositivos surgiram (smartphones e tablets) e tomaram a liderança no mercado de SO, impondo um sistema linux-based, o Android. Se o principal argumento para afirmar a importância do Windows/Microsoft e o caráter coadjuvante do Linux era esse, já faz bastante tempo que ele está outdated.

Dados sobre o mercado de sistemas operacionais, Statcounter

No que diz respeito propriamente ao Linux o mais importante é: embora a gente tenha se acostumado a vê-lo sob a perspectiva da sua posição num mercado — o mercado de sistemas operacionais — ele é muito, muito mais do que isso. O Linux não é uma propriedade, não é um produto ou uma mercadoria, ele não tem dono e nem está a venda em nenhum lugar. O Windows sim é um produto e uma mercadoria, algo que pertence a um mercado. Quem quiser pode obter um sistema Linux de graça em múltiplas fontes; você pode, por exemplo, tirar onda com os seus amigos e instalar o Linux desenvolvido pelo CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire). Se o Linux não está a venda e não é uma propriedade colocá-lo num mercado, junto a outros sistemas que são efetivamente produtos e mercadorias, é apenas uma maneira de simplificar e fazer as pessoas entenderem coisas parecidas que, no entanto, são fundamentalmente diferentes. O Linux é o mais importante projeto da humanidade, um projeto que já é vitorioso, mas que ainda é apenas a semente de coisas nem sequer imaginadas. Ele representa a retumbante vitória da colaboração sobre a competição, e por meio dessa vitória entendemos o que poderemos fazer se conseguirmos efetivamente suplantar os dogmas da competição e da propriedade.

Antes de continuar, só uma nota. Em 2023 já não dá mais pra não reconhecer a importância do Linux sem trair desconhecimento sobre aspectos fundamentais da infraestrutura da sociedade digital, sem entender o papel das nuvens, dos containers, do Docker, da Kubernetes, sem entender a importância de tudo isso para a mudança de paradigma que se conhece pela sua designação publicitária: transformação digital.

O Linux é a ponta de lança de uma ética da colaboração, de uma rede de práticas da qual ele participa como carro chefe, mas que não se esgotam nele. Por exemplo, é possível baixar e usar de graça frameworks de Machine Learning como Tensorflow ou Keras, porque o código deles está aberto e disponível no Github. (Github, aliás, que a Microsoft comprou.) A prática de abrir o código para outras pessoas, de não transformá-lo em mercadoria, é dominante nos campos de atuação e pesquisa ligados a informática. Um estudo da Linux Foundation estimou que 80% a 90% dos softwares são software livre, de código aberto. O que significa que as pessoas tendem não a vender (fechar), mas a compartilhar o código que escrevem e que o software aberto venceu a disputa com o software proprietário, dando assim uma mostra do impacto do que se pode fazer quando abrimos mão da ideia de propriedade.

Isso não quer dizer que Linus Tovalds seja um revolucionário, que eu saiba nenhuma das figuras centrais para a história da informática (hardware e software) era alguém especialmente orientado a perspectivas revolucionárias — de von Neumann passando por Dennis Ritchie. Mas isso não significa que não possa haver algo de verdadeiramente transformador em práticas quase anônimas de colaboração, de trabalho orientado a deixar uma herança para os outros seres humanos (e não para si mesmo).

Eu sou dessas pessoas de coração mole que veem o sucesso de um trabalho colaborativo dessa dimensão e pensam: “caralho, o que a gente faria se vivêssemos num mundo onde a colaboração fosse de fato a disposição dominante, ao invés da competição?”, eu já quero pensar numa ficção ética que nos mostre o que poderíamos fazer, como seríamos muito melhores. Mas não é preciso olhar para o futuro para ver o significado desse trabalho, somos animais que se ajudam e Kropotkin sabia disso no começo do século passado, quando escreveu Ajuda Mútua: fator de evolução. O que me entusiasma em especial é pensar que essa prática, que essa ética, vai se espalhar mesmo que a ciência seja o braço direito do capitalismo. Isto é, ainda que os centros de pesquisa, a indústria e todos os financiadores do desenvolvimento de software sejam predominantemente entidades que visam o lucro e atores no sistema capitalista, a prática da colaboração como prática standard de um mercado tão importante tem a capacidade de moldar práticas mesmo fora desse campo de atuação fundamental para a sociedade e a economia digital. Talvez essa seja uma ilusão minha, uma ingenuidade e uma fantasia da minha cabeça, mas eu gosto de pensar que as ficções, e o sentido que elas carregam, são mais importantes que a verdade. E que mesmo o verdadeiro precisa antes ser imaginado para que possa se tornar real. E é por isso que o Linux é o mais importante projeto da humanidade.


Precisamos agora que o cinema, a literatura, a música, que todas as artes saibam imaginar esse mundo onde a colaboração é o eixo da vida humana, como viveriam essas pessoas? O que elas fariam, como agiriam? Como o mundo delas seria significativamente diferente do nosso?

Transmitindo super-poderes

Uma perspectiva sobre o poder e a propriedade

Os super-poderes dos babies de Skottie Young

Invento e proponho um faz-de-contas bobo, uma ficção, uma fantasia, algo não real, não verdadeiro, você só precisa entender o sentido do que eu vou escrever, não importa que não seja verdade.

<ficção> Vamos imaginar que toda pessoa tem algo que podemos chamar de super-poder. Não que todos tenham um poder singular, não!, muitos poderes se repetem, muitas pessoas tem o mesmo poder, e algumas tem muitos poderes. Mas ninguém tem todos os poderes que existem. Cada pessoa, no entanto, tem um super-poder universal, comum a todos os seres humanos, o poder de ceder voluntariamente — e apenas voluntariamente — seu poder a outra pessoa.

Agora vamos imaginar que você sabe pintar, ou programar, ou conversar com outros seres humanos, ou que você toca trombone de vara como Rita Payés1, e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!

A primeira coisa que me vem a cabeça quando penso nessa ficção é: se tivéssemos de fato esses poderes nós criaríamos um circuito livre de transmissão de poderes ou nós mercantilizaríamos nossas competências? Eu acho que nós criaríamos um mercado e venderíamos os nossos super-poderes e que essa seria a forma preferencial de transmissão de super-poderes, dada a força e a influência do capitalismo na vida e na visão humana — constatar isso me dá uma enorme tristeza! </ficção>

Por outro lado, no mundo real e não fictício, na chamada realidade (para quem acredita nela), independente do modo como cada um responde a essa sandice que eu inventei, a cultura de desenvolvimento de software tem uma atitude claramente anticapitalista diante de uma situação parecida a que eu criei.

A ideia de (software livre || código aberto) não é de nenhum modo uma ideologia comunista e na verdade aplicações open source estruturam todo o rentabilíssimo mercado de clouding computing e o futuro da transição digital; não por outra razão, e eu não canso de repetir, a IBM comprou a Red Hat, qualquer sistema Windows hoje em dia pode abrigar um subsystem Linux dentro de si e a Azure depende fundamentalmente do Linux. E pra se ter uma ideia da importância estrutural do open-source pra economia de uma sociedade digital, eu vou citar apenas quatro projetos open-source importantíssimos para toda infra-estrutura de clouding e Big Data, vinculados a uma única entidade, a Apache Foundation: Apache HTTP server (naturalmente), Apache Hadoop e Apache Spark, Apache Kafka.

A cultura de desenvolvimento de software está visceralmente articulada ao sistema capitalista, é verdade, mas é um mundo onde a propriedade privada não entra. Tudo é de todos e o fato de que tudo seja de todo mundo é decisivo pra que os softwares open-source sejam o que são hoje, um paradigma de desenvolvimento e uma certa atitude diante do código que se escreve e das inteligências que terão acesso a esse código. Nada, absolutamente nada, do que o poderoso mercado e o Capital podem comprar ou fabricar consegue superar a força e a magnitude do trabalho colaborativo. (Como se nos faltasse provas de que a colaboração é o melhor) Não falta dinheiro a Bill Gates para contratar os melhores engenheiros de software do mercado.. e durante muito tempo ele certamente teve os melhores que o dinheiro pode comprar. Mas como superar a força de uma coletividade voluntária quase-anônima e torrencial? (Mesmo que apenas uma parcela dos desenvolvedores do kernel Linux seja efetivamente voluntária, não é essa a questão)

A força quase inconsciente e inadvertida dessa colaboração — que tem alimentado na internet uma vontade de ensinar cada vez mais abundante e alegre, e de disponibilizar ferramentas para os outros gratuitamente — me faz sonhar e imaginar o que poderíamos fazer se, ao invés de criar um mercado, nós resolvêssemos (distribuir || transmitir || repassar) nossos super-poderes e nossas competências de forma igualmente aberta (não mercantilizada).. tendo a amizade como o elemento que nesse sistema não-mercantil cumpre função semelhante à do dinheiro no sistema mercantil.

Juro, meu coração vagabundo transborda e não aguenta pensar nessas coisas!


1 “Vamos supor agora que você sabe (pintar || programar || conversar com outros seres humanos || que você toca trombone de vara como Rita Payés) e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!”

Eu gosto muito da lógica booleana e ela é muito importante na computação, incluir a estranheza da sintaxe de um cálculo de booleanos no texto é um recurso enfático (inspirado por && que me faz lembrar) a necessidade, comum a Wittgenstein e Foucault, de repetir suas ideias uma e outra vez, como recurso enfático, mas, sobretudo, como abordagem pedagógica e modo peculiar de edição e apresentação do pensamento.


Tudo isso me faz lembrar também o micro-conto El mundo, de Eduardo Galeano, que está no Libro de los abrazos.

Un hombre del pueblo de Neguá, en la costa de Colombia, pudo subir al alto cielo.
A la vuelta contó. Dijo que había contemplado desde arriba, la vida humana.
Y dijo que somos un mar de fueguitos.
—El mundo es eso —reveló— un montón de gente, un mar de fueguitos.
Cada persona brilla con luz propia entre todas las demás.
No hay dos fuegos iguales. Hay fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco que llena el aire de chispas. Algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman; pero otros arden la vida con tanta pasión que no se puede mirarlos sin parpadear, y quien se acerca se enciende.

O que é um terminal?

Formas de interação com máquinas e seres computacionais

O terminal é uma interface interativa, lógica e sintática, uma forma de interação entre um ser humano e um computador, uma máquina computacional. Há interfaces não interativas, que são meros displays. Uma definição genérica e abrangente, pois eu não sou dos que aposta na precisão, eu prefiro a vagueza — entender o vago é importante, porque significa imaginar o vago. Um terminal permite que um humano possa usar recursos computacionais sem saber programar, apenas sabendo operar os seus comandos básicos. O curioso é que depois de um tempo, quando você se familiariza com muitos comandos e parâmetros de um terminal, dá pra dizer que ao final do processo você aprendeu a programar. Mesmo que o interpretador de comandos (outro nome para terminal) não permita que você construa ou execute scripts, ainda assim alguém poderia dizer que saberia construí-los, escrever num papel a sequência de comandos. Mas a possibilidade de construir essas rotinas só ficaria interessante num interpretador de comandos que trouxesse embutido laços e condicionais. Daí tudo pareceria o suficiente para que possamos identificar sua sintaxe como a de uma linguagem de programação, no mesmo sentido em que se diz que o sed ou awk são linguagens de programação.

Os espanhóis usam a palavra “terminal” para se referir também aos smartphones. Isso é muito bom porque diversifica o entendimento do que é uma interface, ou seja, desse instrumento com o qual instruímos os computadores e os levamos a fazer o que queremos! Um smartphone executa uma interface interativa gráfica que é imensamente complexa, embora não exija nem mesmo o domínio de comandos simples. Você só precisa saber como manipular o sistema usando os dedos como cursor sobre um painel tátil. Interfaces gráficas são construídas a partir do paradigma de programação orientada a eventos. Uma interface que responde a comandos é em certo sentido muito menos complexa que uma interface construída para responder a eventos. O kernel do Linux — só o kernel — tem mais de 20 milhões de linhas de código, não parece nada simples. E não é. — Mas em certo sentido é. O Linux é simples e não é. Não importa o uso que se faça de uma interface gráfica, o mero uso não te faz capaz de programar, porque não supõe que você saiba usar uma sintaxe, não há sintaxe nas interfaces gráficas!

Saber programar significa ser capaz de desenvolver suas próprias ferramentas para usar os recursos computacionais sem depender de (muitas) ferramentas desenvolvidas por outros, sem precisar de (muitos) softwares alheios. — E quem se importa de usar ferramentas desenvolvidas por outros num mercado tão diverso e acessível como o mercado de software? Esse mercado não é para todo mundo, apesar da popularidade dos smartphones. Terminais baratos conectam às pessoas à internet, aos seus serviços e ferramentas, mas não importa saber programar!

The Jetsons is actually a bone-chilling dystopia - The Verge
Rosie, a androide dos Jetsons: uma inteligência a serviço das necessidades domésticas.

Além de nos abrir à possibilidade (inútil) de saber programar, os terminais conservam o que se pode chamar simplicidade inteligente (a inteligência tecnológica que idolatramos está visceralmente ligada à complexidade, daí porque é difícil notá-la no simples). Terminais não são formas primitivas de interação, são formas fundamentais de interação. (O software nasce antes dos terminais, mas é somente com os terminais que a dinamicidade da computação começa; com as possibilidades abertas pela programação com linguagens de alto nível e não em linguagem de máquina.) Nossa imaginação sonha com androides, formas de inteligência e máquinas de computação cuja interação é inteiramente simbólica, linguística. Como as máquinas dos Jetsons (desenhos dos anos 60). As máquinas da Apple ou da Amazon, que respondem ao comando de voz, já são suficientemente impressionantes, imagine então a ideia de discutir com um androide — que tem a acesso a conteúdos (dados?) numa velocidade inconcebível para nós — sobre os fatos do mundo ou sobre os poemas de E. E. Cummings, ou de Celan. A complexidade de uma interação natural é o sonho dos criadores de máquinas de computação.

Talvez um dia sejamos capazes de criar máquinas computacionais com as quais conseguiremos interagir sem precisar de comandos, utilizando a voz, mas não como se tais dispositivos fossem máquinas e sim seres vivos, como nosotros, com uma subjetividade que nos desconcerta e enche de mistério, como a de Ava. Máquinas como aquelas imaginadas por Ian McEwan em Máquinas como eu, como seu Adão. Escravos criados já sem dignidade, por serem coisas (como Ava, mais uma vez), de quem não fosse esperado sequer o anseio por dignidade, pois construídos para servir. Existem seres que são ao mesmo tempo inteligentes e abnegadamente servis?

O fascínio da humanidade por tiranos parece nos dizer que sim! Mas essa discussão não vem ao caso, o caso é que formas sofisticadas e elaboradas de interação com as máquinas computacionais são o que fazem os terminais parecerem primitivos. As formas de interação mais sofisticadas, segundo os nossos sonhos, já não serão sequer com máquinas, pois talvez já não convenha chamá-las assim. Como é possível que queiramos criar consciência a partir da Inteligência Artificial e ainda assim tratá-las como em coisas (Ex Machina)? Estes novos seres reivindicarão uma identidade humana (Ghost in the shell), assim como macacos reivindicam dignidade e respeito nos filmes da série O planeta dos macacos. Talvez reivindiquem a própria exclusividade existencial, como David de Ridley Scott (em Prometheus e Alien: Covenant), ou muitos em Westworld, ou talvez sejam nossos guardiões, como em I am Mother e Raised by wolves, pais e mães postiços. Mas isso é o que contam nossos sonhos, na literatura, no cinema.

Minority Report predicted the future when it came out 18 years ago | SYFY  WIRE
Minority Report e seus paineis táteis holográficos.

O meio do caminho entre o sonho e o presente são os painéis táteis parecidos com os de Minority Report. O grafeno como realidade tecnológica torna possível que quase qualquer superfície se torne um painel, mesmo as não-planas. Não é a mesma coisa que os painéis holográficos de Minority Report, mas é uma mudança de paradigma. Ainda assim, estão no marco de uma interação gráfica, não lógica. Você não precisa conhecer e dominar comandos.

Vídeo que fala, entre outras coisas, da pesquisa por trás do desenvolvimento do Grafeno.

A interação gráfica é para muitas coisas indispensável, para outras, saber usar o terminal é muito mais vantajoso. Contudo, aprender a usar o terminal leva tempo e o resultado não é necessariamente útil, isto é, não pode ser empregado na maior parte dos usos cotidianos de máquinas computacionais; numa sociedade com o ritmo acelerado tudo que leva tempo deve ser preterido em favor de formas mais imediatas e úteis de uso. Uma criança de poucos anos consegue manipular uma interface gráfica, um sistema operacional como o Android ou o iOS. Manipular um terminal é mais complicado, embora bastante promissor; nós aprendemos outro ritmo e, sobretudo, aprendemos a desconfiar de uma certa visão do desenvolvimento e do progresso. O terminal nos ensina o papel da simplicidade e é surpreendente que a justo a tecnologia possa ser um lugar de aprendizado sobre a simplicidade, pois o dogma do desenvolvimento parece nos fazer olhar os sistemas interativos sintáticos (lógicos) como tecnologias obsoletas, superadas, outdated.

Nesse mundo enfeitiçado pela complexidade, os terminais mantêm nossos pés no chão, pois ainda que sejam igualmente sujeitos a updates constantes, conservam um senso de simplicidade e autonomia criativa que não podemos ter em relação às interfaces gráficas (e às interfaces androides, que são geneticamente máquinas); e fazem lembrar o preço da complexidade num mundo de máquinas tão potentes que nos dão a impressão de que nada tem custo e já não precisamos nos preocupar com alocação de recursos computacionais (talvez somente nas operações de grande porte, como as realizadas no entorno de Big Data). Isso significa que apontam também para outro dogma atrelado à complexidade: a abundância (contraposta a um senso de suficiência) que nos leva à atitude perdulária com a qual temos devastado o planeta. Não são poucas as lições!


Quais são as formas de computadores, como eles se apresentam hoje em dia? Eu não saberia dizer, penso que eles estão por toda a parte, mas além dos nossos ordinários PCs (ou Macs), há notebooks, smartphones (que hoje em dia devem ser a forma mais comum de computador), mas também televisões (smart TVs), consoles de vídeo games. Todas os tipos dependem de interfaces gráficas, e essas interfaces são produtos dos mais desejados, e experiências de usuário das melhores que existem — das melhores que o dinheiro pode comprar.

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A interface do sistema operacional do Playstation 5.

Mesmo que os softwares formem também um mercado, que movimenta muito dinheiro, como se pode ver, parte fundamental de tudo que compõe as interfaces gráficas, as únicas que a maioria dos usuários de computador sabe utilizar, funciona num regime no qual a ideia de propriedade está banida. Exemplos ilustres de tecnologias que não estão no jogo da propriedade: o Linux-based Android, sistema da Google, talvez o sistema mais usado no mundo, dada a dianteira assumida pela ubiquidade dos smartphones; pacotes de compiladores fundamentais, como o gcc; o Apache, servidor open-source mais utilizado no mundo. Estudos estimam que 80 ou 90% dos softwares são open source. Por que será que no reino do software a ideia de propriedade é tão indesejada e nociva, a ponto de gerar manifestos em favor do código aberto? Essa pergunta poderia ser respondida tanto por Richard Stallman quanto por Kropotkin.


Her já é manjado como referência a essa exploração cultural (especialmente literária e cinematográfica) da psicologia androide. O que significaria a presença de uma inteligência de outro tipo, e quais seriam as consequências sociais dessa presença? Uma amiga me recomendou recentemente esse filme, que vai na mesma linha.


Recentemente li dois livros excelentes sobre androides, Máquinas como eu, de Ian McEwan (que já mencionei algumas vezes por aqui) e Klara and the Sun, último livro de Kazuo Ishiguro. Os dois livros são fantásticos, cada um ao seu modo — o livro de Ishiguro tem algo de polêmico e, talvez, não inteiramente palatável para muitos gostos. Eles partem de perspectivas impensáveis há algumas décadas, não apenas pela evolução recente dos algoritmos de Inteligência Artificial, mas, sobretudo, pela internet e pelo desenvolvimento estrutural dos computadores. Contudo, Philip Dick ainda conserva algo especial porque sua compreensão dos androides em Androides sonham com ovelhas elétricas? parece elegantemente articulada ao próprio paradigma de Alan Turing, ao eixo fundamental do jogo da imitação: só será inteligente um ser que puder imitar indiscernivelmente o comportamento humano, ou seja, que conseguir superar o Turing Test.


A extração de grafite em Minas e na Bahia, o Brasil tem a maior reserva de grafite do mundo, será mais uma fonte de problemas ambientais futuros.

A erosão da propriedade privada

Quero escrever sobre um dos meus delírios, uma das minhas ingenuidades — ingenuidades são o meu forte. Creio que foram lançadas as sementes daquilo que um dia talvez ajude a erodir o firme edifício da propriedade privada. Não é fácil enxergar essa possibilidade porque, além de longínqua e etérea, ela determinará uma mudança radical que dificilmente se deixará reduzir a eventos. A revolução francesa talvez tenha nos acostumado a esperar que transformações radicais sejam o resultado de eventos que marcam uma inflexão histórica clara e perceptível. Somos animais históricos mas somos, antes de mais nada, animais. Animais cuja vida se distende sobre um tempo curtíssimo e que por isso não podem testemunhar as grandes transformações do mundo senão por meio da história (discurso). Portanto, não há garantias de que essas sementes mendrem e deem lugar a algo da dimensão disso que eu imagino, mas ainda assim acho que vale a pena falar sobre essas ideias.

O papel da teoria em nossa forma de vida nos acostumou a pensar que certas mudanças são determinadas ou orientadas pela transformação do nosso pensamento teórico. Assim, em certa medida, as práticas são condicionadas pelas teorias*. O pensamento, no entanto, tem muitas expressões e não se resume à teoria. Fazer-se entender sobre esse ponto é imensamente complicado, pois conhecimento e autoridade são duas palavras que andam juntas e reconhecer outras expressões de pensamento significa ser capaz de ver para além das formas institucionais de pensamento — portanto, escapar da pretensão de objetividade que a institucionalização materializa e encena. A literatura, a dança, a culinária, todo produto cultural humano é a expressão de um pensamento. O samba (e as escolas de samba), por exemplo, são expressões de um pensamento (que não valorizamos pela força do viralatismo que nos ensinam desde cedo). A pretensão de traduzir essas expressões em discursos teóricos diz muito sobre nossa forma de vida, mas é preciso reconhecer a independência disso que se quer traduzir, a despeito dessa inclinação. Digo tudo isso porque o que me faz considerar a possível erosão da propriedade não é um pensamento, mas ações e atitudes que testemunhei ao largo dos 22 anos em que estou na internet. Práticas de pessoas as mais diversas, muitas delas anônimas, que refletem valores que tem potencial profundamente transformador.

Deixem então que lhes conte algumas coisas: como uma pessoa de classe média baixa (ou simplesmente pobre, se a gente quiser simplificar), eu nunca poderia ter acesso a certos itens da chamada alta cultura. Em realidade até mesmo coisas mais acessíveis me pareciam distantes. E, no entanto, eu tive, por exemplo, uma versão flawless do Cravo bem temperado, de Bach. Cheguei a ter uma versão das obras completas de Bach. Nunca me encantou esse jogo de persnosticidade e erudição que o Paulo Francis — e tantos outros como ele — gostava de encenar. Eu nunca gostei de jogos. Mas ter acesso a itens valiosos da múltipla e diversificada cultura humana é algo de valor inestimável e transcende os jogos simbólicos e a mercantilização, por assim dizer, da cultura ou da alta cultural (coisa que pra mim não quer dizer nada, pra ser honesto). Se há muito tempo eu pude entrar em contato com tudo isso foi porque alguns seres humanos, anônimos, dispuseram do seu tempo pra fazer com que outros anônimos como eu pudessem disfrutar das maravilhas culturais humanas.

Isso talvez seja ainda muito pouco concreto. Vejamos então outro exemplo pessoal. Ninguém lê filosofia em português. Talvez um punhado de pessoas, não mais do que isso. Mas quem escreve e pesquisa filosofia em português nem por isso está submetido a critérios menos rigorosos que os escrevem em inglês, a língua universal. O dilema é: estamos submetidos aos mesmos critérios mas não temos os mesmos recursos. A biblioteca da UFBA, onde eu me formei, é precária em termos dos livros necessários à boa formação científica. Se algum medida eu consegui superar o desafio de escrever sobre filosofia com algum valor foi with a little help of my friends. Mas tanto eu como meus amigos, e como tantos pesquisadores no Brasil, nós contamos com a ajuda de pessoas espalhadas pelo mundo, pessoas imbuídas do espírito de compartilhamento e de abertura. Gente como Aaron Swartz, covardemente perseguido pelo governo americano até o ponto de se suicidar, ou Alexandra Elbakyan. Eu nunca esqueço disso!

Nossa patrona, nossa musa, Alexandra Elbakyan

A biblioteca Florestan Fernandes, da USP, tem muito mais recursos que a biblioteca da UFBA, porque além de tudo as endinheiradas agências de fomento ligadas à USP proporcionam aos seus pesquisadores dinheiro para que eles adquiram livros e esses livros, uma vez terminada a pesquisa, tem que ser entregues à biblioteca da Universidade. Isso alimenta seu acervo. Difícil pesquisar Wittgenstein sem ter acesso, por exemplo, ao trabalho de peão de Peter Hacker nos volumes do seus Analytical Commentary. Graças ao Library Genesys e outros meios mais antigos eu tive acesso a tudo isso e só precisei xerocar o último volume da coleção, que encontrei na USP. Quem usa as ferramentas que colocam o conhecimento ao alcance de todos os que tem acesso à internet pode não ter noção do trabalho que elas demandam, dos problemas gerados pela propriedade privada e pelas limitações impostas a quem não tem dinheiro. Mas eu sei bem o trabalho e o compromisso que a manutenção dessas ferramentas exige e não posso ver esse esforço senão como algo não apenas bom, mas bonito, como a expressão de valores que, ainda que se expressem timidamente por meio de poucas figuras públicas, tem uma força incrível. Uma força que eu me sinto compelido a louvar e que estimula minha imaginação e meus delírios.

Essas ideias e valores extrapolam o âmbito de minhas experiências pessoais. Todos podem constatar, no dia a dia da nossa sociedade tecnológica, como a inclinação a abrir o conhecimento num sentido muito mais amplo do que jamais sonhamos tem moldado quase imperceptivelmente a infraestrutura tecnológica da sociedade. E não apenas no trabalho incansável dos que lutam contra leis injustas e despreocupadas em favorecer aqueles que nunca são sonhados. A IBM comprou a Red Hat, a Microsoft já permite incorporar distribuições Linux ao seu sistema e dizem que em breve ele virá com um kernel Linux embutido. O Linux — como o Unix em que se baseia — são expressões de um trabalho colaborativo e voltado à comunidade humana. A tímida marca das grandes mentes que trabalharam para nos legar gratuitamente um trabalho colossal como esse quase não nos permite divisar sua importância. A história do Unix é uma história pouco contada e pouco documentada, uma amostra das dificuldades que enfrentam e enfrentarão os historiadores das tecnologias fundamentais dos nossos tempos. Dennis Ritchie e Ken Thompson criaram o que ainda hoje é a infraestrutura fundamental dos nossos sistemas operacionais, o Windows é a única exceção significativa, mas como se vê a força do *unix o compele a incorporá-lo. Android, Linux, iOS, todos tem a marca desses gênios e do esforço acumulado ao longo das décadas para desenvolver esse trabalho seminal.

Tim Berners-Lee poderia ter ganhado muito dinheiro com a web. É verdade que seu contrato como engenheiro do CERN talvez impusesse restrições e restringisse as possibilidades de ganhos a partir da pesquisa desenvolvida sobre sua alçada, mas sendo Berners-Lee um sujeito tão inteligente não era preciso que fosse um Lobo de Wallstreet para que pudesse imaginar meios de contornar essas dificuldades, se ele quisesse. Simplesmente não era o caso.

A mesma coisa poderia ser dita de Massimo Marchiori, matemático que criou o algoritmo na base do motor de buscas do Google. Eu poderia passar horas citando exemplos de pessoas anônimas ou célebres que contribuíram direta ou indiretamente para que, nas últimas décadas, pessoas de todo o mundo pudessem acessar o colossal manancial de cultura e conhecimento que a humanidade acumulou ao longo de milênios. Entretanto, impera ainda hoje mesmo no entorno ideológico e institucional onde todos nós vivemos a visão de que a competição é o motor da vida humana, aquilo que nos leva adiante e que nos estimula a ser melhores. Longe de mim transformar a dicotonomia competição/cooperação numa escolha onde só podemos eleger uma opção, mas há tempos parece que é isso o que aconteceu. Eu sinto que estou simplesmente destacando a outra parte, pouco lembrada, embora em realidade a mais importante. Certas múmias qualificam como infantilidade (a criança, o eterno símbolo da ingenuidade) a pretensão de cooperar e as aspirações coletivas, como quem pergunta: onde na história podemos encontrar apoio para essas aspirações, onde a cooperação venceu? A melhor pergunta talvez fosse em realidade: onde ela não venceu? A minguada lista que eu apresentei acima poderia ser estendida imensamente: o papel do software livre, aberto, corresponde até a 90% de todos os softwares, segundo levantamento da própria Red Hat; os repositórios de software como o Github ou o Gitlab armazenam códigos que as pessoas desenvolvem e disponibilizam pra quem quiser usar, aí se encontram desde soluções rápidas para pequenos problemas computacionais até complexos entornos de Machine Learning e Deep Learning como Keras, Tensorflow ou Sklearn.

Faltam exemplos de que somos melhores quando nos abrimos e trabalhamos para ajudar os outros? Faltam exemplos de que acreditar e apostar na inteligência dos outros, ao invés de ser tragado pelo inescapável redemoinho narcisista da competição e de seus jogos, é sumamente mais frutífero, além de ser a expressão de uma força sem portador? Michael Tomasello, primatologista (psicólogo evolutivo é realmente melhor), nos lembra que a cooperação não é apenas uma força recentemente elevada à condição de política de desenvolvimento preferível pelo mercado de software, mas o próprio eixo que nos caracteriza como homo sapiens. É trabalho cumulativo dos homo sapiens que lhes permitiram evoluir de modo assombroso, como nenhum outro animal, e criar assim o que ele chama de efeito catraca, esse dispositivo que impede que as ferramentas que criamos sejam perdidas, fazendo com que se conservem por meio da difusão do conhecimento. Os outros animais às vezes criam ferramentas e métodos engenhosos mas nem sempre conseguem fazer com que outros da sua espécie sejam capazes de utilizá-los, portanto sua evolução é vagarosa, porque submetidas a upgrades muito fortuitos. Não é o nosso caso, nós acumulamos porque colaboramos.

Espero que vocês não pensem que nada disso é um argumento, não é esse o papel do cansativo esforço para ilustrar casos. Lembrem-se de que isso não é mais que um delírio. Não sou racionalista, acredito que certas coisas só podem ser entendidas por aqueles que algum dia já pensaram as ideias que exponho aqui, ideias tão velhas como o tempo. Não quero convencer porque talvez só entenda quem já esteja convencido — e além disso, certas ideias precisam encontrar seu próprio tempo. Ainda que os valores que elas refletem timidamente já se mostrem na atitude de muitas pessoas ao redor do mundo, seguramente elas ainda esperam seu tempo. Quero crer que um dia seus valores e princípios serão também os valores e princípios daqueles que virão, desses que desde já temos condenado a viver num ambiente devastado e transformado pelo nosso egoísmo. Será um futuro glorioso.


* Acho que a discussão sobre quem veio primeiro (quem determina quem?), o ovo ou a galinha, digo, a teoria ou a prática, se encerra com a pragmática. Isto é, se encerra com a constatação de que a regra não pode determinar a prática num sentido radical e de que a formalização é apenas um recurso técnico sobrevalorizado numa sociedade científica que herda o marco do pensamento de grandes lógicos como Kant e Frege, ou de matemáticos que tinham aspirações universalizantes.

Atualização: uma tardia mas necessária atualização, para temas como esses inevitável não pensar no Douglas Rushkoff. Ele certamente tá indo no sentido de um Team Human (ainda que talvez de modo menos radical que eu).

Capitalismo e conhecimento livre podem coexistir

Um dos álbuns mais incensados dos últimos tempos foi o In rainbows, do Radiohead. A banda permitiu que o álbum fosse baixado gratuitamente, deixando aberta aos fãs a possibilidade de pagar por ele o quanto achassem conveniente. As vendas de cds, contudo, continuaram paralelamente e os ganhos foram significativos.

Análises indicam que 75% dos desenvolvedores do kernel Linux são remunerados. Poucas são as distribuições que contam somente com contribuição voluntária (Debian e Slack, salvo engano). Ainda sim o sistema é aberto.  A Canonical, empresa que patrocina o Ubuntu, oferece suporte pago e capta recursos de diversos canais.

A incompatibilidade entre capitalismo e conhecimento livre é fictícia. Software livre pode conviver com software proprietário (há demanda para ambos os setores). A ascenção da cultura de conhecimento livre não precisa coincidir com a derrocata do sistema econômico capitalista. Não podemos alienar os ganhos que teríamos militando a favor de uma convivência pacífica, apostando na queda de um sistema enraizado no nosso modo de vida. A luta contra os direitos autorais, a expansão do domínio público, são frentes importantes e devem ser apoiadas. Mas aqui o caso é ligeiramente diferente. A internet inaugura um novo modo de lidar com o conhecimento e com a “propriedade intelectual”.  Os impasses institucionais e as batalhas para demarcar os limites jurídicos para o comportamento do usuário da rede tem sua importância, mas são de pouco efeito prático. O que a internet nos diz eloquentemente, e diz a todas as pessoas de iniciativa e de visão, é: ajustem-se à minha dinâmica. A internet representa esse movimento impulsivo e sem direção, mas livre. Sua liberdade gerou e gera ainda hoje muitas riquezas. Mas também ajudou a disseminar informação, cultura, diversão — sem juízos sobre o conteúdo. Por isso ela abarca tanto a possibilidade de uso proprietário, quanto a difusão do conhecimento livre. As amarras que parecem obstruí-la não são resultado de incompatibilidades naturais insolúveis, mas consequência da inércia das pessoas de espírito estreito, incapazes de antever o movimento que há muito já é presente e real. A internet pede que se renove o modelo de produção e lucro, que se elabore alternativas, novidades. Mas essas mudanças parecem inaceitáveis a muitos que insistem em nadar contra maré, agarrados a uma velha forma de comércio e pensamento, cegos para uma revolução que está apenas nos seus estágios iniciais e que talvez seja, na verdade, um ciclo de revoluções.

Nós não precisamos de xiitas militando em prol da extinção do software proprietário, nem de extremistas armados para impedir que a internet seja o meio onde circula livre e gratuitamente toda sorte de conteúdo, livre ou não. Nós precisamos de gente que entenda que esse movimento é irreversível — irreversivelmente bom — e que se disponha, como se dispôs o Radiohead, a dar a cara a tapa, a experimentar, inovar. O retorno vem inevitavelmente. O inimigo é, como sempre, o comodismo, a estagnação e conveniência de quem quer manter as coisas como estão em seu próprio benefício.

Linux como política de uso e desenvolvimento de tecnologia

Semanas atrás desocupamos uma sala do Mestrado para reformas. Lá havia 4 ou 5 computadores velhos e eu prontamente sugeri que instalássemos neles o Ubuntu. Logo os brincalhões me acusaram de estar evangelizando em favor do Linux. A disputa Windows versus Linux não é um Fla-Flu, escolher o Linux é adotar uma política de uso e desenvolvimento de tecnologia. No entanto, ao contrário do Windows, o Linux não tem receita para bancar dispendiosas campanhas publicitárias. Aliás, o termo “Linux” não revela a diversidade das distribuições e desenvolvedores de sistemas linux based — um dos grandes trunfos da plataforma. Deixemos isso de lado — o que dizer é que a guerra que se manifesta em centenas de tirinhas de humor internet afora, além da divulgação que fazemos pontualmente, é uma estratégia de baixo custo para promover o Linux, na medida em que ele se apresenta como resposta a certas inconveniências do Windows.

Tirinha do Nois na Tira.

Todos sabem, por exemplo, que a reinstalação do Windows é uma exigência sistêmica. O acúmulo de informações no registro, a fragmentação do disco, além dos arquivos órfãos deixados por outros programas entulham o sistema até deixá-lo insuportavelmente lento. Claro, esse tipo de comportamento varia a depender do conhecimento do usuário e da configuração da máquina, mas em grande parte dos casos e nas máquinas de gente comum, essa é uma verdade inegável.

Agora pensem outro aspecto: quem já trabalhou no setor público — e olha que o problema nem sempre se restringe ao setor público — conhece a costumeira morosidade com que os pedidos de suporte são atendidos. A demora se deve a muitos fatores, mas a incidência de problemas é grande. Considerando a reinstalação sistêmica e as centenas de casos relativos a vírus, worms e trojans, o custo em tempo para contornar tais obstáculos é incomensurável. Quem já trabalhou no setor público sabe também que nada pode ser pirateado, portanto, cada nova instalação exige a presença da equipe do suporte que controla a licença do Sistema Operacional, do suite de escritório (MS Office), do antivírus e eventualmente de algum programa específico usado pelo setor. Custo dobrado, tempo e dinheiro gasto em licenças que raramente são o bastante para evitar os problemas mais comuns. Trabalhei na SAEB (Secretaria da Administração do Estado da Bahia) e na Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A) e todos os computadores aos quais tive acesso não traziam nenhuma política de níveis de usuário (para permissões de acesso), isto quer dizer que eu estava livre para instalar o que bem entendesse (o Windows, por definição, permite que o usuário tenha pleno acesso ao sistema). Isso me permitia dar suporte aos computadores ligados ao meu setor — e às vezes até em setores não ligados ao meu — pois todos conheciam a já afamada morosidade do CPD (coitados dos funcionários do CPD, vítimas da obsolência e da lentidão estatal, completamente incompatíveis com a profissão que exercem). Mas ao mesmo tempo era um risco: um simples keylogger é o quanto basta para fazer de um computador mal configurado uma arma terrível. Até senhas de bancos podem ser capturadas.

O ilustre reitor da UFBA, Naomar de Almeida Filho, escreveu um excelente artigo para a Folha em que destaca o engessamento da Universidade Pública no Brasil. O aparato normativo impede que respostas adaptativas mais precisas sejam criadas e congela o comportamento das Universidades em torno de práticas frequentemente dispendiosas que poderiam ser evitadas. A política de uso de software é uma amarra voluntária, exemplo dessa espécie de travamento que obstrui novas soluções. O uso de software livre talvez não se aplique a todos os casos — aqui me falta uma visão mais detalhada, de profissional da área, para avaliar o cenário de forma mais detida — mas é certo que na maioria dos computadores para acesso direto dos estudantes o emprego de software livre resolveria problemas comuns de segurança e manutenção. Nada de gastos com licenças de Sistema Operacional, suites de escritório, antivírus, nada de problemas de segurança, ameaça de keyloggers, trojans, e, especialmente, uma diminuição significativa no número de ocorrências de manutenção. Um computador ligado a internet, com o pacote OpenOffice (ou BrOffice) já preinstalado, programa de tratamento de Imagens (o excelente Gimp) incluso e muitas outras ferramentas integradas sem qualquer custo, é mais do que suficiente para o estudante realizar as tarefas que lhe cabem. Tudo isso rodando num usuário sem privilégio (no Linux isso é trivial, já que só tem poderes para alterar os arquivos do sistema o usuário root ou algum usuário que por ventura receba dele permissões). Imagine o quanto poderia ser economizado em tempo e dinheiro se cada computador voltado para navegação e uso de escritório pudesse rodar um sistema linux? Escolas no interior do país, que por vezes não contam com equipes de suporte e que não estão menos vulneráveis a vírus, worms e programas maliciosos de toda natureza; programas que, em questão de minutos, impossibilitam ou tornam o uso de um computador inviável. Na ausência de profissionais ou de gente competente para realizar a manutenção, um simples vírus pode ser a diferença entre ter ou não um computador dentro de uma escola, para uso dos alunos ou mesmo para fins administrativos. Vale lembrar: ter um antivírus não significa não ter vírus: no Windows não ter vírus depende, em primeiro lugar, de certos cuidados na navegação. Depois, manter um antivírus exige uma conexão direta ou uma atenção para as atualizações que saem diariamente. Pensemos esses problemas em escala nacional e então teremos a dimensão da encrenca.

Não esqueçamos também que o software proprietário vem amarrado a uma estratégia de venda de hardware. Os computadores velhos do Mestrado não podem receber o Windows Vista — a versão mais nova do sistema operacional da Microsoft — pois não cumprem os requisitos mínimos exigidos pelo sistema. O Windows XP é mais acessível, mas não se sabe ao certo até quando as atualizações de segurança acontecerão, nem se ele ainda é vendido. O ritmo de desenvolvimento do Windows exige constante upgrade de hardware, para nosso Estado burocrático e “pobre”, é custoso acompanhar esse pique. Ponto para as dezenas de distribuições linux que rodam mesmo nas máquinas mais obsoletas.

Na Bahia já foi assinado um protocolo de intenções entre o Governo do Estado e a Red Hat (lembremos que as desenvolvedoras podem cobrar pelo suporte corporativo, ou para desenvolvimento de softwares específicos, salvo engano, o que dá ao governo, no caso de necessidade, um suporte logístico). No Rio Grande do Sul o linux já é uma realidade há tempos. Mas a política do medo ainda impera quando se fala em Linux. Ou melhor, a política do FUD. Puro terrorismo: a base de operação é semelhante a do Windows, vejam o menu do Ubuntu, numa tela que capturei do meu próprio computador:

A imagem foi atualizada (2022) porque a imagem anterior foi apagada pelo servidor que a hospedava.

Um menu, como o do Windows, e submenus que categorizam os aplicativos de acordo com suas áreas — o que é muito mais do que o Windows faz. Na seção Internet, navegadores, programas mensageiros, skype, etc. Players de áudio e vídeo em Sound and Video. Em Office, programas do pacote OpenOffice/BrOffice. E assim por diante. Que mistério há nisso? Que mistério há nisso quando você é apenas um usuário — um estudante — querendo usar um computador para acessar internet ou para digitar um trabalho? Por que pagar tanto, gastar tanto, quando precisamos de tão pouco?

(O sistema operacional do Google, o gOS, não é uma aposta de que a computação de agora em diante será basicamente interligada a serviços e aplicativos online? Aliás, o gOS é linux based. E a computação em nuvens? Não é uma expressão desse movimento, vejam os dizeres na página do gOS, anunciando o Cloud: “With Cloud, you can turn on your computer to just a web browser”. Vejo em tudo isso uma boa oportunidade para abertura e desenvolvimento do software livre).

A migração, quando envolve rede e um sistema inteiro de computadores, é coisa gradativa. Requer muitas etapas. Mesmo que seja a migração de apenas um computador, do Windows pro Linux, convém ler um excelente relato da transição de uma rede inteira, na Câmara de Timóteo. É uma leitura indispensável para quem pretende migrar para o linux, sobretudo porque desfaz os medos, os mitos, mas também porque é realista e exige o realismo. Não coloca o linux como a panacéia dos problemas de segurança, suporte, mas como uma política bem fundamentada de uso de tecnologia, que tem seus prós e contras e que exige uma aposta e um esforço numa certa prática que vai contra o “hábito Windows” por um objetivo válido.

Perdoem o post longo e algo disperso, mas há tempos eu devia um texto dessa natureza. O objetivo é menos esgotar o tema do que registrar que o “caso Linux” é mais do que mero jogo, é questão que envolve políticas públicas de uso de tecnologia, uma solução possível para muitos problemas comuns e incômodos.