Linux: o mais importante projeto da humanidade

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Tux, o famoso mascote do Linux

Antigamente eu argumentava com qualquer pessoa que não admitisse a superioridade do Linux como sistema operacional (SO), tendo em conta todos os seus aspectos. Hoje em dia eu ainda discuto por isso, mas agora, saber o que uma pessoa acha do Linux equivale a estabelecer uma medida do que ela conhece de informática! Porque em 2023 o mundo é bem diferente do que era em 2013, muita coisa mudou desde então. Em 2013 você ainda podia achar que Windows era não apenas um sistema preferível — o que ainda é uma opção perfeitamente razoável —, como também um SO melhor e mais importante, dada a sua posição no mercado de SO, o seu market share. Hoje em dia esse ainda é um critério importante, e o Windows sempre será o rei dos desktop/notebooks, mas novos dispositivos surgiram (smartphones e tablets) e tomaram a liderança no mercado de SO, impondo um sistema linux-based, o Android. Se o principal argumento para afirmar a importância do Windows/Microsoft e o caráter coadjuvante do Linux era esse, já faz bastante tempo que ele está outdated.

Dados sobre o mercado de sistemas operacionais, Statcounter

No que diz respeito propriamente ao Linux o mais importante é: embora a gente tenha se acostumado a vê-lo sob a perspectiva da sua posição num mercado — o mercado de sistemas operacionais — ele é muito, muito mais do que isso. O Linux não é uma propriedade, não é um produto ou uma mercadoria, ele não tem dono e nem está a venda em nenhum lugar. O Windows sim é um produto e uma mercadoria, algo que pertence a um mercado. Quem quiser pode obter um sistema Linux de graça em múltiplas fontes; você pode, por exemplo, tirar onda com os seus amigos e instalar o Linux desenvolvido pelo CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire). Se o Linux não está a venda e não é uma propriedade colocá-lo num mercado, junto a outros sistemas que são efetivamente produtos e mercadorias, é apenas uma maneira de simplificar e fazer as pessoas entenderem coisas parecidas que, no entanto, são fundamentalmente diferentes. O Linux é o mais importante projeto da humanidade, um projeto que já é vitorioso, mas que ainda é apenas a semente de coisas nem sequer imaginadas. Ele representa a retumbante vitória da colaboração sobre a competição, e por meio dessa vitória entendemos o que poderemos fazer se conseguirmos efetivamente suplantar os dogmas da competição e da propriedade.

Antes de continuar, só uma nota. Em 2023 já não dá mais pra não reconhecer a importância do Linux sem trair desconhecimento sobre aspectos fundamentais da infraestrutura da sociedade digital, sem entender o papel das nuvens, dos containers, do Docker, da Kubernetes, sem entender a importância de tudo isso para a mudança de paradigma que se conhece pela sua designação publicitária: transformação digital.

O Linux é a ponta de lança de uma ética da colaboração, de uma rede de práticas da qual ele participa como carro chefe, mas que não se esgotam nele. Por exemplo, é possível baixar e usar de graça frameworks de Machine Learning como Tensorflow ou Keras, porque o código deles está aberto e disponível no Github. (Github, aliás, que a Microsoft comprou.) A prática de abrir o código para outras pessoas, de não transformá-lo em mercadoria, é dominante nos campos de atuação e pesquisa ligados a informática. Um estudo da Linux Foundation estimou que 80% a 90% dos softwares são software livre, de código aberto. O que significa que as pessoas tendem não a vender (fechar), mas a compartilhar o código que escrevem e que o software aberto venceu a disputa com o software proprietário, dando assim uma mostra do impacto do que se pode fazer quando abrimos mão da ideia de propriedade.

Isso não quer dizer que Linus Tovalds seja um revolucionário, que eu saiba nenhuma das figuras centrais para a história da informática (hardware e software) era alguém especialmente orientado a perspectivas revolucionárias — de von Neumann passando por Dennis Ritchie. Mas isso não significa que não possa haver algo de verdadeiramente transformador em práticas quase anônimas de colaboração, de trabalho orientado a deixar uma herança para os outros seres humanos (e não para si mesmo).

Eu sou dessas pessoas de coração mole que veem o sucesso de um trabalho colaborativo dessa dimensão e pensam: “caralho, o que a gente faria se vivêssemos num mundo onde a colaboração fosse de fato a disposição dominante, ao invés da competição?”, eu já quero pensar numa ficção ética que nos mostre o que poderíamos fazer, como seríamos muito melhores. Mas não é preciso olhar para o futuro para ver o significado desse trabalho, somos animais que se ajudam e Kropotkin sabia disso no começo do século passado, quando escreveu Ajuda Mútua: fator de evolução. O que me entusiasma em especial é pensar que essa prática, que essa ética, vai se espalhar mesmo que a ciência seja o braço direito do capitalismo. Isto é, ainda que os centros de pesquisa, a indústria e todos os financiadores do desenvolvimento de software sejam predominantemente entidades que visam o lucro e atores no sistema capitalista, a prática da colaboração como prática standard de um mercado tão importante tem a capacidade de moldar práticas mesmo fora desse campo de atuação fundamental para a sociedade e a economia digital. Talvez essa seja uma ilusão minha, uma ingenuidade e uma fantasia da minha cabeça, mas eu gosto de pensar que as ficções, e o sentido que elas carregam, são mais importantes que a verdade. E que mesmo o verdadeiro precisa antes ser imaginado para que possa se tornar real. E é por isso que o Linux é o mais importante projeto da humanidade.


Precisamos agora que o cinema, a literatura, a música, que todas as artes saibam imaginar esse mundo onde a colaboração é o eixo da vida humana, como viveriam essas pessoas? O que elas fariam, como agiriam? Como o mundo delas seria significativamente diferente do nosso?

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