A felicidade e o culto ao prazer

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Apesar da diversidade das expressões e efeitos do capitalismo, creio que se pode dizer sem controvérsia que o hedonismo é uma marca das sociedades capitalistas. E ainda assim parece como se essa característica passasse desapercebida, como se não a notássemos. Talvez não possamos notar aquilo que está diante dos nossos olhos, mas o caso é que as consequências dessa característica são marcantes e definidoras. Parece difícil encontrar quem distingua prazer e felicidade, de tal sorte que as pessoas parecem cada dia mais convencidas de que a felicidade é a busca constante pela repetição de momentos de prazer. Uma busca que visa aumentar a duração e a frequências desses momentos.

Devem existir muitos efeitos do prazer, no entanto, dois em especial me parecem notáveis, o efeito econômico e o efeito psicológico. O efeito econômico deixar ver o papel privilegiado do prazer na lógica produtiva capitalista. Vivemos numa cultura do conforto, da comodidade, da segurança, e tudo feito em nome desses valores parece dispensar justificação. Adestrados a desejar de acordo com esse marco cultural, é quase inevitável ver a cultura do Netflix and chill como algo profundamente desejável, contra a qual não sabemos (nem queremos) ensaiar qualquer crítica. O capitalismo depende da dinâmica incessante do desejo, da reposição constante da relação entre o desejo e aquilo que se quer (comprar OR obter OR consumir). Depende, portanto, da experiência daquilo que pode ser repetido e reproduzido em escala comercial. Nesse sentido, o prazer é uma experiência perfeitamente comercial, pois é reprodutível. Desde o prazer sexual, passando pelo prazer sensorial da alimentação até o quase sublimado prazer estético da contemplação artística em suas diferentes manifestações, o capitalismo provê as mais diferentes fontes de prazer e satisfação sensorial como parte essencial da sua engrenagem produtiva. Quanto maior o desejo de repetir o prazer, mais impulso à dinâmica de consumo e produção necessária à manutenção do capitalismo e de economias orientadas ao crescimento econômico.

O efeito psicológico do prazer tem longas raízes e se pode destacá-lo a partir da reflexão de Aristóteles sobre a felicidade (tradução possível da expressão Eudaimonia). Todas as emoções e paixões tem, em relação a felicidade, uma característica peculiar: são acumuláveis. Quem busca dinheiro, honra, glória, e também prazer, pode sempre obtê-las numa maior medida, num grau adicional. Isso significa que é sempre possível ter mais dinheiro, honra, glória e prazer. Entretanto, diz Aristóteles, a felicidade não pode receber nenhum acréscimo. Ela é uma justa medida, uma suficiência e uma saciedade.

Sendo assim, podemos distinguir prazer e felicidade a partir de duas chaves: frequência e quantidade. O prazer é reprodutível, portanto podemos obtê-lo quando e quantas vezes nos parecer conveniente e necessário. Podemos também ter sempre cada vez mais prazer, em maior quantidade. A felicidade, ao contrário, não pode ser reproduzida. Bem, aqui minhas considerações se distanciam um pouco das de Aristóteles. Creio, como o próprio Aristóteles, que nossas ações podem ser instrumentos de uma educação que nos torne mais aptos a ser felizes. Nesse sentido, a felicidade seria também reprodutível, embora não no sentido econômico: comercializável. No entanto, creio que num sentido muito importante a felicidade não é reprodutível, pois ela não se reduz a nenhuma regra. Freud já dizia (em Mal estar na civilização) que não há regra de ouro para obter a felicidade. Embora possa ser compreendida como um evento que tem uma duração, a felicidade pode e deve ser entendida como uma conversão ou como uma passagem. Isso significa que apesar de sua duração e de seus efeitos — dentro dos quais está o prazer — a felicidade é antes de mais nada uma mudança permanente que nos transforma e que faz com que todos os eventos que lhe seguem sejam sempre vistos segundo uma nova luz. Um homem miseravelmente abandonado pela sorte será sempre menos miserável que um outro que nunca tenha sido feliz. Transformada numa parte de nós, como um braço ou um dedo, a felicidade será sempre um bálsamo que embora não possa adoçar o fel de tudo que pode nos ocorrer no futuro, muda nossa experiência do infortúnio e de tudo o mais. A felicidade é a experiência do singular e do irrepetível, daquilo que, tendo acontecido e durado, nos transforma e modifica tudo aquilo que nos acontece (pois estamos nós mesmos modificados). Não é que a felicidade seja perene, perene são seus efeitos na nossa constituição, por isso me parece melhor caracterizá-la como uma passagem ou uma conversão.

Assim caracterizada, fica mais fácil compreender a diferença entre prazer e felicidade. O prazer, agenciado pela publicidade e pela máquina produtiva do capitalismo, é repetível e reprodutível. Se o confundimos com a felicidade é porque o prazer costumeiramente a acompanha. A felicidade, no entanto, mesmo que estejamos de acordo com Aristóteles acerca da possibilidade de educação que nos afaste da húbris das reações extremadas, não é repetível, reprodutível, nem controlável (ou gestionável), é uma experiência singular para qual a sorte e o acaso concorrem decisivamente. Experiências singulares não são comercializáveis, pois não sendo reprodutíveis não podem embalar o desejo de consumidores. Mas a confusão entre felicidade e prazer é extremamente rentável, é uma ilusão que impulsiona a dinâmica de determinação dos padrões de felicidade, mantida, para citar um exemplo conhecido, pelos chamados influenciadores digitais no Instagram, que se esmeram diariamente para estabelecer novos padrões de desejo e, supostamente, felicidade. Não é surpreendente que tantos cursos e notícias sobre como ser feliz tenham surgido nos últimos tempos, tentando traduzir em regras e instruções aquilo que Freud julgou impossível. Diante da profusão de casos de (aparente) felicidade — em viagens, restaurantes, e em todas as ocasiões em que indubitavelmente o prazer abunda —, não podemos deixar de nos sentir como filhotes de tartarugas fatalmente iludidos pelo brilho artificial de nossas cidades, buscando inutivelmente a água enquanto corremos em direção ao asfalto.

Talvez ainda não esteja claro o sentido de minha distinção e o alcance daquilo que me parece ser a felicidade. Essa questão precisa ser abordada uma e outra vez. Se a busca pela felicidade dá ocasião a um agenciamento e uma instrumentalização, pois a confundimos com o prazer, então deveríamos discutir, entre outras coisas, a autonomia da formação do nosso desejo — e o papel do marketing e da publicidade nessa dinâmica formativa. Por ora, deixo aqui o fragmento de um texto de Zizek chamado Felicidade? Não, obrigado!, em que ele apresenta uma história curiosa sobre o que pensa terem sido as condições para certos momentos felicidade na Tchecoslováquia:

Três condições fundamentais da felicidade foram cumpridas lá. Em primeiro lugar, suas necessidades materiais estavam basicamente satisfeitas – não demasiadamente satisfeitas, pois o excesso de consumo pode por si só gerar infelicidade. É bom experimentar uma breve escassez de alguns bens no mercado de tempos em tempos (sem café por um ou dois dias, depois sem carne, depois sem aparelhos de televisão): esses breves períodos de escassez funcionavam como exceções que faziam com que as pessoas nunca esquecessem de sempre estarem gratas de terem acesso a esses bens – se tudo está disponível a toda hora, as pessoas assumem que essa disponibilidade é um fato evidente da vida e deixam de valorizar como são sortudas. A vida pôde portanto prosseguir de maneira regular e previsível, sem grandes esforços ou choques. Uma segunda característica, extremamente importante: existia o Outro (o Partido) para se culpado por tudo que dava errado, de forma que as pessoas não tinham que se sentir efetivamente responsáveis – se houvesse uma escassez temporária de determinados produtos, ainda que os danos tivessem efetivamente sido provocados por alguma força da natureza, era a culpa “deles”. Por fim, havia um Outro lugar (o ocidente consumista) sobre o qual era permitido sonhar e até mesmo visitar às vezes – esse lugar estava exatamente à distância certa, nem longe demais, nem perto demais. Esse equilíbrio frágil foi perturbado. Pelo quê? Pelo desejo, justamente. O desejo foi a força que impeliu as pessoas a irem além – e caírem em um sistema em que a grande maioria está definitivamente menos feliz…

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