Cultura Pop, Humor e Inteligência

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Há duas coisas que eu gosto em Zizek: o humor sempre presente nos seus textos e falas, e a sua atitude em relação à cultura pop. Meus textos não tem nem um grão de humor, são completamente planos nesse quesito. Boa parte dos comentaristas políticos de quem eu gosto incorpora o humor no que escreve e isso torna a atmosfera dos seus textos menos rarefeita — eu tenho em mente: Celso Rocha de Barros, José Roberto de Toledo, Conrado Hübner Mendes e em certa medida até Marcos Nobre. Aceitar a cultura pop — essa categoria tão abrangente e vaga — é outro elemento que ajuda trazer oxigênio à atmosfera dos pensamentos.

A chave pra entender a oxigenação da atmosfera promovida pela cultura pop está na flexibilização dos padrões de inteligência e em suas consequências discursivas. Usemos uma meia verdade para ilustrar como se dá essa flexibilização. Suponhamos que em relação ao entendimento e à capacidade de julgar há duas posições particularmente importantes e antagônicas. Duas posições distintas a respeito da importância do exemplo e da abstração. Kant acreditava que o exemplo era uma muleta e os que fossem capazes disso deveriam prescindir do seu uso:

Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.

Immanuel Kant, Crítica da Razão pura, B173-4

Embora essa posição pareça esnobe e arrogante, ela está conforme às exigências próprias ao pensamento de Kant e à sua inclinação ao que é puro, ao que está livre das opacidade e da incerteza da experiência e dos fatos. No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein apresentou um pensamento que para muitos tem o sabor de um pensamento kantiano:

O pensamento é cercado por uma bruma. — Sua essência, a lógica, apresenta uma ordem: a saber, a ordem a priori do mundo; isto é, a ordem das possibilidades, que o mundo e o pensamento tem em comum. Mas essa ordem, parece, deve ser extremamente simples. Ela antecede toda experiência e deve atravessar toda a experiência; nenhuma opacidade e incerteza empírica deve aderir a essa ordem. — Ela deve ser o mais puro cristal. Mas esse cristal não parece uma abstração, mas algo concreto, na verdade como o mais concreto, como se fosse há coisa mais dura que há (Tractatus Logico-Philosophicus 5.5563).

Wittgenstein, Investigações filosóficas, 97

Esse é o contexto em que a pureza tem lugar e onde convém afastar-se da opacidade das coisas empíricas, abstrair-se de suas impurezas e distorções. Acontece que direta ou indiretamente esse contexto marca uma posição sobre um modelo de inteligência. Nessa posição está privilegiado o modelo de inteligência ligado à abstração, ao esvaziamento ou ao descarnamento (descarnação? não sei como dizer) da experiência em busca de regras de determinação do sentido cada vez mais gerais. Pra essa perspectiva, o exemplo só pode ser uma muleta, porque diz mais do que o necessário. Diz o contingente, diz o irrelevante. E ao dizer tanto introduz a vagueza, a pluralidade de sentidos, tudo aquilo que deve ser evitado para que a linguagem possa dizer o sentido claramente, de modo determinado.

(Minha leitura do parágrafo de Kant citado acima é enviesada, o próprio recorte é enviesado — leiam todo o contexto. Por isso o que eu disse é uma meia verdade, Kant não difere de Wittgenstein sobre o papel dos exemplos [dos casos], a diferença entre eles reside no fato de que a lei e a regra para a pragmática de Wittgenstein são determinadas pela constância da prática, enquanto que o problema da determinação [do seguir a regra] não estava nem mesmo posto no marco determinista do pensamento de Kant. Para Kant, a estruturação começa pelo mais geral [o vetor de determinação é a generalidade] e não há interesse lógico em uma genealogia como a de Wittgenstein ou a de Foucault.)

Quando o pensamento de Wittgenstein começa a mudar, muda também a sua relação com o caso, com o exemplo. A ênfase sobre o papel da ação — que o leva a valorizar tanto a etnologia — tira o exemplo da lata de lixo e em certo sentido o coloca no próprio centro da atividade de esclarecimento conceitual que é a filosofia. Isso abre espaço a um modo completamente diferente de pensar a inteligência. Um modo mais plural, mais generoso no seu olhar. Nosso olhar continua sendo arrogante, porque não conseguimos conceber inteligências dignas do nosso apreço se não possuirem, por exemplo, conceitos aritméticos. Mas o espaço está aberto para que o cinema — como desde sempre a literatura — possa nos instruir sobre o mundo fora das nossas bolhas. Assim, podemos forjar nós mesmos as medidas e os padrões de inteligência que usaremos de agora em diante — ao invés de nos fiar nesse elogio à abstração. Sobre esse mesmo tema um exemplo do cinema pode nos ajudar.

Uma boa imitação da inteligência humana? (Não há legendas porque o vídeo não é meu, pesquei no Youtube, essa é uma cena clássica de Blade Runner.)

A flexibilização dos padrões de inteligência estimulada pela pragmática se dá quase ao mesmo tempo que a busca de Alan Turing por um modo de distinguir a inteligência humana da inteligência artificial. O que vale pra seres humanos e androides, vale também na relação dos humanos entre si e entre os humanos e os animais. Digo, podemos também nos perguntar pela expressão de diferentes formas de inteligência. Vamos deixar de lado a inteligência dos animais e a dos androides e ficar somente com os diferentes paradigmas de inteligência entre humanos. Depois de ter dado essa volta, fica fácil (ou menos difícil) ver porque a cultura pop pode trazer oxigênio à atmosfera do pensamento. Porque o exemplo, a concretude de casos particulares próximos ao maior número de pessoas, reduz o peso da abstração como critério de inteligência e permite que outras formas de inteligência se expressem ou possam ser vistas por nossos olhares, agora menos engessados. O pensamento precisa tanto da abstração como da imaginação e nem sempre a capacidade de abstrair e de imaginar coincidem. Podendo circular entre diversas expressões de inteligência, o pensamento — já como coisa sem dono — está livre para se manifestar nos mais variados cantos da cultura. (Virar um meme?)

Essa valorização da multiplicidade da inteligência produz um efeito cascata cujo alcance não podemos esgotar. Da perspectiva do indivíduo ela abre espaço à criação, à ruptura de paradigmas, na medida em que abranda a força normativa sedimentada em modos estáveis de avaliar a inteligência. Da perspectiva social, ela recoloca os atos inteligentes em contextos, isto é, em contextos históricos, explicita valores, e pouco a pouco a flexibilização pode construir a atmosfera para pensamentos novos, dirigidos por novos eixos. Como enxergar o mundo sob novas lentes, apoiado em novos eixos? Como dar espaço a novas perspectivas sem reavaliar também a própria medida de inteligência, sem flexibilizar seus próprios padrões? Como resistir à tendência à estabilidade encontrando uma boa justificação para não mudar?

Nossa obsessão por medidas é tão grande que, quando pensamos na Teoria da Relatividade como expressão inconteste da inteligência, e queremos identificar inteligências igualmente grandiosas fora desse marco teórico, tendemos a recorrer a medidas institucionalmente estabelecidas — e dizemos, por exemplo, que Shakespeare é um gênio fora das ciências. No entanto, o problema persiste porque a generalização dos padrões de inteligência tende a nos tornar meros aplicadores de normas, pessoas inclinadas a usar os critérios consensualmente reconhecidos, ao invés de criar nossas próprias medidas. A tendência a confiar nos quadros de organização de valor (quadros normativos) tem o mesmo pendor a engessar nossa capacidade de enxergar a inteligência que o apego à abstração. Isso sem falar no que pode haver de meramente performático na expressão da inteligência, como, por exemplo, a erudição. Não há melhor máscara para a estupidez.

Entre o caso e a regra estivemos sempre a buscar as regras e a leis mais gerais. Precisamos de outro olhar, um olhar que saiba também privilegiar o concreto, que saiba ver no concreto o manancial de novas generalidades, de novos abstratos.

O humor é uma das expressões mais interessantes da inteligência e, no contexto dessa discussão, a questão que se coloca pra mim uma e outra vez é: qual é a expressão máxima da inteligência no humor? Como identificá-la em sua particularidade, em sua singularidade? É uma obra? O humor é um trabalho não poucas vezes fragmentário, embora constante. Mas só podemos constatar sua grandiosidade contemplando uma obra inteira, uma seleção dos seus melhores momentos? Nenhum particular a revela? É a partir dos casos que alguém aprende a enxergar a regra, são os exemplos e as amostras (a constância delas) que determinam as dimensões gerais que depois vemos claramente nas leis e padrões que descrevem uma regularidade. Quando nos damos conta disso, descobrimos que há milhões de domínios recônditos onde a inteligência se manifesta sem testemunhas (e não apenas dentro da cultura popular). Embora minha tendência à didática do radicalismo me dirija à inteligência dos animais, das aranhas, por exemplo, o humor, essa marca tão própria ao humano, é um bom ponto de partida para o exercício do olhar.

Laerte e sua obra monumental
Linha do trem, recentemente redescoberto.
Molg H., um gênio incompreendido.

Nunca é demais lembrar que não se trata de abolir distinções de valor, como elas fossem inúteis ou inadequadas tal como são. Não podemos viver sem valor, mas podemos nos tornar melhores juízes, juízes mais criteriosos, autônomos, generosos, há muito o que melhorar e sem tornar flexíveis nossos padrões é quase impossível ver o que está fora das nossas lentes.

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