Sobre a obrigação de revelar o rosto na França

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The Guardian: ‘Burqa ban’ in France: housewife vows to face jail rather than submit

Parliamentarians and feminists in France have argued that the full veil is a symbol of male oppression and that niqab-wearing women are bullied into it by their husbands

É certo que a burca e o niqab são símbolos de uma sociedade patriarcal que impõe às mulheres um tratamento incompatível com os valores e preceitos da nossa sociedade. Esse tratamento, não sem frequência, produz consequências terríveis, efeitos que nos deixam aterrorizados. Porém, como conciliar a necessária indignação diante de tratamentos semelhantes e o respeito às diferenças que parece também igualmente arraigado em nossos princípios fundamentais?

É em nome das mulheres reprimidas pela severidade dos maridos e da cultura em que elas nasceram que se restringe a liberdade de outras que voluntariamente decidiram se submeter às suas tradições? As feministas que argumentam em favor de medida tem legitimidade para decidir o que é melhor para as mulheres muçulmanas?

Há dois problemas envolvidos aqui: o primeiro, já apontei, nosso compromisso com os direitos humanos, igualdade entre sexos e outras questões elementares encontra uma barreira sólida quando pretende se deslocar para diferentes regiões étnicas; o segundo é uma consequência do primeiro, a legitimidade desse movimento só encontra respaldo na metafísica substancial que consiste em pensar que todas as diferenças estão alicerçadas no solo de um identidade fundamental. Eu já disse, os direitos humanos compreendem uma dificuldade elementar, a universalidade que se pretende construir só se realiza em prejuízo da diferença que desejamos querer respeitar. O que se postula, portanto, é uma substância indiferenciada, abstrata, na camada mais elementar de toda formação identitária. É a partilha dessa substância elementar que investe de legitimidade a pretensão à universalidade dos direitos humanos, que nos permitiria, portanto, decidir como compete se vestir uma mulher que não deve e não pode ser posta em condição inferior.

Estamos constantemente lidando com o desafio de equacionar diferenças. A fórmula geral tem sido o propósito de aceitá-las, uma vez que reconhecemos razoavelmente que a intolerância à diferença esteve/está na base justificatória dos maiores colapsos humanitários. Porém, não parecemos enxergar o impasse que se põe. O compromisso em abraçar a diferença não nos leva muito longe se admitimos igualmente o empenho em defender os direitos humanos. O que resta, no campo prático, é uma certa higiene que impõe à diferença certos padrões. Zizek dirá melhor:

Retomemos o discurso atual sobre a tolerância. Em certo nível esse discurso prega a tolerância universal, mas, se você examinar mais de perto, verá que há um conjunto de condições ocultas, que revela que o indivíduo só é tolerado na medida em que se assemelhe a todos os outros — o discurso determina o que deve ser tolerado. Portanto, na realidade, a cultura atual da tolerância subsiste por meio de uma intolerância radical a qualquer Alteridade verdadeira, a qualquer ameaça real às convenções existentes (…) Cotejamos o Outro com nossas ideias de direitos humanos, dignidade e igualdade entre os sexos, e então, para usar uma formulação ligeiramente cínica, dizemos aceitar os costumes dele que forem aprovados nesse teste. Filtramos o Outro e o que passe pelo filtro é aceito. Mas o que é aceito é esse aspecto superficial, insignificante, que não incomoda ninguém. No fim o que temos é um Outro censurado. O Outro é aceito, mas somente na medida em que for aprovado pelos nossos padrões. — Arriscar o Impossível.

Não se trata de apontar uma solução, não parece razoável professar a relativização dos nossos valores, a plasticidade dos direitos que pretendemos universais. Convém, isso sim, atentar para o dilema perigosamente mascarado nas práticas política cotidianas. Não temos uma resposta satisfatória, mas não parece que nossa reação atual seja a mais adequada. A higienização da diferença não é uma maneira de admiti-la, ao contrário, é a máscara por meio da qual a rejeitamos. Os direitos humanos podem bem ser a empresa catequizante da pos-modernidade. Talvez essa seja um consequência inevitável — não sei — mas não podemos mais fingir que não é essa a consequência.

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Convém ler também a reportagem de Viv Groskop: Liberté, égalité, fraternité – unless, of course, you would like to wear a burqa.

Não parece uma resposta à dificuldade que apontamos indicar que as mulheres que aceitam voluntariamente se submeter ao regime de submissão foram condicionadas a fazê-lo e, portanto, não são livres. É uma lição que Escola de Frankfurt nos legou: “Não faz sentido falar sobre a libertação de homens livre”. Os problemas aqui solicitam uma reformulação — ou pelo menos a reconsideração profunda — de certas concepções como liberdade, identidade e muitos outros conceitos fundantes, conceitos que ganharam uma conotação conflitiva com a surgimento do ímpeto globalizante que tensiona e empurra as diferenças às mesmas regiões.

Por ora, nossa única certeza reside no caráter incerto e invasivo dessas atitudes que pretendem legislar sobre o que é melhor para o outro — e pelas quais almejamos preservar a liberdade por meio de uma restrição da liberdade.

Atualização 1: Não concordo com tudo que diz Gustavo Chacra, mas ele lembra um ponto importante: “judeus ortodoxos, hindus e budistas não sofrem restrições às suas vestimentas”.

Atualização 2: What Not to Wear, artigo do Foreign Policy sobre a polêmica francesa em comparação a outros paises que também impõem um dress code.

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