Meses atrás enviei a algumas amigas um email sobre uma notícia terrível. Juntei a informação ao comentário sobre a prática comum da excisão feminina, resultado, adjetivos nada lisonjeiros dirigidos a tais costumes. Além disso, pedi que elas atentassem para notícias semelhantes. Num mundo globalizado e conectado, a política ganha novas feições e meios de influência; o conhecimento do que acontece nas outras partes do globo é fator determinante para formação de opinião e para que a política externa de um Estado possa também ser um veículo da vontade dos seus representados.
Pois bem, uma amiga respondeu o email. Disse que o caso era preocupante mas acrescentou que era preciso ter cuidado para não cair no etnocentrismo. O estranhamento era em parte resultado da diferença e a questão dos Direitos Humanos mal podia ser colocada no terreno em que se pretendia, em culturas tribais que não partilham nossa visão de mundo.
Quem acompanha este blog sabe que já dei patadas em manifestações etnocêntricas. Mas parece haver um ponto em que o reconhecimento das diferenças já não basta. É certo que são incomensuráveis as culturas e as visões de mundo envolvidas nessa contenda: de um lado a cultura ocidental, teoricamente fundada em princípios humanos fundamentais, de outro, culturas diferentes que não pressupõe nada semelhante ao que chamamos de Direitos Humanos. Pode parecer que este seja mais um caso em que devemos aplicar a regra de enxergar o outro meramente como diferente — e não como errado — e deter assim a condenação veemente que estaríamos prontos a manifestar se o acontecimento ocorresse nos nossos domínios.
No entanto, eis o problema: reconhecer a incomensurabilidade das visões de mundo não significa recuar até um terreno neutro, anterior ao estabelecimento das diferenças. A crítica ao etnocentrismo buscar esclarecer o estatuto das visões de mundo — e das formas de vida — para constituição das práticas e costumes no interior de uma cultura, no intuito de interditar logicamente a pretensão de avaliar uma cultura no interior de outra. Na medida em que são independentes e autônomas, mobilizam elementos diferentes para organização de sua “realidade”. Por isso nenhuma cultura em especial pode se levantar sobre outras, senão pressupondo, arrogando-se privilégios. Ênfase aqui na pressuposição, pois uma cultura que se queira superior exigirá pra si o estatuto lógico de uma pressuposição. Por mais que o sindicato dos etnocentristas pense poder fundamentar essa posição (isto é, fazê-la derivar de outras verdades aceitas), ela será sempre um pressuposto, visto que não há pontos de contato entre as duas culturas, senão aqueles forjados por alguém sintomaticamente interessado em afirmar sua perspectiva.
Volto ao problema: se devemos barrar a pretensão de organizar hierarquicamente as culturas — e, por consequência, legitimar práticas invasivas — por outro lado não podemos deixar de cumprir exigências internas a nossa própria cultura, eis o dilema central da questão Etnocentrismo vs Direitos Humanos. As diferenças que reconhecemos em diferentes culturas, nos costumes de outros povos, não são o bastante para suprimir a semelhança que reconhecemos em outros seres humanos e, portanto, os direitos que lhes atribuimos. A nossa própria cultura nos compele a não ver as diferenças como limites de humanidade: nem diferenças raciais, nem de gênero, nem de etnia. Ela supõe um aspecto comum, partilhado por todos os homens. O paradoxo é esse: reconhecer a razão de ser da crítica ao etnocentrismo e ao mesmo tempo ser um defensor de direitos humanos, para quem não pode haver exceções.
Nesse dilema, eu sou assumidamente um “etnocentrista” — e quem não é corre sério risco de abrir espaço para segregação de diferentes tipos. É uma questão delicada, a ser pensanda, mas, como alguém que acredita nos Direitos Humanos, por exigência lógica interna a minha própria cultura, não aceito a ideia de que algo pode suprimir dos seres humanos seus direitos mais fundamentais — nem mesmo a diferenças étnicas. As implicações de pensar que a diferença étnica permite uma flexibilização daquilo que nós consideramos direitos fundamentais são, repito, a possibilidade de abertura para formas indesejáveis de segregação.
Essa questão parece não poder se resolver no plano de argumentação. Não encontraremos critérios para justificar uma natureza humana comum, como suporte de derivação dos seus direitos humanos (do mesmo modo como não encontramos critérios, a maneira indutiva e científica, para aquilo que chamamos vida, na questão do aborto e das células tronco). Aceitar a validade dos Direitos Humanos envolve aceitar a identidade humana mais geral — e não identificá-la (ninguém “identifica” alguém como ser humano, pois a dúvida quanto a isso não se põe, exceto em casos expecionais, dignos de ficção científica). O que resta é decidir o modo como lidaremos com aqueles que, em outras culturas, aceitam a segregação que nós não aceitamos. Não podemos, no entanto, nos furtar às exigências da nossa própria cultura, sob pena de sermos acusados de desumanidade.
Antes das ideias de ´´direitos fundamentais“, já existia a cultura. E concordo contigo, você realmente é Etnocentrista.
Não entendi, Filipe.
"Antes de 'direitos fundamentais' já havia cultura?" O que isso significa?