A bolha é uma dessas ideias que circulam pela internet sem que ninguém tenha dúvida sobre o seu sentido, por isso mesmo pode ser uma ferramenta interessante. O que a caracteriza é o fato de demarcar muito claramente um lado de fora, isto é, um espaço interno de pertencimento (a bolha em si) e um espaço externo de exclusão. Nesse sentido, a bolha é algo bem diferente de um certo entendimento da lógica, que justamente por sua generalidade não permite que exista um lado de fora. Assim Wittgenstein se expressa:
A lógica preenche o mundo; os limites do mundo são também seus limites.
Wittgenstein,Tractatus Logico-Philosophicus 5.61
É claro que a bolha não impede que pessoas do lado de dentro e do lado de fora integrem um mesmo grupo segundo outros critérios (sejam subsumidas por algo mais geral), portanto, essa imagem tem limites. Se a lógica pode preencher o mundo e não admite um espaço externo é em função de sua generalidade, pois é uma forma e não um conteúdo. De qualquer modo, a ideia de bolha é interessante, porque embora sempre possamos identificar (fabricar) uma dimensão universal que englobe a todos (preencha o mundo) e, assim, possamos dissolver as separações instauradas por essa ideia, a dúvida que ela sugere persiste como algo não tão fácil de dissipar.
Uma das coisas que se pode pensar a partir de tudo isso é: a razão é algo universal e, portanto, devemos escrevê-la no singular ou há uma pluralidade de razões (a despeito da possibilidade de identificar elementos universais), de tal sorte que devemos escrever no plural, razões e racionalidades? Um caminho, (o único que aceitamos) para responder a essa pergunta é através de uma investigação epistêmica, isto é, devemos produzir um conhecimento que justifique a escolha de uma das duas opções. Essa é a função da verdade, excluir: excluir o falso e conservar o verdadeiro. Nesse contexto tão geral isso significa tentar fazer algo semelhante ao que Kant fez na Crítica da razão pura, dar razões para acreditar que partilhamos um mesmo modo de julgar e pensar, apesar das nossas diferenças e das contingências manifestas na linguagem natural. É preciso ir em direção ao que é puro e necessário, ao que não se deixa afetar pelo tempo. Se a gente quiser levar a sério essa discussão a coisa se complexifica e foge do escopo de uma postagem de blog, então serei dogmático para apresentá-la de modo mais simples.
Se aquilo que reconhecemos como universal na linguagem em certo sentido não constitui uma base ou fundamento, mas deve ser visto como um eixo, então é possível que as pessoas partilhem um mesmo eixo sem que pertençam ao mesmo sistema. Em filosofia, essa discussão tangencia o debate entre fundacionalismo e coerentismo sobre sistemas, discussão que envolve gente graúda em filosofia da lógica, como Susan Haack (em Evidence and Inquiry, por exemplo). O que me interessa como wittgensteiniano fascinado pelo impacto da pragmática é o outro caminho, aquele que não aceitamos, que nem sequer vemos, o de uma resposta não epistêmica, ou melhor, de um entendimento da gênese do sentido que torna a pluralidade inescapável, a despeito da nossa inclinação frequentemente ideológica a afirmar a unidade da razão (a universalidade da razão é projeto intelectual mas também ideológico).
E é por isso que a bolha é uma oportunidade, porque ela torna a discussão passível de ser entendida em contextos não abstratos, por meio de exemplos, ainda que devamos ter em consideração que são apenas analogias. Se existe uma dimensão universal e comum à qual devemos retornar quando nos vemos empacados em desacordos aparentemente insuperáveis, excelente!, mas e se nos falta essa dimensão? O que se coloca a partir disso é: como romper as bolhas? Como agir diante do que é radicalmente diferente de mim? São os desacordos que emergem como questão central. E os modos de encarar os desacordos são importantes diante da post-truth, do terraplanismo, da aparente necessidade de convencer os outros seres humanos a abandonar o consumo industrial (ou não) de carne, ou de aceitar a ciência (amém!) e outra forma de vida. Sem falar na urgência com que deveríamos aprender a aprendercom o que consideramos inferior ou não desenvolvido. As bolhas não são uma questão epistêmica, mas ética e política, e não há conhecimento que possa nos dizer o que fazer diante desses impasses.
As discussões que se desdobram ou que se ligam a essa questão formam um campo aberto, mas parece urgente que tenhamos presente essa reflexão porque sua natureza ética torna inevitável e atual uma pergunta elementar: o que fazer?
Há duas coisas que eu gosto em Zizek: o humor sempre presente nos seus textos e falas, e a sua atitude em relação à cultura pop. Meus textos não tem nem um grão de humor, são completamente planos nesse quesito. Boa parte dos comentaristas políticos de quem eu gosto incorpora o humor no que escreve e isso torna a atmosfera dos seus textos menos rarefeita — eu tenho em mente: Celso Rocha de Barros, José Roberto de Toledo, Conrado Hübner Mendes e em certa medida até Marcos Nobre. Aceitar a cultura pop — essa categoria tão abrangente e vaga — é outro elemento que ajuda trazer oxigênio à atmosfera dos pensamentos.
A chave pra entender a oxigenação da atmosfera promovida pela cultura pop está na flexibilização dos padrões de inteligência e em suas consequências discursivas. Usemos uma meia verdade para ilustrar como se dá essa flexibilização. Suponhamos que em relação ao entendimento e à capacidade de julgar há duas posições particularmente importantes e antagônicas. Duas posições distintas a respeito da importância do exemplo e da abstração. Kant acreditava que o exemplo era uma muleta e os que fossem capazes disso deveriam prescindir do seu uso:
Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender (…) Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.
Immanuel Kant, Crítica da Razão pura, B173-4
Embora essa posição pareça esnobe e arrogante, ela está conforme às exigências próprias ao pensamento de Kant e à sua inclinação ao que é puro, ao que está livre das opacidade e da incerteza da experiência e dos fatos. No Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein apresentou um pensamento que para muitos tem o sabor de um pensamento kantiano:
O pensamento é cercado por uma bruma. — Sua essência, a lógica, apresenta uma ordem: a saber, a ordem a priori do mundo; isto é, a ordem das possibilidades, que o mundo e o pensamento tem em comum. Mas essa ordem, parece, deve ser extremamente simples. Ela antecede toda experiência e deve atravessar toda a experiência; nenhuma opacidade e incerteza empírica deve aderir a essa ordem. — Ela deve ser o mais puro cristal. Mas esse cristal não parece uma abstração, mas algo concreto, na verdade como o mais concreto, como se fosse há coisa mais dura que há (Tractatus Logico-Philosophicus 5.5563).
Wittgenstein, Investigações filosóficas, 97
Esse é o contexto em que a pureza tem lugar e onde convém afastar-se da opacidade das coisas empíricas, abstrair-se de suas impurezas e distorções. Acontece que direta ou indiretamente esse contexto marca uma posição sobre um modelo de inteligência. Nessa posição está privilegiado o modelo de inteligência ligado à abstração, ao esvaziamento ou ao descarnamento (descarnação? não sei como dizer) da experiência em busca de regras de determinação do sentido cada vez mais gerais. Pra essa perspectiva, o exemplo só pode ser uma muleta, porque diz mais do que o necessário. Diz o contingente, diz o irrelevante. E ao dizer tanto introduz a vagueza, a pluralidade de sentidos, tudo aquilo que deve ser evitado para que a linguagem possa dizer o sentido claramente, de modo determinado.
(Minha leitura do parágrafo de Kant citado acima é enviesada, o próprio recorte é enviesado — leiam todo o contexto. Por isso o que eu disse é uma meia verdade, Kant não difere de Wittgenstein sobre o papel dos exemplos [dos casos], a diferença entre eles reside no fato de que a lei e a regra para a pragmática de Wittgenstein são determinadas pela constância da prática, enquanto que o problema da determinação [do seguir a regra] não estava nem mesmo posto no marco determinista do pensamento de Kant. Para Kant, a estruturação começa pelo mais geral [o vetor de determinação é a generalidade] e não há interesse lógico em uma genealogia como a de Wittgenstein ou a de Foucault.)
Quando o pensamento de Wittgenstein começa a mudar, muda também a sua relação com o caso, com o exemplo. A ênfase sobre o papel da ação — que o leva a valorizar tanto a etnologia — tira o exemplo da lata de lixo e em certo sentido o coloca no próprio centro da atividade de esclarecimento conceitual que é a filosofia. Isso abre espaço a um modo completamente diferente de pensar a inteligência. Um modo mais plural, mais generoso no seu olhar. Nosso olhar continua sendo arrogante, porque não conseguimos conceber inteligências dignas do nosso apreço se não possuirem, por exemplo, conceitos aritméticos. Mas o espaço está aberto para que o cinema — como desde sempre a literatura — possa nos instruir sobre o mundo fora das nossas bolhas. Assim, podemos forjar nós mesmos as medidas e os padrões de inteligência que usaremos de agora em diante — ao invés de nos fiar nesse elogio à abstração. Sobre esse mesmo tema um exemplo do cinema pode nos ajudar.
Uma boa imitação da inteligência humana? (Não há legendas porque o vídeo não é meu, peguei no Youtube, essa é uma cena clássica de Blade Runner.)
A flexibilização dos padrões de inteligência estimulada pela pragmática se dá quase ao mesmo tempo que a busca de Alan Turing por um modo de distinguir a inteligência humana da inteligência artificial. O que vale pra seres humanos e androides, vale também na relação dos humanos entre si e entre os humanos e os animais. Digo, podemos também nos perguntar pela expressão de diferentes formas de inteligência. Vamos deixar de lado a inteligência dos animais e a dos androides e ficar somente com os diferentes paradigmas de inteligência entre humanos. Depois de ter dado essa volta, fica fácil (ou menos difícil) ver porque a cultura pop pode trazer oxigênio à atmosfera do pensamento. Porque o exemplo, a concretude de casos particulares próximos ao maior número de pessoas, reduz o peso da abstração como critério de inteligência e permite que outras formas de inteligência se expressem ou possam ser vistas por nossos olhares, agora menos engessados. O pensamento precisa tanto da abstração como da imaginação e nem sempre a capacidade de abstrair e de imaginar coincidem. Podendo circular entre diversas expressões de inteligência, o pensamento — já como coisa sem dono — está livre para se manifestar nos mais variados cantos da cultura. (Virar um meme?)
Essa valorização da multiplicidade da inteligência produz um efeito cascata cujo alcance não podemos esgotar. Da perspectiva do indivíduo ela abre espaço à criação, à ruptura de paradigmas, na medida em que abranda a força normativa sedimentada em modos estáveis de avaliar a inteligência. Da perspectiva social, ela recoloca os atos inteligentes em contextos, isto é, em contextos históricos, explicita valores, e pouco a pouco a flexibilização pode construir a atmosfera para pensamentos novos, dirigidos por novos eixos. Como enxergar o mundo sob novas lentes, apoiado em novos eixos? Como dar espaço a novas perspectivas sem reavaliar também a própria medida de inteligência, sem flexibilizar seus próprios padrões? Como resistir à tendência à estabilidade encontrando uma boa justificação para não mudar?
Nossa obsessão por medidas é tão grande que, quando pensamos na Teoria da Relatividade como expressão inconteste da inteligência, e queremos identificar inteligências igualmente grandiosas fora desse marco teórico, tendemos a recorrer a medidas institucionalmente estabelecidas — e dizemos, por exemplo, que Shakespeare é um gênio fora das ciências. No entanto, o problema persiste porque a generalização dos padrões de inteligência tende a nos tornar meros aplicadores de normas, pessoas inclinadas a usar os critérios consensualmente reconhecidos, ao invés de criar nossas próprias medidas. A tendência a confiar nos quadros de organização de valor (quadros normativos) tem o mesmo pendor a engessar nossa capacidade de enxergar a inteligência que o apego à abstração. Isso sem falar no que pode haver de meramente performático na expressão da inteligência, como, por exemplo, a erudição. Não há melhor máscara para a estupidez.
Entre o caso e a regra estivemos sempre a buscar as regras e a leis mais gerais. Precisamos de outro olhar, um olhar que saiba também privilegiar o concreto, que saiba ver no concreto o manancial de novas generalidades, de novos abstratos.
O humor é uma das expressões mais interessantes da inteligência e, no contexto dessa discussão, a questão que se coloca pra mim uma e outra vez é: qual é a expressão máxima da inteligência no humor? Como identificá-la em sua particularidade, em sua singularidade? É uma obra? O humor é um trabalho não poucas vezes fragmentário, embora constante. Mas só podemos constatar sua grandiosidade contemplando uma obra inteira, uma seleção dos seus melhores momentos? Nenhum particular a revela? É a partir dos casos que alguém aprende a enxergar a regra, são os exemplos e as amostras (a constância delas) que determinam as dimensões gerais que depois vemos claramente nas leis e padrões que descrevem uma regularidade. Quando nos damos conta disso, descobrimos que há milhões de domínios recônditos onde a inteligência se manifesta sem testemunhas (e não apenas dentro da cultura popular). Embora minha tendência à didática do radicalismo me dirija à inteligência dos animais, das aranhas, por exemplo, o humor, essa marca tão própria ao humano, é um bom ponto de partida para o exercício do olhar.
Laerte e sua obra monumentalLinha do trem, recentemente redescoberto.Molg H., um gênio incompreendido.
Nunca é demais lembrar que não se trata de abolir distinções de valor, como elas fossem inúteis ou inadequadas tal como são. Não podemos viver sem valor, mas podemos nos tornar melhores juízes, juízes mais criteriosos, autônomos, generosos, há muito o que melhorar e sem tornar flexíveis nossos padrões é quase impossível ver o que está fora das nossas lentes.
Há algum tempo eu tenho insistido num ponto: eliminar a arbitrariedade, a vontade e qualquer coisa que escape à determinação causal da ciência corresponde à tarefa de um determinado projeto de racionalidade. Um projeto estreitamente vinculado a concepções filosóficas entretecidas à Matemática e à Lógica. De acordo com esse marco teórico, a distinção kantiana entre o reino da Liberdade e o reino da Natureza deve ser abandonada e assim ficaríamos apenas com a Natureza. Muitas perspectivas interessantes se derivam das ideias ligadas a esse projeto. No entanto, embora sua força e seus efeitos se vejam claramente em casos como a Cambridge Analytica, fenômenos comuns e decisivos do uso da linguagem escapam de sua pretensão generalista e determinista. Nas suas anotações Wittgenstein recorta uma frase de Schopenhauer que pode ser um bom ponto de partida para olhar desses fenômenos:
Se você se encontra perplexo tentando convencer alguém de algo sem ser capaz de sair do lugar, diga a si mesmo que é a vontade e não o intelecto o que você está enfrentando.
Como é possível conceber a mudança sem ter em conta a adesão que as pessoas tem às suas crenças e visão de mundo? Que estratégia podemos empregar para levá-las a crer naquilo que julgamos necessário se não consideramos a estabilidade que uma visão de mundo produz e a instabilidade gerada pelo seu abandono?
Sistemas de referências como estabilizadores lógicos e psicológicos formam um tema que me interessa muitíssimo e sobre o qual já escrevi aqui e em outros lugares, mas há ainda outro aspecto que anda lado a lado a essa discussão. O produto psicológico da certeza (lógica) é a convicção, e do sentimento de convicção se deriva, não poucas vezes, a confiança. A confiança é um elemento indispensável para que certas ideias possam produzir resultados que nos parecem naturais: um inventor, um cientista, um escritor, qualquer um quem que, dentro de um dado paradigma, tenha uma ideia dissonante precisa ter confiança suficiente para afirmar suas ideias, a despeito da recepção e das críticas. Entretanto, essa confiança não é a marca dos gênios e das pessoas verdadeiramente investidas de uma visão nova e transformadora. Em realidade, a confiança é mais comum do que parece e dela não se pode inferir nada sobre a qualidade e o valor das ideias de quem a possui.
A confiança não apenas estabiliza uma visão de mundo, ela tende a promover e projetar as crenças e ideias que a caracterizam. Disso resulta uma situação embaraçosa: se por um lado a confiança é imprescindível para que ideias novas possam projetar-se e produzir efeitos que só o novo pode nos trazer, por outro, o fato de que ela seja tão bem distribuída quanto o bom senso de que fala Descartes parece produzir o efeito de impedir que as pessoas mudem a forma como pensam.
O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.
Descartes, discurso do método
Disso tudo resultam dúvidas exasperantes: qual é a medida entre a convicção e a incerteza? Que relação deve haver entre o conhecimento e a ignorância? É possível passar toda a vida escrevendo sobre esse tema sem esgotá-lo, mas o que me interessa agora é salientar que, embora a questão se ramifique ou se entrelace a um sem número de outras (como a tendência a confirmação), uma palavra muito comum pode apresentar de modo simples o que está na raiz de toda essa discussão: teimosia. A teimosia dá conta dessa resistência da vontade, da face negativa, por assim dizer, da confiança e da estabilidade. Trata-se inegavelmente de um problema filosófico significativo: qual é o papel da resistência nos intercâmbios linguísticos e nos usos do discurso?
Há mais variáveis nessa discussão do que minha incipiente capacidade de sistematizar me permite gerenciar, portanto a seguir eu vou colocar três pontos torcendo para que lhes pareça claro o vínculo entre todas essas ideias.
Nietzsche tinha um modo curioso de conceber uma certa expressão da força de caráter:
A estreiteza de opiniões, transformada em instinto pelo hábito, leva ao que chamamos de força de caráter. Quando alguém age por poucos, mas sempre os mesmos motivos, seus atos adquirem grande energia; se esses atos harmonizarem com os princípios dos espíritos cativos, eles serão reconhecidos e também produzirão, naquele que os perfaz, o sentimento da boa consciência. Poucos motivos, ação enérgica e boa consciência constituem o que se chama força de caráter. Ao indivíduo de caráter forte falta o conhecimento das muitas possibilidades e direções da ação; seu intelecto é estreito, cativo, pois em certo caso talvez lhe mostre apenas duas possibilidades; entre essas duas ele tem de escolher necessariamente, conforme sua natureza, e o faz de maneira rápida e fácil, pois não tem cinqüenta possibilidades para escolher.
Nietzsche, humano, demasiado humano, § 228
É inevitável lembrar de um certo capitão reformado do Exército berrando, com enorme convicção, ante um apático jornalista: “através do voto cê não vai mudar nadaaaaa nesse país”. Não dá pra negar que a estreiteza confere muita força às palavras e às ações, e não sem razão as pessoas se sentem atraídas por discursos carregados de convicção.
Nesse mesmo contexto, ao examinar questão do gênio, Nietzsche destacou que é tortuoso e incerto o caminho pelo qual o gênio poderia conferir às suas próprias ações a mesma energia que uma pessoa estreita manifestava.
Comparado àquele que tem a tradição a seu lado e não precisa de razões para seus atos, o espírito livre é sempre débil, sobretudo na ação; pois ele conhece demasiados motivos e pontos de vista, e por isso tem a mão insegura, não exercitada. Que meios existem para torná-lo relativamente forte, de modo que ao menos se afirme e não pereça inutilmente?
Nietzsche, humano, demasiado humano, § 230
Nas últimas décadas essa a debilidade do gênio e a confiança dos estreitos, por assim dizer, tem atraído o interesse científico por causa de investigações psicológicas como as do chamado Efeito Dunning-Kruger. Esse efeito pretende explicar a inclinação das pessoas estreitas e obtusas a sobrevalorizar suas competências e, por outra parte, a tendência dos espíritos verdadeiramente fortes a menosprezar suas habilidades. Não é à toa que Nietzsche se considerava um psicólogo sem igual.
Por fim, em certa medida a teimosia, a confiança e a convicção são elementos indispensáveis, pois não parece nem possível nem desejável simplesmente eliminá-las. No entanto, mesmo no melhor dos casos, quando a convicção acompanha ideias geniais e transformadoras, há sempre o risco de que assim também se engesse uma visão de mundo. Talvez o aspecto que mais tardia e inadvertidamente tenha me chamado atenção no pensamento de Wittgenstein seja seu descompromisso com a estabilidade. Suas ideias eram reformadas numa velocidade que tornava quase impraticável acompanhá-las, essa era uma queixa conhecida entre alguns de seus amigos. O desapego à estabilidade pode bem denotar uma atitude valiosa a respeito da relação entre conhecimento e ignorância. Esse texto já está longo e coalhado de citações, mas permitam uma última:
Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio.
Gilles deleuze, diferença e repetição (prólogo)
Eu acredito que as armadilhas da convicção só podem ser superadas quando nos parecer natural não apenas admitir alguma instabilidade em nossa visão de mundo mas também estar a vontade com a nossa própria ignorância. É difícil conceber a comunicação e o entendimento como ferramentas capazes de responder às exigências de transformação que teremos que levar a cabo nas próximas (décadas && séculos) sem incorporar esses dois elementos à nossa cultura e subjetividade. Toda a tradição determinista, aquela que eu mencionei no primeiro parágrafo, dá aos acordos um valor desmedido e por isso pouco ou nada tem a oferecer ante aos conflitos e desacordos que, camufladamente, abundam na vida humana. É o caráter desestabilizador dos conflitos e desacordos aquilo sobre o que deveríamos meditar. Quero num outro momento escrever sobre esses desacordos.
PS. Ao longo da história humana muita gente boa notou a convicção dos estúpidos e a sua contraparte, mas não dá pra deixar de lembrar de Yeats, em The Second Coming:
The best lack all conviction, while the worst Are full of passionate intensity.
Quando estão discutindo ou conversando as pessoas tendem a identificar intenções e a usá-las como parte de seu próprio discurso. Por exemplo, a intenção de quem escreve um texto pode ser mobilizada contra o autor. Wittgenstein disse coisas curiosas sobre intenção, dentre elas, que um gato espreitando um pássaro é a expressão natural de intenção. A intenção pode até mesmo ter uma expressão natural. Isso não significa que essa intenção não possa ser objeto de disputa e controvérsia. Portanto, parece ainda menos aconselhável que ela seja empregada como uma espécie de evidência em estratégias argumentativas. E esse é um caso comum.
Poderíamos estar de acordo que todo texto expressa uma intenção, mas isso não quer dizer que a intenção cumpra uma função argumentativa no texto. Sempre que identificamos uma intenção com a qual não concordamos, nos apressamos em denunciá-la. Assim o cenário é: uma intenção não apresentada no texto é utilizada para refutar ou objetar o argumento ao qual supostamente ela se liga. O sujeito que assim se vale das intenções em geral constrói seu argumento em função da necessidade dar força à sua denúncia, isto significa que o argumento inicial ao qual à intenção supostamente está ligada é não raras vezes completamente elidido. Ora, a elisão do argumento é uma das características marcantes das falácias não-formais. Vejamos uma das mais características, a falácia ad hominem.
Nos tempos bicudos em que vivemos, imagine um deputado do PT que tivesse feito um forte e articulado discurso contra o Estatuto da Família. Agora imagine que alguém escreve um texto chamando-o de petralha e alegando que o propósito do seu discurso é solapar a base moral da sociedade brasileira, a família (heteronormativamente constituída). O que foi feito neste caso? Os eventuais argumentos apresentados pelo deputado foram solenemente ignorados e a resposta a eles, que deveria ser argumentativa, torna-se falaciosa, pois elude aquilo a que deveria responder: suas ideias e argumentos. Mas claro que se você desqualifica alguém e sugere que as suas intenções são tais e tais, seus interlocutores podem eventualmente estar de acordo contigo ou pode ter a mesma relação de repulsa em relação à intenção denunciada. Isso significa que esse discurso, embora falacioso, pode ser eficiente. Se o discurso falacioso não fosse eficiente, ele teria simplesmente deixado de existir. No entanto, ele frequentemente causa os efeitos esperados. O que me parece preocupante, no que diz respeito às intenções, é que este tipo de estratégia não esteja restrita a classe daqueles que escrevem com a boca amarga de fel. Podemos encontrá-la não poucas vezes no discurso de pessoas bem qualificada, de discurso articulado e, porque não dizer, na expressão gente bem intencionada.
Há muitos contextos em que a denúncia de intenções é de fato uma tática válida, bem como há circunstâncias em que o ad hominem é estratégia legítima. (Em contextos jurídicos, a condição de uma pessoa, que deveria ser irrelevante para avaliar a verdade do que ela diz, pode ser determinante para se estabelecer a credibilidade de suas palavras, portanto, o ad hominem pode não ser considerado uma tática inválida). Esses contextos não são o que me preocupam. Preocupante é que nós estejamos não apenas desatentos aos abusos, isto é, aos casos nos quais a denúncia é mera elisão (bem ou mal intencionada) do argumento, mas também profundamente inclinados a empregar, nós mesmos, táticas semelhantes.
Pensar e argumentar são coisas distintas. Podemos ter o mais complexo emaranhado de pensamentos em nossa cabeça, as convicções as mais certas, as mais redentoras, as mais importantes, e sermos incapazes de transformá-las em argumentos. O pensamento não necessariamente está determinado — e na maioria das vezes não está. Daí que a argumentação é o compromisso público do escritor. A linguagem só existe como coisa pública. O emaranhado de ideias que temos em nossas cabeças não tem nenhuma importância pro mundo. Nenhuma. Senão, obviamente, como coisa expressa publicamente. Uma válvula que pode ser girada sem que implique nenhuma mudança na engrenagem da qual faz parte não tem nenhum valor, é como se não existisse, como se não fosse parte do mecanismo. Nós confundimos a importância (privada) dos nossos pensamentos com sua importância pública. A importância pública de um pensamento está na sua capacidade de ser expresso (argumentativamente ou não, pois há pensamentos em filmes, poesias, músicas, encenações, danças, etc.). Insistir no caráter público da linguagem equivale a dizer: toda intersubjetividade só pode ser pública. Há pessoas que nós entendemos sem palavras, apenas por olhares e gestos, mas o texto é o compromisso com uma audiência muito mais ampla do que o punhado de pessoas (se tal) com as quais podemos nos entender sem palavras. E esse é o problema da banalização da denúncia de intenções.
Nós podemos encontrar muitas pessoas que partilham de nossas perspectivas e podemos mobilizá-las de muitas maneiras. E uma dessas maneiras é: indicando aquilo que elas, como nós, rejeitam. Portanto, quando alguém denuncia uma intenção, e mobiliza os outros contra ela, não necessariamente essa pessoa está rejeitando os argumentos aos quais a intenção se liga. Neste caso, tratar-se de anular a proposta do debate, trazendo, como “argumento”, a intenção que anima a proposta.
— Vejam, esse sujeito está querendo destruir a base moral da nossa sociedade, não deem atenção ao que ele diz.
Os argumentos não estão assim rejeitados, eles apenas não foram confrontados. Às vezes essa é uma maneira de enfrentar o que não se entende. Mas é uma maneira desonesta e daninha, mesmo quando usada inadvertidamente, embora eu saiba que muita gente não se dá conta disso. Toda expressão linguística pode ser a causa que leva alguém a aderir a uma perspectiva, importante é que ela seja também uma razão, isto é, que preservemos o espaço público no qual as razões estão disponíveis para serem contestadas ou confirmadas. Enquanto nos atemos às intenções e às afinidades que partilhamos com outras pessoas que podem ver as coisas como nós vemos, oferecemos pouco ou nada ao mundo, e só somos capazes de mobilizar aqueles que já partilham do nosso próprio ponto de vista. (Escrevi sobre tática semelhante quando comentei as estratégias de Diogo Mainardi)
*
Quem argumenta por intenções precisa quase sempre do tribunal de seus pares. E não importa a que tipo de grupo a pessoa pertença: liberais, esquerdistas, fascistas, ateístas, religiosos, etc, etc. É reconfortante argumentar para quem tende a concordar com você. Esses tribunais não estão comprometidos com a verdade (ou mesmo com o sentido), mas apenas com a manutenção e exercício do poder que eles representam. O poder de sentenciar a intenção do outro.
Intenções são elementos importantes em tribunais morais ou jurídicos, mas não em ciência ou filosofia*. O que não significa que eles não sejam usados aí, provavelemente são. Em filosofia deve haver casos em que filósofos supõem intenções de outros pensadores a fim de denunciar uma coisa ou outra, mas mesmo nesse casos a intenção não é senão elemento secundário e acessório. No Direito ou na Moral, ao contrário. Decidir sobre as intenções de alguém é decidir se se deve ou não responsabilizá-lo por algo. Por isso não raras vezes vemos, dentre as pessoas preocupadas em julgar intenções, a formação de grupos de pessoas (podem ser duas ou três pessoas até grupos inteiros) nos quais um certo juízo é comum. Assim elas se fortalecem umas às outras. Mas esse é exatamente o contrário do propósito científico (e retórico, no sentido antigo, quase perdido) de ampliação da auditório (e da anuência a uma tese) e do esforço de argumentar para uma pretensa audiência universal. Julgar intenções é uma prática comum e necessária em parte da nossa vida cotidiana, no entanto, quando se converte num instrumento argumentativo sistemático atrelado a tribunais já constituídos (grupos) pode se tornar a expressão de preguiça intelectual e conformismo (de pertencer a um grupo que apoia certas classes de juízos e ignorar os restantes).
* Eu posso imaginar que intenções sejam importantes em teorias estéticas e coisas do gênero. Mas trata-se de mostrar intenções e não inferi-las. O auditório pretendido é o universal, não um tribunal com poderes condenatórios. A diferença é sútil mas importante.