A linguagem é como uma pele, como uma casca, um exoesqueleto — ela nos enforma e define nossa relação com o mundo, marca a fronteira que nos separa do lado de fora. Para formar essa pele é preciso muito fingimento, muita imitação. A relação de dependência com o Outro nos escraviza porque nos condiciona a uma forma de heteronomia. Ou seja, para dominar uma linguagem devemos necessariamente, ao longo de um tempo de duração indeterminada, repetir e imitar, como bons animais que somos. Imitamos o que estiver mais perto — esse é o grau de sofisticação do “critério”. Ou quem parecer mais adaptado dentre todos aqueles que estão por perto.
Durante esse tempo não somos mais que uma máscara e um rosto sem expressões próprias. Aquela máscara que Clarice Lispector dizia ser o primeiro gesto humano solitário. E em que momento surge a autonomia? — Quem disse que a autonomia precisa surgir?
Do ponto de vista do indivíduo, a autonomia do pensamento não é uma etapa necessária e obrigatória do processo de construção simbólica. A heteronomia sim é necessária, logicamente necessária (quase redundância [?] imprescindível), mas a autonomia não. A autonomia é pouco adaptativa. O que não significa dizer que ela seja sem valor, seu valor é imenso. Uma parte significativa, se não a totalidade, de tudo que tem valor na cultura depende das expressões da autonomia do pensamento. A cultura é um trabalho coletivo, mas o pensamento é sempre individual, ainda que se beneficie tremendamente da cultura. A importância da cultura pra formação do pensamento dos indivíduos é inquestionável, herdamos a linguagem por meio da cultura, e a linguagem é esse lugar onde o Eu pode nascer. Até o afeto do corpo é uma linguagem que se aprende. Uma linguagem não proposicional, claro, um jogo. É preciso lembrar dessa parte não proposicional pra entender o primado da prática sobre as regras e normas. Mas isso não vem ao caso agora. O caso agora é que o pensamento individual, tortuoso, pode legar os mais belos frutos à cultura e nem por isso deixar de ser vivido como um traço pouco adaptativo. Bem, essa tese é discutível! É certo que há por aí quem pense a autonomia como um dom divino capaz de tornar nítida, lúcida e serena toda a percepção da realidade. No entanto, minha percepção das expressões da autonomia na cultura pinta um retrato bem diferente, mas as duas perceptivas são perfeitamente compatíveis. Na verdade, o que importa nessa história toda é constatar que do ponto de vista lógico e histórico o indivíduo não é obrigado a se tornar autônomo e se libertar desse inescapável vínculo que nos liga aos Outros que imitamos e repetimos (por que não dizer: que nós papagaiamos?). Nesse contexto, se nos fosse dado escolher se queremos ou não nos emancipar e nos libertar desse vínculo, essa seria uma escolha à qual poderíamos dizer não. Agora imagine a cena, você anda pela calçada de uma rua próxima à sua casa e uma pessoa te aborda, do nada:
— Olá, tudo bem?
— Tudo… e contigo? — você responde meio confuso.
— Tudo ótimo, eu só queria te fazer uma pergunta rápida, em certo sentido eu queria te oferecer uma escolha: você prefere pensar por conta própria ou você prefere pensar como os outros? Nietzsche fala em rebanho, mas eu acho a expressão depreciativa pra falar de uma condição pela qual a gente necessariamente tem que passar. E ela meio que enviesa a escolha em favor da autonomia quando tira um pouco da dignidade e do valor da escolha pelo rebanho.Supondo que foi sugado pra dentro de um filme do Wim Wenders, você pensa sobre a questão em silêncio por tanto tempo que a espera começa a tornar aquela situação ainda mais desconfortável e sem sentido (como se isso fosse possível). E então finalmente você responde:
— Eu prefiro pensar como os outros.
— Você tem certeza?
— Sim — você diz, convicto.
— Tá bom, obrigado, bom dia!
— Bom dia!
Ninguém nos aborda assim pelas ruas (se alguém abordassem logo pensaríamos que essa pessoa é louca — ou não? O louco fala sozinho). Mas se alguém de fato nos perguntasse, nós poderíamos perfeitamente dizer não sem represálias, sentindo que demos uma resposta perfeitamente válida. Há boas razões para preterir a autonomia, mas a heteronomia não se pode evitar, não temos escolha, quem nunca chegou a ser heterônomo nunca participou de uma linguagem — é como se já tivesse nascido à margem de toda a comunidade de usuários da linguagem. Acho que há boas razões para seguir o rebanho, eu compreendo essa escolha.
Quem escolhe o rebanho, no entanto, está condenado a repetir o que lhe foi ensinado, sem ser capaz de questionar as próprias regras que o instruíram. E o medo de mudar pode ser paralisante, pode emprestar cores muito fortes às nossas verdades fundamentais [conservadorismo]. É quando as coisas se tornam dogmas. [Mesmo a democracia pode ser um dogma, nos lembrava Ortega y Gasset. E é verdade que em nome da implantação de certos modelos econômicos (e o neoliberalismo é também um way of life, não é o que dizia Tatcher?) aqueles que pregam a centralidade do mercado e da competição na vida humana tem convenientemente tolerado versões bem questionáveis da democracia.] Não mudar implica viver toda a vida sob a sombra do pensamento dos outros.
Mudar é um processo doloroso, mas a única lei do mundo é a lei da mudança (esse oxímoro imprescindível). Toda mudança nos coloca na rota do abandono da heteronomia, da aquisição da autonomia (e da liberdade). E o mais importante: não é possível mudar sem deixar de ser heterônomo, sem abandonar o rebanho. Mas não há rotas, nem fórmulas. Nunca abandonamos inteiramente as referências anteriores, mas elas já não são suficientes, é preciso um modo próprio de articular essas referências. Novos eixos e valores. E até um novo modo de ação. É verdade que circulam e vigoram respeitosas instituições que certificam e atestam a autonomia do pensamento na forma de argumentos, conclusões, teorias e hipóteses científicas. Com títulos, condecorações, reconhecimento e todos os meios possíveis constroem-se medidas públicas respeitadas por meio das quais é possivel constituir uma reputação comunitária, como acontece na comunidade acadêmica. Entretanto, a conquista da autonomia do pensamento é um processo solitário, solipsista, antigregário, pois nenhuma medida exterior pode determiná-la. Somente nós mesmo podemos saber o quanto cada um de nós ainda deve aos pensamentos que guiaram nossa fase heterônoma (e o verbo saber aqui é inadequado porque não se trata de um saber epistêmico e proposicional). Nenhuma medida externa pode determinar o momento em que nos tornamos autônomos e como o conseguimos. É a honestidade de cada um que determina se isso aconteceu ou não. Há pessoas que, visivelmente enfeitiçadas pelo pensamentos dos outros, juram e berram a todos que são autônomas e que tem ideias próprias. Tolo é quem acredita que pode convencê-las do contrário — mas pra esse beco sem saída fomos todos arrastados pelo racionalismo.
Saber em que ponto, em que momento, nós deixamos de ser heterônomos, dependentes do condicionamento, das regras e instruções a que tivemos cega e passivamente que nos submeter para entrar na linguagem é também o primeiro dilema da psicologia androide. Assim, o drama do nascimento da consciência artificial é também o drama da conquista da autonomia. E essa dificuldade desemboca no problema de mudar, de aceitar o abismo que necessariamente se segue ao desgarramento do rebanho e a possibilidade de que o desespero desse afastamento nunca verdadeiramente se dissipe.
PS. Ridley Scott é quem melhor concebe os dramas da psicologia androide. Westworld tem feito muito bem, mas não dá pra comparar. Mesmo que Prometheus e especialmente Alien: Covenant não sejam a pérola que foi Blade Runner, está ali ainda o problema da autonomia, em David, como uma premissa incontornável de toda consideração dessa psicologia. E claro que pra ele o problema da inteligência é o problema da criação.