Na sociedade capitalista a ideia de pluralidade, tão cara ao ideário liberal, raras vezes significa a pluralidade do ser, mas a do parecer. Assim se expressa a necessidade de individualização, de diferenciação estética, de singularização da aparência e do modo como se é percebido, mas essa diferença não se expressa com a mesma força nos valores e ideias que animam as ações. (Acho que não é necessário lembrar o papel do capitalismo nesse predomínio do meramente aparente). Se pudéssemos quantificar o aprofundamento das diferenças do ser e do parecer ao longo do tempo, e compará-las, veríamos que a contínua diferenciação estética não acompanha diferenças significativas de ideias, fazendo com que a aposta liberal na pluralidade nunca de fato leve água pro moinho dos melhoramentos que poderiam ter lugar na sociedade humana se nós efetivamente pensássemos de modo diferentes e se fossemos abertos às diferenças de pensamento. Para que a pluralidade produza efeitos mais que aparentes seria necessário construir uma outra relação com a estabilidade.
Tag: Estabilidade
Mudar de pele

A linguagem é como uma pele, como uma casca, um exoesqueleto — ela nos enforma e define nossa relação com o mundo, marca a fronteira que nos separa do lado de fora. Para formar essa pele é preciso muito fingimento, muita imitação. A relação de dependência com o Outro nos escraviza porque nos condiciona a uma forma de heteronomia. Ou seja, para dominar uma linguagem devemos necessariamente, ao longo de um tempo de duração indeterminada, repetir e imitar, como bons animais que somos. Imitamos o que estiver mais perto — esse é o grau de sofisticação do “critério”. Ou quem parecer mais adaptado dentre todos aqueles que estão por perto.
Durante esse tempo não somos mais que uma máscara e um rosto sem expressões próprias. Aquela máscara que Clarice Lispector dizia ser o primeiro gesto humano solitário. E em que momento surge a autonomia? — Quem disse que a autonomia precisa surgir?
Do ponto de vista do indivíduo, a autonomia do pensamento não é uma etapa necessária e obrigatória do processo de construção simbólica. A heteronomia sim é necessária, logicamente necessária (quase redundância [?] imprescindível), mas a autonomia não. A autonomia é pouco adaptativa. O que não significa dizer que ela seja sem valor, seu valor é imenso. Uma parte significativa, se não a totalidade, de tudo que tem valor na cultura depende das expressões da autonomia do pensamento. A cultura é um trabalho coletivo, mas o pensamento é sempre individual, ainda que se beneficie tremendamente da cultura. A importância da cultura pra formação do pensamento dos indivíduos é inquestionável, herdamos a linguagem por meio da cultura, e a linguagem é esse lugar onde o Eu pode nascer. Até o afeto do corpo é uma linguagem que se aprende. Uma linguagem não proposicional, claro, um jogo. É preciso lembrar dessa parte não proposicional pra entender o primado da prática sobre as regras e normas. Mas isso não vem ao caso agora. O caso agora é que o pensamento individual, tortuoso, pode legar os mais belos frutos à cultura e nem por isso deixar de ser vivido como um traço pouco adaptativo. Bem, essa tese é discutível! É certo que há por aí quem pense a autonomia como um dom divino capaz de tornar nítida, lúcida e serena toda a percepção da realidade. No entanto, minha percepção das expressões da autonomia na cultura pinta um retrato bem diferente, mas as duas perceptivas são perfeitamente compatíveis. Na verdade, o que importa nessa história toda é constatar que do ponto de vista lógico e histórico o indivíduo não é obrigado a se tornar autônomo e se libertar desse inescapável vínculo que nos liga aos Outros que imitamos e repetimos (por que não dizer: que nós papagaiamos?). Nesse contexto, se nos fosse dado escolher se queremos ou não nos emancipar e nos libertar desse vínculo, essa seria uma escolha à qual poderíamos dizer não. Agora imagine a cena, você anda pela calçada de uma rua próxima à sua casa e uma pessoa te aborda, do nada:
— Olá, tudo bem?
— Tudo… e contigo? — você responde meio confuso.
— Tudo ótimo, eu só queria te fazer uma pergunta rápida, em certo sentido eu queria te oferecer uma escolha: você prefere pensar por conta própria ou você prefere pensar como os outros? Nietzsche fala em rebanho, mas eu acho a expressão depreciativa pra falar de uma condição pela qual a gente necessariamente tem que passar. E ela meio que enviesa a escolha em favor da autonomia quando tira um pouco da dignidade e do valor da escolha pelo rebanho.Supondo que foi sugado pra dentro de um filme do Wim Wenders, você pensa sobre a questão em silêncio por tanto tempo que a espera começa a tornar aquela situação ainda mais desconfortável e sem sentido (como se isso fosse possível). E então finalmente você responde:
— Eu prefiro pensar como os outros.
— Você tem certeza?
— Sim — você diz, convicto.
— Tá bom, obrigado, bom dia!
— Bom dia!
Ninguém nos aborda assim pelas ruas (se alguém abordassem logo pensaríamos que essa pessoa é louca — ou não? O louco fala sozinho). Mas se alguém de fato nos perguntasse, nós poderíamos perfeitamente dizer não sem represálias, sentindo que demos uma resposta perfeitamente válida. Há boas razões para preterir a autonomia, mas a heteronomia não se pode evitar, não temos escolha, quem nunca chegou a ser heterônomo nunca participou de uma linguagem — é como se já tivesse nascido à margem de toda a comunidade de usuários da linguagem. Acho que há boas razões para seguir o rebanho, eu compreendo essa escolha.
Quem escolhe o rebanho, no entanto, está condenado a repetir o que lhe foi ensinado, sem ser capaz de questionar as próprias regras que o instruíram. E o medo de mudar pode ser paralisante, pode emprestar cores muito fortes às nossas verdades fundamentais [conservadorismo]. É quando as coisas se tornam dogmas. [Mesmo a democracia pode ser um dogma, nos lembrava Ortega y Gasset. E é verdade que em nome da implantação de certos modelos econômicos (e o neoliberalismo é também um way of life, não é o que dizia Tatcher?) aqueles que pregam a centralidade do mercado e da competição na vida humana tem convenientemente tolerado versões bem questionáveis da democracia.] Não mudar implica viver toda a vida sob a sombra do pensamento dos outros.
Mudar é um processo doloroso, mas a única lei do mundo é a lei da mudança (esse oxímoro imprescindível). Toda mudança nos coloca na rota do abandono da heteronomia, da aquisição da autonomia (e da liberdade). E o mais importante: não é possível mudar sem deixar de ser heterônomo, sem abandonar o rebanho. Mas não há rotas, nem fórmulas. Nunca abandonamos inteiramente as referências anteriores, mas elas já não são suficientes, é preciso um modo próprio de articular essas referências. Novos eixos e valores. E até um novo modo de ação. É verdade que circulam e vigoram respeitosas instituições que certificam e atestam a autonomia do pensamento na forma de argumentos, conclusões, teorias e hipóteses científicas. Com títulos, condecorações, reconhecimento e todos os meios possíveis constroem-se medidas públicas respeitadas por meio das quais é possivel constituir uma reputação comunitária, como acontece na comunidade acadêmica. Entretanto, a conquista da autonomia do pensamento é um processo solitário, solipsista, antigregário, pois nenhuma medida exterior pode determiná-la. Somente nós mesmo podemos saber o quanto cada um de nós ainda deve aos pensamentos que guiaram nossa fase heterônoma (e o verbo saber aqui é inadequado porque não se trata de um saber epistêmico e proposicional). Nenhuma medida externa pode determinar o momento em que nos tornamos autônomos e como o conseguimos. É a honestidade de cada um que determina se isso aconteceu ou não. Há pessoas que, visivelmente enfeitiçadas pelo pensamentos dos outros, juram e berram a todos que são autônomas e que tem ideias próprias. Tolo é quem acredita que pode convencê-las do contrário — mas pra esse beco sem saída fomos todos arrastados pelo racionalismo.
Saber em que ponto, em que momento, nós deixamos de ser heterônomos, dependentes do condicionamento, das regras e instruções a que tivemos cega e passivamente que nos submeter para entrar na linguagem é também o primeiro dilema da psicologia androide. Assim, o drama do nascimento da consciência artificial é também o drama da conquista da autonomia. E essa dificuldade desemboca no problema de mudar, de aceitar o abismo que necessariamente se segue ao desgarramento do rebanho e a possibilidade de que o desespero desse afastamento nunca verdadeiramente se dissipe.
PS. Ridley Scott é quem melhor concebe os dramas da psicologia androide. Westworld tem feito muito bem, mas não dá pra comparar. Mesmo que Prometheus e especialmente Alien: Covenant não sejam a pérola que foi Blade Runner, está ali ainda o problema da autonomia, em David, como uma premissa incontornável de toda consideração dessa psicologia. E claro que pra ele o problema da inteligência é o problema da criação.
O dever da expressão
Quando se é uma pessoa chata como eu é preciso ter cuidado para não revelar a chatice muy a menudo. Em que situação alguém revela sua chatice? Por exemplo, quando expressa sua opinião sem ter sido perguntado. Pra ilustrar a situação, imagine que você está com um grupo de amigos e esses amigos encontram outro grupo que você não conhece. Fantástico, os amigos dos amigos são amigos. Em certo momento, num dos grupos de conversa que se formaram um dos amigos dos seus amigos começa a tecer loas à ciência, fala sobre como os cientistas vão livrar o mundo dos seus problemas, apesar dos políticos. Apesar da política. E suponhamos que você pensa quase o oposto. Só não digo o oposto simplesmente e sem ressalvas porque sua perspectiva não é exatamente uma oposição à ciência, mas uma crítica ao que se tornou a ciência (como instituição) — e uma dúvida corrosiva sobre a possibilidade da ciência resolver nossos “problemas”. O que você faria nessa situação? Você simplesmente escutaria calado tudo que é dito? Fingiria que não está escutando? Ou diria a sua opinião mesmo que ela seja bem diferente da que se expõe e sem que ninguém tivesse perguntado?
Como bom chato, eu diria minha opinião. Na minha cabeça de chato toda pessoa que expressa uma ideia em público aceita e endossa a possibildade de vê-la questionada, por mais central que a verdade dessa ideia possa ser para manter incólume o arcabouço da sua visão de mundo. Isso gera uma atitude chata, mas nem tão danosa, apenas surpreendentemente de pouco efeito, tendo em conta que se deriva da confiança e do compromisso com a razão, a palavra, o argumento, a lógica — a verdade. A razão produz poucos efeitos (talvez seja melhor dizer efeitos imediatos). Porque ninguém abandona uma visão de mundo porque outra pessoa lhe apresentou uma verdade, o jogo argumentativo e sua maior arma — a coerção, o constragimento racional (romanticamente celebrado nas ciências formais) — funcionam até certo ponto. Não é como se a verdade fosse um solvente de visões de mundo, ao contrário, quanto mais forte é o arcabouço de uma visão de mundo menos poderosa é a verdade contra ela (e tendemos a preservar a estabilidade desse estado de coisas). Pois a força de uma visão de mundo reside justamente no fato dela estar fora desse âmbito bipolar onde ela estaria exposta à possibilidade de ser falseada, é como se ela passasse a um outro patamar de verdade, a uma outra modalidade. Como se sua verdade passesse do estatuto de verdade contingente ao de verdade necessária. Como se se transformasse numa verdade analítica, dessas que não podem ser contrariadas pela experiência (ela se transforma numa espécie de eixo). E por isso eu sou chato, porque eu acredito (ou acreditei por muito tempo) honestamente em sandices como esse endosso implícito à possibilidade de revisão. As pessoas não-chatas sabiam algo que eu não notava, porque eu pressupunha erroneamente. Elas sabiam que a expressão de ideias nunca era um convite ao debate, à discussão. Nunca era a expressão de uma abertura ao debate e à revisão. Às vezes acontecia até de os mais apaixonados defensores das suas ideias serem também os mais ferozes opositores de qualquer crítica, por mais que sua paixão me fizesse pensar que eles abraçavam a pluralidade com igual entusiasmo — como seria de se esperar. E ainda que a sensação de ser chato me asfixiasse por dentro, ela parecia fazer mais sentido do que acreditar que as pessoas não estavam abertas a mudar.
Hoje faz mais sentido acreditar que a arbitrariedade é um componente indissociável de qualquer sistema de crenças. Indissociável. E que o desejo de estabilidade é quase sempre muito mais forte do que a paixão pela verdade. É claro que as pessoas não costumam pensar que a verdade e a estabilidade são coisas independentes, ao contrário. Elas pensam que a estabilidade se deriva da verdade: a estabilidade de nossas visões de mundo está ancorada na força das verdades que as constituem. Não lhes ocorre pensar que é o apego à estabilidade de nossas visões de mundo que empresta uma força indestrutível às nossas verdades, uma força que enfraquece a pluralidade em nome de uma unidimensionalidade incondicional (porque necessária). Esse desejo por estabilidade a que todos nós tendemos tem muitos nomes e expressões, mas ele inevitavelmente converge a um desejo de determinação.
Esse texto é um pouco desonesto porque embora ele se chame “o dever da expressão” eu não acredito que a expressão seja um dever. É verdade que a tentação de expressar minha opinião é forte e quase inescapável, porque eu acho que todo uso da linguagem é político. A linguagem tem uma dimensão constitutivamente pública (não privada), mesmo quando se escreve para ninguém. Ou mesmo quando se escreve para si mesmo. Mas isso não significa que há alguma coisa como um dever da expressão. Em realidade, ainda que ter entendido certas coisas tenha mudado minha opinião sobre mim mesmo, na maior parte das vezes eu ainda evito falar, como quem teme ser chato. É desagradável falar com pessoas que não estão verdadeiramente dispostas a escutar, que não estão abertas a entender (concordar é uma outra história), mesmo que tenham sempre tanta vontade de falar *. Escutar e a generosidade do esforço de entender se transformaram em atitudes reservadas às amigas e amigos, às pessoas próximas, aos grupos com os quais nos identificamos. De qualquer modo, esse tema me lembrou uma das frases de que eu mais gosto, sacada de um livro de Somerset Maugham, e que diz de modo breve e claro algo cujo alcance nos custa entender:
Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água mas não se pode obrigá-lo a beber
* E o silêncio? O silêncio é um tema que tem me fascinado porque pode ser entendido como um regulador do pensamento, que controla seu ritmo (de processamento, por assim dizer), sua duração, edita sua expressão, aperfeiçoa por consequência a capacidade de ouvir e escutar (já que não podemos entender se estamos pensando ao mesmo tempo outra coisa mais importante [de maior prioridade em termos de recursos de processamento]). Mas o que me encanta no silêncio é sua, por assim dizer, oposição simbólica à vontade de falar.
Convicção e Tendência à confirmação
Se a única ferramenta que você tem é um martelo, você tende a ver todo o problema como um prego
Abraham Maslow
O que determina a nossa tendência a fazer com que as coisas, as experiências e o sentido que lhes conferimos, sempre se ajustem a nossa visão de mundo? Uma resposta possível poderia ser: o fato de não termos alternativa e de não estarmos familiarizados com perspectivas diferentes da nossa. Como assim, não temos alternativa? Grande parte da nossa visão de mundo se constitui por inculcação, isto é, por meio do condicionamento (adestramento) que nos familiariza com certos conceitos, com certas ferramentas com as quais lidamos com o mundo. Não temos outras opções, os instrumentos que herdamos são os únicos com os quais podemos lidar com o mundo, de tal sorte que as coisas que ameaçam esse conjunto de instrumentos (que formam um sistema) correspondem a um perigo real. A mera repetição tem um papel fundamental na construção da nossa visão de mundo. O que se constitui por meio da repetição e do condicionamento — os conceitos, as ideias, as imagens — são as próprias lentes com que visamos toda a experiência possível, a moldura com que enxergamos a realidade. Essas lentes não são descartáveis, elas são a própria condição de toda experiência, tudo que pode acontecer, para que possa ter sentido, deve se ajustar a elas. Nada deve ficar do lado de fora. Assim, não ter alternativa significa não ser capaz de ver o mundo fora dessa moldura, de outra forma e segundo outra perspectiva.
Um exemplo bizarro talvez ajude a esclarecer o que quero dizer: imagine que você olha pro céu e vê uma baleia voando. Um exemplo menos extravagante não poderia dar conta do propósito do exemplo que é ilustrar o colapso de nossos paradigmas. Mesmo quem nunca estudou física e biologia sabe o disparate que é imaginar uma baleia voando. Os princípios e leis científicas não são nada mais do que o esforço para dar contornos nítidos à regularidade dos eventos naturais (por meio de leis naturais) que povoam nossa experiência. Uma lei como a lei da gravidade se reafirma cotidianamente, a cada a nova experiência, sempre que acidentalmente deixamos cair o pão ou a caneta. Se um evento francamente incompatível com essa lei pudesse acontecer — como no caso da baleia voadora — e não pudéssemos encontrar uma explicação razoável (um exemplo tão bizarro tem seus méritos), pareceríamos compelidos a revisar todo o marco de nossas explicações e nos veríamos numa situação difícil. As leis muito gerais da ciência, como a gravidade, mesmo que em tese sejam falsificáveis, como queria Popper, tem um papel tão importante na estruturação e no controle de toda a experiência que seu possível colapso nos levaria ao completo desamparo, isto é, a uma situação para a qual não estamos preparados e à qual aparentemente não saberíamos ao certo como reagir.
Mas o que isso tem a ver com a tendência à confirmação? Nossa visão de mundo é um sistema de crenças e sua estrutura é como a de um castelo de cartas no qual cada peça está direta ou indiretamente ligada às outras. Dentro desse sistema a possibilidade de certas mudanças implica transformações radicais em nossa visão de mundo e poderia nos levar de um mundo familiar, com o qual estamos acostumados, a um mundo estranho e imprevisível, com o qual ainda precisaríamos nos familiarizar. A tendência à confirmação é uma certa disposição diante da possibilidade de um desamparo epistêmico ou da falta de sentido, isto é, da possibilidade de estar diante de uma situação não familiar à qual não sabemos o que pensar e como agir. A convicção que caracteriza e acompanha essa tendência parece funcionar como um estabilizador de visões de mundo. Assim, tendemos as selecionar os fatos que salvaguardam nossa visão de mundo, pois não temos nenhuma outra para substitui-la caso aceitemos que algo possa de fato colocá-la em perigo. Mas isso não significa que a tendência a confirmação (e a convicção que a acompanha) seja uma tendência deliberada, voluntária e consciente para preservar a estabilidade de nossa visão de mundo, essa estabilidade é antes o resultado da falta de alternativas. Tendemos a preservar nossa visão de mundo porque, mesmo que alguma alternativa se apresente, ela será menos familiar que a nossa própria e a transição (a conversão) a uma nova perspectiva implicaria, no mínimo, algum desconforto, uma insegurança diante da experiência e a necessidade de uma readaptação. Nada pode nos compelir, nos obrigar a reavaliar as bases que estruturam nossa visão da realidade, por isso mesmo toda essa temática está estreitamente ligada à questão da vontade e de seu papel na manutenção de nossa perspectiva. Se é verdade que os fatos (a descoberta de fatos novos) estão no centro da perspectiva científica sobre o mundo e parecem poder determinar alterações substanciais na nossa percepção da realidade, é certo também que grande parte da nossa visão de mundo permanece surda aos apelos da razão (isto é, à pretensão racional de constranger e obrigar por meio de razões), estando antes ancorada na vontade, isto é, num dimensão imune a qualquer constrangimento causal ou racional (daí porque, nesse pontos nodais, falamos em persuasão e não em convencimento).
Tudo isso deveria nos levar a considerar mais cuidadosamente o papel da imaginação. Se a passagem a uma situação não familiar — portanto não controlável porque não sujeita às normas estruturantes que herdamos ao adquirir nossa visão de mundo — representa uma ameaça abertamente rejeitada pela nossa vontade (vontade e razão andam de mãos dadas), talvez a possibilidade de uma posição diferente diante do desamparo, das situações não familiares, de tudo aquilo que foge ao nosso sistema de convicções, possa resultar de um maior espaço concedido à imaginação. Naturalmente, a imaginação não pode criar familiaridade, quer dizer, levamos muito tempo para nos acostumarmos à nossa visão de mundo e a imaginação não pode, num piscar de olhos, converter uma perspectiva distinta em algo familiar, mas ela pode nos tornar mais abertos à mudança. A convicção não poucas vezes nos fecha às mudanças e, em termos éticos, nos fecha à diferença e à alteridade. A imaginação não é incompatível com a convicção, mas ela pode determinar uma atitude diferente diante daquilo que não se encaixa em nossa visão de mundo. O efeito mais danoso da tendência à confirmação é o isolamento e a impossibilidade de entender diferenças radicais, e esse parece um dos maiores desafios de um mundo globalizado (apesar dos efeitos homogeneizantes da globalização). Quer dizer, num mundo dominado pela ciência, é muito difícil não abraçar uma perspectiva na qual todas as diferenças podem ser reduzidas a um solo comum e universal. Diante disso, é natural que cada um acredite poder justificar suas perspectivas frente a outras — ciência é justificação. Assim, o apelo à imaginação reflete a compreensão de que, apesar dos muitos campos comuns da nossa experiência passíveis de serem arbitrados pela lógica da nossa linguagem, o sentido do nosso simbolismo comporta graus de inteligibilidade que não podem ser acessíveis senão por um esforço imaginativo de compreender as circunstâncias que conferem sentido à visão de mundo dos outros. E mesmo o mais importante cientista arrisca mostrar-se intolerante se a convicção em suas posições determinar um senso de universalidade que lhe impeça de compreender a pluralidade das visões de mundo possíveis e a singularidade que cada conjunto de circunstâncias engendra, a despeito do indeterminado número de aspectos compartidos (universais) entre as diferentes perspectivas.
PS. Apenas recentemente tomei conhecimento do tópico de investigação psicológica conhecido como confirmation bias, mas desde então o tema me interessa profundamente, embora eu não tenha encontrado ocasião para ler algo nada técnico a respeito. De todo modo, me parece que a questão pode ser aproximada à discussão sobre certeza, convicções e visões de mundo (num âmbito lógico, conforme o entendimento de Wittgenstein).
PPS. Não sem razão a lógica e a matemática sempre foram apresentados como modelos de racionalidade, isto é, da capacidade da razão de constranger, de conduzir-nos “por paredes muito rígidas”. A força do dever e da necessidade lógico-matemática. Razão é poder. — Mas essa força não se deriva da generalidade (universalidade) das suas leis, como pensavam os formalistas.
Da importância do preconceito
Antes que me apedrejem, eu confesso que o título é estrategicamente polêmico. Não se trata de um elogio à discriminação racial, étnica, ou a coisa semelhante. Antes, é a tentativa de mostrar que nem todo preconceito é desprezível e dispensável, e que eles cumprem um papel fundamental na economia da nossa organização psicológica. Bem, vamos às explicações antes que a demora se torna uma inimiga.
Quem anda por aqui já me viu citando a conhecida frase de Lébrun: “não é possível pensar sem preconceito (prejuízo)”. Eu mesmo não sei o contexto da frase, mas adotei-a com se fosse minha. Talvez devêssemos começar pensando: e se não houvessem pre-conceitos? Mas vamos com calma. Primeiro pensemos o aprendizado. O que é aprender ou ensinar? Grosseiramente, poderíamos responder assim: é tornar alguém capaz de responder de forma relativamente padronizada a determinados estímulos. Ensinar a ler (aprender a ler) é fazer alguém capaz de transformar sinais gráficos em uma linguagem cujo sentido ele entende. Aprender a jogar xadrez é saber o que fazer diante das peças de um tabuleiro. Mas o aprendizado só pode se realizar se as condições, os estímulos, como contextos de execução, permanecerem imutáveis. Mas e se as coisas cambiassem arbitrariamente, se os sinais gráficos mudassem a todo instante, sem regra aparente? Talvez pudéssemos ainda falar em aprendizado, mas decerto em sentido bem diferente do que hoje nós empregamos. O significado da aprendizagem exige o espaço da estabilidade como condição de exercício de seu método. Se as pessoas fossem incapazes de reconhecer aquilo que é comum às coisas com as quais elas foram ensinadas a lidar, não saberiam como reagir a elas.
Mas qual é a relação disso tudo com o preconceito? Bem, o preconceito é um instrumento, uma espécie de fórmula geral (como todo instrumento, admite práticas boas e más). Através dele as pessoas se programam para reagir a determinadas circunstâncias. Nós nunca estamos completamente despreparados para novo. Diante do desconhecido, é comum hesitarmos. Mas por quê? Por que não exultar, ao invés disso. Alegrar talvez. A hesitação é uma forma de preconceito útil, na maioria dos casos. Quando uma mulher diz: “os homens não prestam” (eu já citei casos semelhantes por aqui), após uma tortuosa sequência de maus relacionamentos, ela expressa um preconceito “útil”, embora talvez danoso caso se mantenha por muito tempo. Ela aprende a reagir, ainda que traumaticamente, às sucessivas desilusões afastando-se daquilo que ela julga ter causado a dor que ela sente.
Mas deixemos os casos mais complexos de lado, voltemos à novidade. Nós estamos sempre, de algum modo, preparado para ela. Isso quer dizer que o desconhecido é sempre trazido ao terreno das nossas referências. Se não sabemos como lidar com ele, aplicamos alguns dos nossos conceitos. Agimos como se fosse uma ameaça, um perigo, ou podemos ter outra reação, mais positiva, a depender da personalidade de cada um. O fundamental é que: antes de termos razões para agir desse ou daquele modo, nós não ficamos sem reação, sem referências. Nós aplicamos os conceitos que já temos! — nada escapa às nossas conceitualizações. Diante do desconhecido, o homem não meramente paralisa até obter informação suficiente para julgamento apropriado. Essa é a imagem ingênua que habita o espírito dos que não entendem o sentido da importância do preconceito. Imaginem nossa mente como um grande arquivo. Considerem que o desconhecido aqui assume apenas a forma de pessoas, pessoas que não conhecemos. Vamos pensar então como aquelas pessoas que imaginam que os preconceitos são sempre dispensáveis. O que acontece quando conhecemos alguém novo? Criamos um novo arquivo onde as novas informações sobre aquela pessoas são condicionadas. Mas antes de termos informações sobre ela, simplesmente suspendemos os juízos? Se suspendemos, isso quer dizer que agimos de forma equânime com todas as pessoas que nos são desconhecidas? Quando nos deparamos com um sujeito mal encarado que, com a mão no bolso, vem em nossa direção, deixemos que se as coisas se materializem até que possamos legitimamente formar um juízo? Bem, eu não quero apenas mostrar que pensar assim é ir de encontro ao que é mais trivial no senso comum: ao fato de que na maioria das situações cotidianas o preconceito é uma ferramenta útil e indispensável. Eu quero mostrar que as coisas são assim porque se fossem de outro modo, nós não agiríamos com agimos. Voltemos a imagem da mente como um arquivo: se cada pessoa nova, desconhecida, fosse uma ficha, um arquivo, se não houvesse uma categoria maior das quais elas pudessem ser unidades, como num conjunto. Se não pudesse haver um conjunto maior do qual o conjunto atual fosse um subconjunto e assim por diante, então, cada ficha e arquivo seriam únicos e incomunicáveis. Não poderíamos aprender a lidar com as pessoas, a reagir a elas, pela razão que apresentei no início. Não teríamos a estabilidade necessária ao aprendizado. Se as pessoas fossem únicas e irredutíveis, no sentido de que todo o preconceito fosse detestável, não poderíamos esperar delas reações com as quais aprendermos a lidar. No entanto, muitos fatores fazem com que as pessoas ajam de modo homogêneo, e isso dá respaldo ao nosso aprendizado. Talvez haja uma dimensão própria da nossa natureza como justificativa para certas ações. Talvez haja uma dimensão própria de cada cultura. Não sei. O caso é que as regularidades que podemos observar auxiliam nossa lida com as coisas, com os outros, embora essa identificação não esteja imune ao erro.
O preconceito, na sua versão pavorosa e detestável, é a face contrária da crença ingênua na desimportância do preconceito. É a expressão do atraso de pensar que se pode ler nas coisas os sinais das categorias gerais usadas para lidar com as pessoas. Como se o preconceito fosse, não um recurso psicológico geralmente útil, mas um conhecimento irrefutável.
Não ser preconceituoso, no sentido pejorativo, não é não ter preconceitos, é ser capaz de flexibilizá-los, de romper com eles, de jogá-los no lixo. Ou, em outros casos, de reconhecer de sua utilidade. Nesse sentido eu sou um sujeito livre dessa versão negativa do preconceito, pois tenho capacidade para me desprender dos meus juízos; mas por isso mesmo sou um preconceituoso, no sentido positivo do termo, não imponho rédeas aos meus juízos (claro, eles jamais transpõem os limites da minha inteligência, pois, por exemplo, o preconceito racial é antes de mais nada uma forma de burrice; felizmente meus juízos não se ancoram no espaço que não pode receber a chancela racional). Deixem que eu conte um dos meus preconceitos, dias atrás eu diverti uma conhecida com ele: eu tenho preconceito de fãs dos Los Hermanos. Sem contexto, se você me diz que é fã dos Los Hermanos eu dou passo pra trás. Nada de errado com a banda, ela é bastante boa se consideramos o deserto cultural que assola certos setores da música brasileira há alguns anos — mas seus fãs são quase sempre insuportáveis. O discurso que eles constroem para enaltecê-la é em geral bobo e atesta frequentemente uma gritante escassez de referências (que é, na maioria dos casos, a razão real porque eles emprestam tanto valor a banda). Já tive gratas surpresas. Pessoas que ultrapassaram em muito as fronteiras desse meu juízo. Mas outras vezes, na maior parte dos casos (razão pela qual meu preconceito existe), eu me divirto afirmando orgulhoso meu preconceito diante desses fãs e, se o dia estiver inspirado, arrisco até descontruir a mitologia da banda, mesmo que com uma ou outra mentira. É divertido pirraçar essa gente preconceituosa, convenhamos.
Atualização: Por que você deveria falar com estranhos? É uma boa forma de entender o significado da ideia de conceitos, pré-conceitos e juízos. O vídeo diz de forma muito mais didática coisas que eu tentei indicar aqui, sobretudo a função organizativa dos conceitos