Pular o processo: a força da prática

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Espírito e técnica

Mestrinho disse, nessa entrevista a Nelson Faria, que não sabe ler partitura. Essa é uma ocasião mais que propícia para falar do primado da prática, do fato de que as regras têm uma posição secundária em relação à prática, apesar de vivermos na era dos computadores. Mestrinho disse que insistiram para ele estudar teoria musical, mas ele não queria “passar pelo processo”, pois o processo era muito lento e grande parte do que lhe era ensinado ele já sabia fazer. Na filosofia de Wittgenstein, a formulação do paradoxo da relação entre regras e práticas é a seguinte:

Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Eu gosto de reformular o paradoxo nos seguintes termos: “uma regra não pode nos dizer o que fazer a menos que já saibamos o que fazer“. Isso significa que a regra não pode ser o começo da determinação do sentido, na verdade, a própria constituição do seu papel normativo depende de uma prática que pode instaurar ou derrogar essa função. A pergunta que apresenta um contexto mais amplo no qual as duas perspectivas aparecem conectadas é: onde a execução efetivamente começa, na regra ou na prática? Apesar da tendência, infelizmente compreensível, de se envergonhar por não saber ler partitura, Mestrinho afirma hesitantemente que, pelo menos no seu caso, a prática é decisiva para constituição da habilidade de tocar. Nelson Faria confirma essa perspectiva e acrescenta uma analogia muito apropriada: aprender a tocar (e saber tocar) é como aprender uma língua, você aprende a falar e só muito depois vem a saber (ou não!) da existência das regras gramaticais, dos conectivos, dos elementos que as regras organizam, etc.

A gramática de uma linguagem não é registrada e não chega a existir até que linguagem tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo.

Ludwig Wittgenstein, Gramática filosófica

Agora, como é o outro lado? Por que a vergonha quando se desconhece a teoria, as regras do jogo? E qual é a função da teoria? O espírito está dado, ele nasce com Mestrinho, já a técnica permite que qualquer um possa desenvolver uma capacidade que Mestrinho já nasceu sabendo, a capacidade de tocar e criar. A técnica registra a regularidade das ações em regras que instituem as condições de um saber fazer (know how) e ao se estabelecer desse modo ela torna possível que essa competência possa ser adquirida não apenas por aqueles que a tem no espírito, mas por qualquer um. Assim teve lugar o enorme salto evolutivo que só a colaboração é capaz de propiciar. Eu disse colaboração, não competição, para que fique claro! Numa sociedade científica, ou melhor, na Tecnosfera em que nós vivemos, é muito fácil perder de vista o primado da prática, e do espírito, em função do lugar que o método e as regras têm no nosso panorama ideológico. E é ante a força simbólica desse perspectiva que mesmo um talento nato como Mestrinho chega a sentir vergonha de algo que ele simplesmente não precisa.

Espero que não seja preciso dizer que não há dúvida de que a técnica pode permitir que alguém imagine novos mundos. Vejamos o caso de Jacob Colliers. A Jacob seguramente não lhe falta espírito, mas a este legado natural se sobrepõe uma generosa camada de compreensão teórica. (Adam Neely, que eu mencionei nesse post, também sabe muito de prática e teoria musical) Assim suas habilidades se expandem e, dispondo de dinheiro para comprar equipamentos e tendo adquirido conhecimento e competência para usar softwares de edição de som, as possibilidades de criação e execução parecem ampliar-se indefinidamente. Mas não é como se houvesse de fato uma perda na ausência de uma compreensão teórica, ainda que não deixemos de sentir a ausência de uma compreensão técnica como perda e deficit. Parece como se não pudéssemos deixar de sentir como faltante, carente, tudo que não se envolve com a técnica. Mas as expressões da técnica são também expressões do espírito. Embora estejamos inclinados a pensá-la em termos estritamente normativos — envolvendo regras e o adestramento que vai construindo uma habilidade —, o melhor que a técnica pode fazer (e é preciso lembrar que mesmo a poesia necessariamente envolve técnica) é estimular o espírito de outros seres humanos, como o espírito de Alexander von Humboldt se integrou ao espírito do jovem Charles Darwin, a ponto de lançá-lo numa aventura de mais de 5 anos pelo hemisfério sul com o Beagle. Sem falar que a técnica pode simplesmente limitar o espírito, isso se pode constatar facilmente dentro da Universidade, e, aliás, em certa medida já está também na frase de Sêneca: “excesso de livros, barafunda do espírito!”.

O problema da técnica é a sua quase imperceptível aura ideológica, aquilo que caracteriza a Tecnosfera, a pretensa redutibilidade que se deriva do propósito objetivo do conhecimento. A objetividade do conhecimento pretende fazer com que a pluralidade do subjetivo se reduza a uma unidade, a unidade do Real. A técnica tem tanta importância na história humana, e facilita tanto a nossa vida, que é quase impossível dirigir-lhe uma crítica sem angariar antipatia e, não poucas vezes, inimigos. Apesar disso, mesmo se usando uma ficção nós imaginássemos uma história contrafactual na qual Mozart e Beethoven não aprenderam a escrever suas obras, — pois não sabiam usar nenhuma notação musical, embora fossem capazes de criá-las e e executá-las—, nós nos veríamos constrangidos a admitir que a beleza dessas obras se conservaria, ainda que talvez elas nunca tivessem chegado até nós. Essa ficção atesta tanto a utilidade da técnica quanto aquilo que no espírito e em suas manifestações é irredutível a ela.

É claro que, em certo sentido, o propósito desse texto é desidratar o papel da técnica, supradimensionado por uma adesão (irrefletida || dogmática) à ciência, além de criticar a consequente conversão de todas perspectivas à inescapável chave técnica problema/solução (conversão que empobrece a ciência e torna os cientistas meros puzzle-solvers, como dizia Thomas Kuhn). Entretanto, mais importante do que a crítica é a lembrança de que o espírito é a fonte de toda a criação e de que tudo o que nós entendemos como (possível || impossível) não é nada mais do que o resultado da vigência de leis e regras que foram instituídas e que, por isso mesmo, podem ser igualmente destituídas, ainda que não possamos ver um lado de fora (ver o impossível). A adesão à técnica nos congela a um espaço de estabilidade e torna a instabilidade uma tragédia, algo que só tem lugar por meio de eventos externos que, com violência, invadem nossas expectativas e comprometem a tão sonhada e tão bem-quista previsibilidade.

Poincaré, ciência e previsibilidade

Na arte é onde a autonomia, a libertação do peso da imitação, pode ser vista mais claramente como fonte da criação, manifestação do espírito.


Nos comentários de Gilbert Ryle vemos uma imagem da força da regra como perspectiva:

É claro que executar uma operação de forma inteligente não é exatamente a mesma coisa que acompanhar sua execução de forma inteligente. O agente é originário, o espectador está apenas contemplando. Mas as regras que o agente observa e os critérios que ele aplica são as mesmas que regem os aplausos e zombarias do espectador. O comentarista da filosofia de Platão não precisa possuir muita originalidade filosófica, mas se ele não puder, como muitos comentaristas não podem, apreciar a força, o rumo ou o motivo de um argumento filosófico, seus comentários serão inúteis. Se ele pode apreciá-los, então ele sabe como fazer parte do que Platão soube fazer.

Gilbert Ryle, The concept of the mind, 42

A redução da competência a um vocabulário disposicional deixa do lado de fora o espírito e torna todas as suas manifestações meras complexidades que, ao menos em tese, podem ser traduzidas em regras mais precisas (mais complexas); em algoritmos capazes de resolver algo posto em termos de complexas manipulações de dados (portanto, a elementos decidíveis). Wittgenstein usava a pianola como exemplo de determinação, setenta anos depois de sua morte, é incrível constatar que para muita gente é real e está ao nosso alcance a possibilidade de construir inteligências capazes de executar as Variações Goldberg com o mesmo brilho que Glenn Gould. Não há nada que o espírito acrescente, pois todo o espaço do possível é tecnicamente mapeável, não há nada do lado de fora. — Há sempre algo do lado de fora! Mas por ora o que importa é apenas apresentar muito claramente o que pretende a técnica e o que pode o espírito, como uma diferença entre uma pianola idealizada (modelos de inteligência artificial) e Glenn Gould (Claudio Arrau, ou o virtuose do piano de sua preferência).

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