Pular o processo: a força da prática

Espírito e técnica

Mestrinho disse, nessa entrevista a Nelson Faria, que não sabe ler partitura. Essa é uma ocasião mais que propícia para falar do primado da prática, do fato de que as regras têm uma posição secundária em relação à prática, apesar de vivermos na era dos computadores. Mestrinho disse que insistiram para ele estudar teoria musical, mas ele não queria “passar pelo processo”, pois o processo era muito lento e grande parte do que lhe era ensinado ele já sabia fazer. Na filosofia de Wittgenstein, a formulação do paradoxo da relação entre regras e práticas é a seguinte:

Nosso paradoxo era: uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a regra.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 201

Eu gosto de reformular o paradoxo nos seguintes termos: “uma regra não pode nos dizer o que fazer a menos que já saibamos o que fazer“. Isso significa que a regra não pode ser o começo da determinação do sentido, na verdade, a própria constituição do seu papel normativo depende de uma prática que pode instaurar ou derrogar essa função. A pergunta que apresenta um contexto mais amplo no qual as duas perspectivas aparecem conectadas é: onde a execução efetivamente começa, na regra ou na prática? Apesar da tendência, infelizmente compreensível, de se envergonhar por não saber ler partitura, Mestrinho afirma hesitantemente que, pelo menos no seu caso, a prática é decisiva para constituição da habilidade de tocar. Nelson Faria confirma essa perspectiva e acrescenta uma analogia muito apropriada: aprender a tocar (e saber tocar) é como aprender uma língua, você aprende a falar e só muito depois vem a saber (ou não!) da existência das regras gramaticais, dos conectivos, dos elementos que as regras organizam, etc.

A gramática de uma linguagem não é registrada e não chega a existir até que linguagem tenha sido falada pelos seres humanos por muito tempo.

Ludwig Wittgenstein, Gramática filosófica

Agora, como é o outro lado? Por que a vergonha quando se desconhece a teoria, as regras do jogo? E qual é a função da teoria? O espírito está dado, ele nasce com Mestrinho, já a técnica permite que qualquer um possa desenvolver uma capacidade que Mestrinho já nasceu sabendo, a capacidade de tocar e criar. A técnica registra a regularidade das ações em regras que instituem as condições de um saber fazer (know how) e ao se estabelecer desse modo ela torna possível que essa competência possa ser adquirida não apenas por aqueles que a tem no espírito, mas por qualquer um. Assim teve lugar o enorme salto evolutivo que só a colaboração é capaz de propiciar. Eu disse colaboração, não competição, para que fique claro! Numa sociedade científica, ou melhor, na Tecnosfera em que nós vivemos, é muito fácil perder de vista o primado da prática, e do espírito, em função do lugar que o método e as regras têm no nosso panorama ideológico. E é ante a força simbólica desse perspectiva que mesmo um talento nato como Mestrinho chega a sentir vergonha de algo que ele simplesmente não precisa.

Espero que não seja preciso dizer que não há dúvida de que a técnica pode permitir que alguém imagine novos mundos. Vejamos o caso de Jacob Colliers. A Jacob seguramente não lhe falta espírito, mas a este legado natural se sobrepõe uma generosa camada de compreensão teórica. (Adam Neely, que eu mencionei nesse post, também sabe muito de prática e teoria musical) Assim suas habilidades se expandem e, dispondo de dinheiro para comprar equipamentos e tendo adquirido conhecimento e competência para usar softwares de edição de som, as possibilidades de criação e execução parecem ampliar-se indefinidamente. Mas não é como se houvesse de fato uma perda na ausência de uma compreensão teórica, ainda que não deixemos de sentir a ausência de uma compreensão técnica como perda e deficit. Parece como se não pudéssemos deixar de sentir como faltante, carente, tudo que não se envolve com a técnica. Mas as expressões da técnica são também expressões do espírito. Embora estejamos inclinados a pensá-la em termos estritamente normativos — envolvendo regras e o adestramento que vai construindo uma habilidade —, o melhor que a técnica pode fazer (e é preciso lembrar que mesmo a poesia necessariamente envolve técnica) é estimular o espírito de outros seres humanos, como o espírito de Alexander von Humboldt se integrou ao espírito do jovem Charles Darwin, a ponto de lançá-lo numa aventura de mais de 5 anos pelo hemisfério sul com o Beagle. Sem falar que a técnica pode simplesmente limitar o espírito, isso se pode constatar facilmente dentro da Universidade, e, aliás, em certa medida já está também na frase de Sêneca: “excesso de livros, barafunda do espírito!”.

O problema da técnica é a sua quase imperceptível aura ideológica, aquilo que caracteriza a Tecnosfera, a pretensa redutibilidade que se deriva do propósito objetivo do conhecimento. A objetividade do conhecimento pretende fazer com que a pluralidade do subjetivo se reduza a uma unidade, a unidade do Real. A técnica tem tanta importância na história humana, e facilita tanto a nossa vida, que é quase impossível dirigir-lhe uma crítica sem angariar antipatia e, não poucas vezes, inimigos. Apesar disso, mesmo se usando uma ficção nós imaginássemos uma história contrafactual na qual Mozart e Beethoven não aprenderam a escrever suas obras, — pois não sabiam usar nenhuma notação musical, embora fossem capazes de criá-las e e executá-las—, nós nos veríamos constrangidos a admitir que a beleza dessas obras se conservaria, ainda que talvez elas nunca tivessem chegado até nós. Essa ficção atesta tanto a utilidade da técnica quanto aquilo que no espírito e em suas manifestações é irredutível a ela.

É claro que, em certo sentido, o propósito desse texto é desidratar o papel da técnica, supradimensionado por uma adesão (irrefletida || dogmática) à ciência, além de criticar a consequente conversão de todas perspectivas à inescapável chave técnica problema/solução (conversão que empobrece a ciência e torna os cientistas meros puzzle-solvers, como dizia Thomas Kuhn). Entretanto, mais importante do que a crítica é a lembrança de que o espírito é a fonte de toda a criação e de que tudo o que nós entendemos como (possível || impossível) não é nada mais do que o resultado da vigência de leis e regras que foram instituídas e que, por isso mesmo, podem ser igualmente destituídas, ainda que não possamos ver um lado de fora (ver o impossível). A adesão à técnica nos congela a um espaço de estabilidade e torna a instabilidade uma tragédia, algo que só tem lugar por meio de eventos externos que, com violência, invadem nossas expectativas e comprometem a tão sonhada e tão bem-quista previsibilidade.

Poincaré, ciência e previsibilidade

Na arte é onde a autonomia, a libertação do peso da imitação, pode ser vista mais claramente como fonte da criação, manifestação do espírito.


Nos comentários de Gilbert Ryle vemos uma imagem da força da regra como perspectiva:

É claro que executar uma operação de forma inteligente não é exatamente a mesma coisa que acompanhar sua execução de forma inteligente. O agente é originário, o espectador está apenas contemplando. Mas as regras que o agente observa e os critérios que ele aplica são as mesmas que regem os aplausos e zombarias do espectador. O comentarista da filosofia de Platão não precisa possuir muita originalidade filosófica, mas se ele não puder, como muitos comentaristas não podem, apreciar a força, o rumo ou o motivo de um argumento filosófico, seus comentários serão inúteis. Se ele pode apreciá-los, então ele sabe como fazer parte do que Platão soube fazer.

Gilbert Ryle, The concept of the mind, 42

A redução da competência a um vocabulário disposicional deixa do lado de fora o espírito e torna todas as suas manifestações meras complexidades que, ao menos em tese, podem ser traduzidas em regras mais precisas (mais complexas); em algoritmos capazes de resolver algo posto em termos de complexas manipulações de dados (portanto, a elementos decidíveis). Wittgenstein usava a pianola como exemplo de determinação, setenta anos depois de sua morte, é incrível constatar que para muita gente é real e está ao nosso alcance a possibilidade de construir inteligências capazes de executar as Variações Goldberg com o mesmo brilho que Glenn Gould. Não há nada que o espírito acrescente, pois todo o espaço do possível é tecnicamente mapeável, não há nada do lado de fora. — Há sempre algo do lado de fora! Mas por ora o que importa é apenas apresentar muito claramente o que pretende a técnica e o que pode o espírito, como uma diferença entre uma pianola idealizada (modelos de inteligência artificial) e Glenn Gould (Claudio Arrau, ou o virtuose do piano de sua preferência).

Colocando coisas diferentes lado a lado

Temos aqui duas coisas aparentemente diferentes. A primeira é Wittgenstein falando sobre a publicidade da linguagem, em diferentes momentos.

Se um leão pudesse falar, não poderíamos compreendê-lo.

LudWig wittgenstein, Investigações Filosóficas, II, § 327

Um quase-coroinha dizendo algo de aparência bombástica com a ingenuidade de uma criança:

Deus, se tivesse olhado no fundo de nossas almas, não teria sido capaz de saber de quem nós falávamos

LudWig wittgenstein, Investigações Filosóficas, II, § 284

Depois, John Searle apresentando de modo cirúrgico uma objeção às teorias computacionais da mente:

A computação é definida sintaticamente. É definida em termos de manipulação de símbolos. Contudo, a sintaxe em si mesma não pode nunca ser suficiente para o tipo de conteúdo que apropriadamente acompanha pensamentos conscientes. Em si mesmo ter apenas zeros e uns é insuficiente para garantir conteúdo mental, consciente ou inconsciente (…) Absolutamente essencial para entender a natureza das ciências naturais é a distinção entre aquelas características da realidade que são intrínsecas e aquelas que são relativas a um observador. A atração gravitacional é intrínseca. Ser uma nota de cinco dólares é relativa a um observador. Agora, a grande objeção às teorias computacionais da mente pode ser formulada com bastante clareza. A computação não nomeia uma característica intrínseca da realidade, mas uma relativa ao observador, e isso porque a computação é definida em termos de manipulação simbólica, mas a noção de ‘símbolo’ não é uma noção da física ou química. Algo é um símbolo somente se é usado, tratado ou considerado como um símbolo. (…) Não há nenhuma propriedade puramente física que zeros e uns ou símbolos em geral possuam e que determine que eles sejam símbolos. Algo é um símbolo somente relativo a algum observador, usuário ou agente que lhe atribua uma interpretação simbólica. Então a questão, “É a consciência um programa de computador”, não tem sentido claro.

John Searle, Consciousness and Language

Nas réplicas ao artigo de Searle, Minds, brains and programs, estão algumas das boas mentes da filosofia analítica (alguns ex-analíticos, se poderia dizer): Arthur Danto, Daniel Dennett, Jerry Fodor, Richard Rorty.

Colocando as duas coisas lado a lado dá para ver que a crítica que Searle resume tão bem já estava em Wittgenstein, no caráter público e social da linguagem; no fato de que o código só vem muitoooo depois da prática — no princípio era o ato!; e na irredutibilidade do ato ao código (norma, lei, chame do que quiser). Aliás, as teorias computacionais da mente são a menor das coisas que tombam com o pensamento de Wittgenstein, a maior delas são os projetos e ambições derivadas do modelo lógico e matemático que ampara a computação (e Turing é seu cúmplice). Não digo isso para menosprezar o pensamento de Searle, que é nada menos que brilhante, apenas para lembrar como é extenso e profundo o legado esquecido do pensamento de Wittgenstein. Ignorado (entre outras razões) porque politicamente inconveniente!

PS. A memética é outra coisa que não para em pé considerando a ideia de regra de Wittgenstein. Embora eu goste muito dela, em teoria (nunca li a respeito realmente!).

Somos e não somos dados

Nem toda contradição fracassa ao tentar dizer algo com sentido. Em realidade, há sentidos que só se mostram por meio de contradições. Um exemplo pra ilustrar o que eu quero dizer.

Informações da minha própria máquina e suas configurações registradas nas estatísticas do blog

Somos dados porque nos tornamos commodities negociadas num mercado subterrâneo desconhecido pela maior parte das pessoas. De uma forma ou de outra, tudo que fazemos na internet está registrado. Ainda que existam meios de distorcer e falsificar certas informações sobre a origem ou conteúdo daquilo que fazemos (VPNs, anonymizers com o projeto Tor, criptografia, etc), os registros dos pedidos e transações entre os computadores estão armazenados em certos elos da rede por meio das quais eles circulam. O simples acesso ao servidor onde está hospedado uma página é suficiente para gerar informações sobre geolocalização (baseadas no IP do cliente), além de dados sobre sistema operativo, idioma e até resolução da tela na qual a página foi acessada (a imagem acima). Um banco de dados como o do Facebook ou da Google são uma mina de ouro. Quando ordinariamente digitamos um comentário no Facebook ou quando sem maiores preocupações fazemos uma busca no Google (logados em nossos perfis), esse comentário ou essa busca se acumulam num imenso reservatório que abriga as nossas outras ações, todas elas. O conjunto dos comentários, likes, pesquisas e outras ações dentro do Facebook ou do Google pode parecer um mero agregado unido apenas pela relação com nossa identidade, mas é justamente a relação com nossa identidade o que torna esses dados potencialmente interessantes e economicamente valiosos. As empresas de tecnologia veem nesse agregado uma fonte na qual garimpar regularidades e identificar padrões desconhecidos até mesmo para os responsáveis por tudo aquilo. Diz algo sobre nós aquilo que se repete, o que é regular. Vejam por exemplo a análise que Jose Roberto Toledo faz da nuvem de palavras nos programas dos candidatos. Ali, os termos se repetem não por mero acaso.

Os padrões identificados por algoritmos alimentam um mercado ansioso por dirigir seus produtos e serviços a pessoas com maior potencial de consumo. Por exemplo, quem vende um produto para mulheres grávidas prefere que ele seja oferecido a mulher que a homens, pois não é como se não fizesse diferença. Se pudéssemos pesquisar diretamente dentro da base de dados do Facebook (em certo sentido podemos) não seria difícil identificar potenciais clientes. Filtrando palavras como “bebê”, “grávida”, “gravidez” logo chegaríamos a uma lista provável de potenciais clientes.

(Hoje em dia quem quiser ganhar dinheiro tem um caminho certo e seguro: investir numa formação em Data science [Big Data, Machine learning e outras ferramentas]. Os profissionais ainda são relativamente poucos num mercado que movimenta mais de 200 bilhões de doláres anuais. Diariamente chega a minha caixa postal alguma proposta de curso de análise de dados. Este segmento do mercado de formação cresce exponencialmente em razão do aumento do uso de análise de dados como ferramenta para orientar a tomada de decisão não apenas na área de marketing, mas também no setor financeiro e tantos outros setores. Exemplos inusitados e interessantes do que se pode fazer analisando dados: 1) expert systems [um ramo das pesquisas em inteligência artificial] são usados para selecionar uma entre teorias que tem sólida base empírica e cujos pesquisadores são igualmente respeitados. 2) um engenheiro de software ensina a usar Python usando de dados públicos reunidos pelas instituições de uma cidade [Chicago, no caso], dados como números de buracos nas ruas, horários de ônibus, é fascinante.)

Acontece que os dados coletados na rede não tem apenas valor comercial, eles revelam uma dimensão que com frequência perdemos de vista: somos também máquinas. Há tempos a humanidade é contraposta a autômatos, robôs e androides, que se tornaram símbolos de sistemas cujo funcionamento é inteiramente previsível e que não dão lugar a variações drásticas (salvo em caso de mau funcionamento). Em Westworld, por exemplo, é evidente a crença de que os androides não podem agir senão conforme suas instruções, pois suas ações dependem de como eles são programados (coded). No entanto, uma parte significativa do nosso funcionamento é também mecânico e maquinal. O componente maquinal de nossa constituição não é, a meu ver, um obstáculo à ideia de liberdade (como não é em Westworld), mas ele nos torna vulneráveis a manipulações cada vez mais evidentes. O uso político de informações privilegiadas, como no caso da Cambridge Analytica, potencializa a capacidade de convencimento e persuasão de qualquer estratégia política, pois a envolve em termos familiares. A propaganda deixa de ser uma mera peça genérica e impessoal para tornar-se uma ação dirigida, composta segundo padrões aos quais sabidamente somos sensíveis. Os aplicativos que são capazes de identificar doenças pela mera análise dos padrões do uso do mouse e teclado revelam que a tecnologia ainda pode contar muito sobre nós mesmo, pois há muito o que desconhecemos. Se essas informações chegarem primeiro aos interessados em dirigir nossa ação e nossa atenção num determinado sentido seremos presas fáceis e indefesas de uma instrumentação política pouco comprometida com nossos interesses e necessidades e nada interessada no bem público.


Não somos dados porque não nos limitamos aos dados que nos constituem e com os quais tentam nos definir e reduzir. A dimensão maquinal que nos compõe não é tudo que somos, pois somos maiores que a soma das nossas partes. No entanto, prevalece em nosso modo de ver o mundo a pretensão de mapear a totalidade utilizando exclusivamente o esquema binário daquilo que se conhece e do que não se conhece. Sendo assim, somos os dados que se conhecem — aqueles que se deixam filtrar na infinidade de dispositivos nos quais involuntária e inconscientemente deixamos registradas informações sobre nós mesmos — mais aqueles que ainda não se conhecem pois ainda não criamos os dispostivos apropriados para garimpá-los. Diante disso, acreditar na liberdade significa acreditar que esse esquema não esgota o que somos e que o campo extensional (daquilo que se reduz a verdades) é demasiadamente estreito para nos conter (mesmo que nele estejam inscritos também as bases naturais da intencionalidade).

A predomínio (a gente poderia dizer a hegemonia) de certas ideias produz a impressão de que nos limitamos aos dados que produzimos. Contribui para essa perspectiva a força predominante do marco científico e, particularmente, um certo modelo de consciência que enfatiza as similaridades entre a nossa mente e o modelo computacional. É como se nossa mente fosse um mero computador a processar informações e estímulos exteriores e interiores. Um computador igualmente composto de hardware (o cérebro) e software (a consciência). Daí a ideia de que a Inteligência Artificial não apenas poderia replicar a inteligência e o entendimento humano, mas também explicá-los. John Searle tem um artigo bem interessante sobre esse ponto, mas num livro posterior ele resume claramente sua objeção a essa perspectiva:

A computação é definida sintaticamente. É definida em termos de manipulação de símbolos. Contudo, a sintaxe em si mesma não pode nunca ser suficiente para o tipo de conteúdo que apropriadamente acompanha pensamentos conscientes. Em si mesmo ter apenas zeros e uns é insuficiente para garantir conteúdo mental, consciente ou inconsciente (…) Absolutamente essencial para entender a natureza das ciências naturais é a distinção entre aquelas características da realidade que são intrínsecas e aquelas que são relativas a um observador. A atração gravitacional é intrínseca. Ser uma nota de cinco dólares é relativa a um observador. Agora, a grande objeção às teorias computacionais da mente pode ser formulada com bastante clareza. A computação não nomeia uma característica intrínseca da realidade, mas uma relativa ao observador, e isso porque a computação é definida em termos de manipulação simbólica, mas a noção de ‘símbolo’ não é uma noção da física ou química. Algo é um símbolo somente se é usado, tratado ou considerado como um símbolo. (…) Não há nenhuma propriedade puramente física que zeros e uns ou símbolos em geral possuam e que determine que eles sejam símbolos. Algo é um símbolo somente relativo a algum observador, usuário ou agente que lhe atribua uma interpretação simbólica. Então a questão, “É a consciência um programa de computador”, não tem sentido claro.

John Searle, Consciousness and Language

Num texto mais que recomendável, Douglas Rushkoff alerta igualmente para a ilusão da redução da experiência humana à imagem de meros processadores de informação.

Há anos os filósofos da tecnologia advertem: a visão transhumanista reduz com demasiada facilidade toda a realidade aos dados e conclui que “os seres humanos não são mais que objetos processadores de informação”.

O transhumanismo é apenas uma das faces e uma das consequências da ênfase excessiva sobre o que há de maquinal em nós. Se antes éramos o fantasma na máquina, agora que vivemos na era dos computadores parece ainda mais tentador converter a alma ou espírito no software que roda num hardware, sendo possível copiar este software, conservá-lo e transportá-lo para um diferente hardware. Dar um upgrade quando a antiga máquina não estiver mais funcionando apropriadamente. Quem sabe até mesmo atingir a eternidade por meio de técnicas de conservação e transposição de hardware. A obsessão humana por controle e estabilidade encontra na analogia com o hardware e software mais uma razão para apostar suas fichas numa solução tecnológica para as contingências da experiência humana.

Conhecer, computar e processar dados parece tudo quanto basta para esgotar aquilo que somos. Como se fossemos meramente um agregado de informações que podem ser extraídas e depois reunidas sob determinada ordem. Ainda que os dados e informações fossem em certo sentido suficientes para nos esgotar, não é como se esses dados determinassem sempre a mesma imagem daquilo que somos. Supomos que eles são como peças de um complexo quebra cabeça e se conseguirmos amealhar peças suficientes poderemos ter uma imagem clara de nós. É certo que conhecer essas peças nos habilita a saber como agir diante da máquina em que elas estão integradas, mas isso não significa que este domínio técnico (esse saber fazer) corresponda a um conhecer, num sentido importante. No interior de uma sociedade obcecada por domínio e controle, é difícil distinguir o conhecimento que nos habilita a manipular os fenômenos naturais com eficiência daquele que nos permite dizer com confiança que conhecemos alguém. Diante dessa distinção nossa tendência natural é responder: mas o que sobra, para além desses fenômenos naturais cujo domínio buscamos e ao quais parecemos nos resumir? O que há mais para conhecer? Há algo do lado de fora, ou melhor, pode haver algo? A metáfora do quebra cabeça talvez ajude a entender como o conhecimento pode produzir a possibilidade de controle e domínio, mas aquilo que ela tem de insatisfatório na hora de oferecer uma imagem adequada do que se diz quando dizemos conhecer alguém, por sua vez, nos ajuda a ver as limitações dessa metáfora e da própria pretensão de reduzir tudo a conjunto de dados determináveis.

As informações que nós temos das pessoas são partes de algo maior, algo indeterminável, embora estejamos inclinados a acreditar que existe um limite que funciona como uma fronteira, demarcando a totalidade do que somos e nos separando daquilo que não somos. Quando supomos que essas informações se unem a outras para formar um quebra-cabeça, nós representamos por meio de uma imagem a relação entre as partes e o todo. No entanto, as partes que compõem esse quebra cabeça (o todo) não podem ser organizadas de qualquer jeito, pois assim elas não se encaixariam e não seriam um retrato autêntico do que se representa. Cada peça tem o seu lugar. Para conhecer e manipular as pessoas tal como fazemos com as máquinas precisamos que a relação entre o todo e as partes esteja sujeita a uma ordem, funcione segundo regras e esteja emoldurada numa forma que se pretende universalmente reconhecível. A regularidade permite o controle e a criação de teorias que descrevem o comportamento da máquina. Assim, é preciso eliminar tudo aquilo que no comportamento da máquina parece inexplicável, fruto do mero acaso ou manifestação daquilo que tendemos a chamar de liberdade. É preciso eliminar o componente arbitrário (reduzindo-o a uma regularidade). Mas não conhecemos a nós mesmo nem as outras pessoas como quem reúne e acumula informações. É certo que o garoto que conhece os gostos da menina por quem é apaixonado talvez tenha mais chances que o outro que não os conhece, mas justamente porque esse conhecimento pode ser uma ferramenta pra produzir um efeito (aqui, como no caso da máquina, a causalidade é o que importa). No entanto, conhecer mais não necessariamente significa conhecer melhor. A despeito da inegável possibilidade de converter o que somos num conjunto infinito de dados, há uma incontornável liberdade com que se costura o sentido daquilo que nós mesmos somos, ou do que são os outros. As informações e dados sobre os outros podem sempre ser rearranjadas numa nova ordem, de acordo com novos eixos, de modo a provocar uma transformação radical no entendimento daquilo que se conhece. Claro que uma transformação pode ser impulsionada por novos conhecimentos, mas ela pode ser um mero rearranjo do que se sabe. Dados e informações não são forças que se impõem sobre as pessoas que os observam. Como símbolos que são, eles exigem interpretação e isso significa não apenas o trabalho de quem os coloca em seu devido lugar numa ordem já pré-determinada (no quebra cabeça), mas também a possibilidade radical de construir novas ordens, novas estruturas nas quais aquelas informações funcionam segundo outros eixos e diferentes fundações.

A coisa insidiosa sobre o ponto de vista causal é que ele nos leva a dizer: “Naturalmente, — é assim que tem que acontecer”. Enquanto deveríamos dizer: poderia ter acontecido assim, e também de muitos outros modos.

Wittgenstein, Cultura e valor

A força da linguagem, aquilo que ela tem de mais sublime e poderoso, consiste não na possibilidade de representar verdadeiramente o mundo (e a nós mesmos como parte dele), mas na possibilidade radical de apresentá-lo de outra maneira, reconstitui-lo a partir do mesmos elementos. A identidade do que nós somos ou do que são os outros depende significativamente do modo como arranjamos o que sabemos sobre nós e sobre o mundo. Ou como situamos, num plano mais amplo, o mistura entre o que sabemos e o que ignoramos. Mesmo que a ciência só admita um modelo de causalidade, ainda que só esse modelo seja eficiente, nós temos a liberdade de fazer o que quisermos com o que sabemos, de criar e produzir sentido. E é isso que nos impede de sermos reduzidos às informações sobre nós capturadas pelo sem número de filtro da rede computadores.

Westworld: identidade e fidelidade

Luciana Coelho publicou uma resenha sobre a segunda temporada de Westworld e me deu vontade de fazer o mesmo. Luciana é a única pessoa que eu leio, e em quem confio, escrevendo sobre séries (salvo a opinião dos amigos, claro).

Não preciso dizer que tenham cuidado com os spoilers.

Gostei muito da primeira temporada de Westworld, escrevi sobre algumas das ideias que me fascinaram, especialmente sobre liberdade e determinismo. O ponto alto da temporada é quando Dolores condescentemente escancara a decadência de Bill. Ela fala como a representante do futuro, daquilo que virá para substituir a prepotência e fragilibidade encarnada na sua figura e no seu império e para colocar em seu lugar algo diferente. Há outros momentos interessantes, mas esse me pareceu o mais marcante, pois é uma imagem interessantíssima da metamorfose que leva William a transformar-se (ou a reconhecer-se, em realidade) como um jogador inescrupuloso, Bill, que não consegue ver a vida senão como um jogo a ser vencido — e ele vence, em certo sentido.

A segunda temporada é oscilante, tem seus altos e baixos. Acho que algumas atuações são nada menos que lastimáveis. Às vezes a série parece perdida num turbilhão de temas e questões cuja conexão não é exatamente clara. A tentativa de fazer ver que o roteiro geral que orienta os hosts se adapta às diferentes culturas, sem perder seus eixos gerais, me parece mal feita, para dizer o mínimo. Chata, pra ser honesto. Mesmo que Maeve seja um dos personagens da série que mais inspira empatia. Apesar disso, certos temas e alguns episódios me fizeram cativo. O principal deles a tentativa de construir (ou reconstruir) a identidade dos visitantes.

Em certo momento ficamos sabendo que Westworld é na verdade um grande experimento e que os atrativos que aquele mundo oferece não são mais do que ensejos para que se produza aquilo em que o parque está verdadeiramente interessado. O parque em realidade se propõe a tentar copiar a identidade dos seus visitantes, a desenvolver essa capacidade tecnológica, e para isso é preciso que eles se mostrem como verdadeiramente são, isto é, que eles se livrem de suas máscaras. Isso por si só já é uma tremenda questão. Se aquilo que nós somos só se revela em nossas ações, em ações livres de constrangimentos sociais (normativos), é como se a série optasse pela posição de Nietzsche no dilema que eu discuti num post chamado: nossas paixões ou nossas ações nos definem. Não é como se a identidade fosse uma essência, escondida no interior de nossa alma. Ela se revela inteiramente na variedade de nossas ações, de tal maneira que é possível reconstitui-la, copiá-la, mediante o emprego de certas técnicas. Se prestarmos atenção, no entanto, veremos que esse modo de entender a identidade tem algo de híbrido. É verdade que a série trata a identidade como algo estreitamente vinculado à ação e ao comportamento, portanto, parece se afastar de perspectivas mentalistas, subjetivas e essencialistas sobre a identidade. Mas ao mesmo tempo a proposta de reduzi-la a uma espécie de algoritmo parece semelhante à ideia de essência, guardadas certas diferenças. Um algoritmo é um código que resolve um conjunto indeterminado de problemas, nesse caso concreto, o algoritmo que copia a identidade de uma pessoa X resolve o seguinte problema: como essa pessoa X reagiria às situações S1, S2, S3…? e assim por diante. Parece como se o algoritmo fosse algo semelhante a uma essência, algo que se conservaria a despeito das mudanças e variações futuras.

O algoritmo que tenta reconstruir a identidade de um visitante precisa ser capaz de fazer a cópia reagir em determinada situação tal como reagiria o original copiado, por isso é constante na série a menção à ideia de fidelidade. A fidelidade é a um outro modo de tratar a identidade. Em computação a ação de verificar a identidade entre dois arquivos (ou a fidelidade entre eles) é um recurso de segurança, e isso se faz geralmente aplicando um algoritmo que gera uma hash única para determinado arquivo. Se o arquivo tiver sido copiado sem modificação (sem adição intrusiva de um código malicioso, por exemplo), a aplicação do algoritmo à copia do arquivo produzirá como resultado a mesma hash (md5sum é um conhecido verificador). No caso da identidade/fidelidade da cópia de um visitante, a verificação se dá pelo confronto direto, esse é o caso da relação entre William (Bill) e James Delos, um dos primeiros a ser a copiado. (Bem, pelo menos até que a gente descubra que Bernard é uma cópia de Arnold cuja identidade foi verificada pela própria Dolores, que virada!) William aparece reiteradamente para Delos, que está enclausurado num espaço repetindo indefinidas vezes uma mesma rotina, talvez a fim de tentar aperfeiçoar sua identidade. William aparece para conversa com Delos em diferentes épocas ao largo da temporada. Delos sempre o recebe com uma indisfarcável ansiedade para se ver livre da situação e questiona o propósito daquela conversa que retarda sua liberdade, a resposta de William é sempre a mesma: fidelidade. Quando William parece fugir do script e confrontá-lo, revelando a razão da conversa, a cópia de Delos tem uma espécie de sobrecarga e revela suas deficiências. Ele não é sequer capaz de articular um discurso. Embora seu gestual pareça reproduzir fielmente o comportamento explosivo e dominador de Delos, sua expressão verbal não acompanha suas emoções e fica evidente que o experimento falhou.

A série lida com temas muito interessantes e suscita questões de todo tipo, questões que às vezes estão colocadas para profissionais que lidam com tecnologias semelhante às apresentadas na série ou pelos teóricos que refletem sobre esses usos tecnológicos ou outros aspectos de fundo. Para mim, uma dessas questões é: a possibilidade de reduzir a identidade de uma pessoa a um algoritmo não supõe em certa medida a impossibilidade de mudança? Isto é, não supõe que a identidade é algo fixo e imutável e que nossas ações não podem escapar às determinações dessa essência? Talvez esse seja o sentido da negação da liberdade que a série sugere em algum ponto da sua parte final, mas ainda assim essa parece ser uma questão espinhosa. Outra questão seria: a redução da identidade a um algoritmo que garante a fidelidade do padrão de comportamento de um pessoa tem algum valor se não for possível copiar também as suas memória originais? Na segunda temporada a série passa à margem, ou pelo menos não se aprofunda, no tema da relação entre memória e identidade, tema que foi fantasticamente abordado na primeira temporada. (O papel da memória na gênese da consciência dos hosts e a função do labirinto nesse quadro de imagens sugere que os roteiristas, ou seus assessores, tem uma relação familiar com temas da filosofia da consciência; eu bem gostaria de escrever sobre esses temas, embora saiba muito pouco sobre eles). As cópias parecem ter pelo menos algum tipo de backup cuidadosamente selecionado da memória dos originais. Bernard, por exemplo, tem como a sua cornerstone a morte do filho e esse é um dos elementos mnémicos herdados de Arnold. Mas a série não aborda como isso se dá, já que essa cópia não pode ser feita por meio de algoritmos (ou seja, não é tecnicamente possível, embora livros, desenhos [e filmes] como Ghost in the shell sugiram essa ideia e nos apresentem como espíritos que pode ser transplantados para diferentes shells). Esse é um dos pontos mais espinhosos de certas discussões sobre modelos de consciência. Nossa tendência quase natural é pensar a memória como dados inscritos no nosso hardware (cérebro), mas essa metáfora, embora útil em muitos sentidos, tem uma dificuldade insuperável que é a necessidade de supor uma linguagem ou “código” em que a memória se inscreve na fisiologia. (Em breve quero escrever sobre essa tendência, natural em nosso contexto tecnológico, de enxergar o humano como um mero agregado de dados ou uma máquina de processamento de dados.)

Se Deus pudesse ver dentro de nossas mentes (Seelen), ele não poderia saber de quem nós estamos falando. — Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 284

Nenhum questionamento ou dificuldade lhe desabona, é um imenso mérito da série trazer temas abstratos, afastados da nossa vida, e apresentá-los em situações concretas (ainda que fictícias) para que avaliemos seus efeitos éticos e políticos. Esse é, aliás, o mérito do cinema, bem como das séries de maneira geral, eles tornam palpável e concreto aquilo que mesmo quem está familiarizado com discussões abstratas ou técnicas nem sempre consegue exemplificar (e explicar). A abstração é um obstáculo ao entendimento que foi legitimado pela compreensão de que exemplos e imagens são dispensáveis — muletas, para lembrar de Kant — que devem ser preteridas por quem não tem dificuldade em julgar. As artes visuais tem muito que nos ensinar e deveriam ser instrumentos essenciais em qualquer processo de ensino e aprendizagem. Westworld não apenas nos ensina, nos estimula a aprender e a refletir.