Toda metáfora tem aspectos que podem ser percebidos como limitações por permitir que se enfatize coisas indesejadas. Isso porque a metáfora não quer (espelhar || representar) aquilo que tematiza, a metáfora quer justamente falar de algo da perspectiva de um “ver como”. A névoa permanente pode ser uma excelente metáfora para ilustrar a passagem entre dois mundos, mas ela tem o grande inconveniente de ilustrar apenas o negativo. Ninguém saúda a névoa como uma coisa boa, como fonte de possibilidades positivas e desejáveis, mas passar a outro mundo pode sim ser algo bom (embora em certo sentido seja sempre doloroso).
O valor da metáfora está em apresentar de forma muito clara e visual a circunstância de ver o mundo de uma nova forma, de vê-lo a partir de novas cores, com novas lentes.
Inevitável não pensar em Stephen King e na maravilhosa adaptação do seu livro ao cinema, esse filme é um clássico pós-moderno, O nevoeiro (2007):
Não achei nenhum trailer em português (dublado ou legendado)
Helly na “Break Room”, série: Severance (Apple TV)
Há textos que mudam a vida da gente, ninguém é o mesmo depois de ter lido Dostoiévski, por exemplo. Dostoiévski apresenta situações que ou 1) você não conhece, às vezes nem sequer imagina, e aquilo te choca, ou 2) você as conhece e aquilo te redime. E eu gostaria de forçar as pessoas a lerem certos textos. Especialmente ensaios e aforismos.
Forçar literalmente, como no “Break room” de Severance (Apple TV), ou na famosa cena de Laranja Mecânica, obrigar (a ver && a ler), fazer ler compulsoriamente até que, quase que por osmose, o que estivesse dito ali pudesse ser entendido, sentido, integrado, imaginado. Um dos textos que eu obrigaria os outros a ler seria “Isto é água” (em PDF no Google Drive, pra quem quiser voluntariamente ler), de David Foster Wallace — até os átomos deste teclado sabem disso. Outro texto seria o de um amigo dele, Jonathan Franzen, “A dor não nos matará” (aqui também, em PDF no Google Drive). Um texto do livro Como ficar sozinho.
É um texto belíssimo, cheio de uma capacidade de ver as articulações entre o mundo eletrônico e nossa vida cotidiana, uma capacidade que todo mundo finge que tem — como fingiam aqueles que diziam ver a roupa nova do rei — mas que muito pouca gente tem de fato. O texto de Franzen trata de uma maneira bastante pessoal sobre o amor, suas dores e delícias, num mundo digital e globalizado, no qual parecemos estar conectados aos outros, mas cuja virtualização das conexões humanas mal disfarça a solidão e o distanciamento que correm por baixo da fachada simbólica da conectividade.
Quando ficamos trancados em nossos quartos, bufando, caçoando ou nos sentindo indiferentes, como fiz durante tantos anos, o mundo e seus problemas parecem desafios impossíveis. Mas quando saímos às ruas e temos relacionamentos reais com seres reais, ou mesmo animais reais, há o perigo bastante real de amarmos alguns deles. E então quem saberá dizer que rumo a vida tomará?
Jonathan Franzen, “A dor não nos matará”, Como ficar sozinho
Quando a gente aprende a escrever, e especialmente quando nos ensinam redação, as pessoas enfatizam a necessidade de escrever textos com “começo, meio e fim”. Essa é uma maneira de falar sobre a necessidade de articulação entre os elementos do texto, sobre a necessidade de coerência, unidade, ordem, todas essas coisas. É preciso que o texto esteja conectado de tal sorte que ele pareça, às outras pessoas, não um mero emaranhado de palavras, arbitrariamente agregadas, mas algo com sentido e unidade próprios. Assim, explicitar o fio de Ariadne, construir as conexões (utilizar os conectivos) seriam compromissos que favoreceriam a universalidade do entendimento, na medida que o conhecimento comunicado por meio de um texto seria facilmente transmissível, uma vez que sua integridade poderia ser reconstituída por meio dos conectivos e regras que amarram suas ideias. O compromisso com a ordem é o compromisso com o caráter público da linguagem, com o lugar dos acordos e consensos necessários ao entendimento pelo uso da linguagem.
Tais ideias e conceitos são fantásticos e funcionam tremendamente, mesmo dentro dos campos de investigação científica, não são regras e princípios que se limitam a serem ensinadas para as crianças, quando precisamos treiná-las a escrever, elas valem pra toda a vida. Acontece que a vida não é apenas conhecimento, fatos e verdades, é também aquilo que está em desordem, aquilo que aparentemente não tem sentido, e tudo isso, muitas vezes, está também embrenhado no mais íntimo do nosso cotidiano, como aspecto talvez ainda mais forte do que qualquer verdade que saibamos. Quando é assim, às vezes a gente pode querer escrever coisas que parecem carecer de sentido, cuja ordem, se existe, é pouco aparente, e cujas partes têm conexões nada explícitas. É difícil desejar escrever assim porque imediatamente vem à nossa cabeça o imperativo da coerência e da regularidade, como uma espécie de polícia subjetiva a nos fiscalizar. O desgosto ou a incapacidade para fabricar discursos cuja sistematicidade esteja evidente, como parte objetiva do texto, logo passa a ser sentida como deficiência, como coisa que precisa ser remediada. E é certo que muita gente que por aí ainda sofre terrivelmente com isso. Eu tive a sorte de encontrar muitos seres humanos que me fizeram pensar a linguagem de outra maneira: Clarice Lispector, Wittgenstein, Paul Celan, etc. Toda a poesia é um convite à reflexão sobre nossa relação com a linguagem e com o mundo.
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Wittgenstein sofreu com essa deficiência e, ainda que ele afirme a não-linearidade do seu pensamento, não é como se esse tema fosse algo bem resolvido em sua cabeça, nunca é — é sempre uma luta para aceitar-se.
Se estou pensando apenas por mim mesmo sem querer escrever um livro, eu dou voltas ao redor do tema (I jump about all round the topic); essa é a única maneira de pensar que é natural para mim. Forçar meus pensamentos para uma sequência ordenada é um tormento para mim. Será que eu deveria tentar agora ordená-los? Desperdiço esforços incontáveis fazendo um arranjo de meus pensamentos, que pode não ter valor algum.
Wittgenstein, Manuscritos
No entanto, no Tractatus Logico-Philosophicus ele estabeleceu aberta e deliberadamente esse modo de pensar ao afirmar que “Este livro talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si próprio o que nele vem expresso — ou, pelo menos, algo semelhante”. Seu estilo críptico se deve então a que não pareça necessário cumprir a exigência áurea que prescreve o começo, meio e fim e o uso dos conectivos como meio produzir algo semelhante a uma universalidade do entendimento. É como se sua escrita fosse efetivamente composta somente àqueles que já estivessem aptos a entendê-la, o que significa uma franca recusa da universalidade.
Para as pessoas que lutam para viver e pensar com uma cabeça que opera de modo não-normal, é libertador inteirar-se da existência de pensadores como Wittgenstein. Perto das pessoas estranhas, os estranhos se sentem normais.
Se há alguma moral da história, algum sentido para todas essas observações, o sentido diz respeito à linguagem e ao modo como lidamos com ela. Embora seja inevitável buscar a universalidade por meio dos acordos e regras gerais, bem como ansiar pela aprovação dos outros, no uso da linguagem há algo de profundamente solipsista (e num certo sentido, profundamente insano e doentio), de tal modo que se poderia dizer que usar a linguagem radicalmente significar apropriar-se dela. Reinventar a linguagem, abandonando todo o compromisso que não seja o de permitir que ela seja, não um instrumento, mas uma extensão no nosso ser, por meio do qual podemos expressar a singularidade da nossa experiência. Não raras vezes essa experiência pode conduzir a um distanciamento dos outros, a uma excentricidade que não é fácil de suportar — eu gostaria de ter alguma palavra de consolo aqui, mas infelizmente elas me faltam. De qualquer modo, o que guia instintivamente quem busca apropriar-se da linguagem é um desejo irrefreável de conseguir expressar pensamentos com uma espécie de fidelidade às ideias a partir da quais eles foram concebidos. (Representação não é a palavra adequada, mas é a que melhor nos serve). E é o exercício de buscar essa “representação” perfeita de uma ideia o que nos leva a apropriar-nos da linguagem e, no melhor nos casos, a paulatinamente adquirir consciência da necessidade da rebeldia, disso que nos conduz, numa última etapa, à apropriação compreendida como entendimento que somos cada um de nós os únicos senhores responsáveis por instituir e destituir as regras de uso da linguagem e aquilo que é necessário para dizer o que precisamos dizer.
Mais importante do que a universalidade das regras linguísticas — que é, no final das contas, a expressão de um projeto intelectual que nós aprendemos fomos adestrados a respeitar cegamente — é o esforço contínuo para forjar uma linguagem que, em aparência, só nos afasta dos outros, da generalidade do universal, mas que em realidade é a porta de entrada para novas conexões, para que os outros percebam o quanto suas próprias idiossincrasias são também aspectos secretamente partilhados e, a partir disso, sintam-se também instados a lançar-se na aventura de buscar apropriar-se da linguagem. Que nada disso apague a importância daquilo que se expressa na ideia do “começo, meio e fim”, mas que tenhamos presente essa nova necessidade, necessidade do nosso tempo, de romper com os projetos de universalidade para achar novos caminhos, menos populosos, mas igualmente importantes para todos. O que importa é menos a unidade e mais a confluência.
O Livro do Desassossego é desconcertante, os temas passeiam nele amarrados por um elo quase invisível. E as coisas que surgem assim, quase ex nihil, são frequentemente focos de reflexões profundas que, hoje em dia, poderiam alimentar teses e mais teses de doutorado. Tudo está ali apresentado como coisa aparentemente casual, amealhada distraidamente. Vejam esse parágrafo onde Bernardo Soares começa a discutir o romantismo e os românticos:
A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam em si mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha idéia de vivê-la. O homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras… Poucos (são) como eu habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possibilidade estética de se sonhar assim.
É como se ele falasse de um realismo romântico, como se dissesse: “para a maioria das pessoas esse é o Real”; a despeito das pretensões de determinação e objetividade, eu acrescentaria. O “imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres” é simplesmente fantástico! Mas a conversa de botequim ainda não terminou e ele ainda não expôs completamente sua tese sobre o romantismo:
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
O sonho é a verdade interior da natureza humana, poderíamos até mesmo dizer que é concreto; o sonho e o possível (não o atual), aquilo que vive dentro de nós quase como delírio. Como aquilo que vive na alma pode ser concreto? Essa é uma clara afronta ao modernismo cartesiano, às pretensões do cogito, e a tudo que ele inaugura. Bernardo remata a consideração distanciando-se destes sonhadores que, embora reconheça como irmãos, não têm algo o que ele possui:
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distração, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório da Rua dos Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu quarto barato, com o que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha […] ao sonho
Um registro da Rua dos Douradores, em Lisboa.
Há em tudo isso não apenas uma espécie de elogio à fantasia, mas também, quase paradoxalmente, uma ode à lucidez e ao que se opõe aos desvarios do sonho. O que detém esse impulso ao sonho e à fantasia no próprio Bernardo? Nada mais, nada menos que um outro eu que gargalha ao deparar-se com as aspirações românticas, com o realismo romântico e sua concretude cotidiana. Essa é a solução mais onerosa e mais custosa do ponto de vista filosófico, inventar um novo eu que refreia o impulso de fantasiar, que equilibra porque ri e não leva a sério, seria simplesmente absurdo e patético, se não fosse divino, se não constituísse o próprio eixo da criação da obra de Fernando Pessoa. Esse eu que gargalha das pretensões românticas planta seus pés no chão sem chegar a esterilizar a imaginação, ele é uma parte do “real” internalizada, como a mobília do quarto que, por sua materialidade vulgar, impede que os aplausos que vêm do sonho sobreponham-se à realidade mesquinha da rua dos Douradores. Se um eu prefere o material e mesquinho, o outro faz do sonho a sua morada e seu próprio real.. e qual deles prevalece? Por que precisa haver uma prevalência? Esse é o lugar da poesia e o modo dela nos lembrar da irredutibilidade do Real à verdade (e ao conhecimento).
Por que as pessoas não mudam de opinião mesmo quando ouvem bons argumentos e/ou fatos que contrariam suas crenças? Bem, primeiro, porque fatos importam muito menos do que creem os cientistas (e os realistas em geral). Mas o mais importante é: porque a psicologia é o centro da vida simbólica humana, não a lógica. E a vontade é o único fator que determina o colapso ou a manutenção de sistemas de crenças. O único.
Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água, mas não se pode obrigá-lo a beber.
Sommerset Maughan, A servidão humana
E adivinha? Todo mundo quer manter o seu sistema de crenças. Tendemos à estabilidade (o contrário disso pode bem ser a loucura). Tanto as pessoas estúpidas quanto as inteligentes tendem à estabilidade. A inventividade e o engenho de um cientista — nosso único modelo de inteligência — não necessariamente o abrem à transformação, ele apenas vive num mundo mais complexo que o estúpido (quando não é um deles), não significa que ele esteja mais disposto a trocar de mundo. Um mundo complexo é um mundo mais difícil de desestabilizar.
(Thomas Kuhn e Imre Lakatos falam, cada um à sua maneira, sobre a relação da ciência com a estabilidade: em Kuhn o ponto de vista é o dia a dia do desenvolvimento das pesquisas cientificas, a relação conservadora da ciência normal com as mudanças de paradigma; Lakatos parte da perspectiva de alguém que quer entender e explicar as transformações do falsificacionismo de Popper, do seu falsificacionismo dogmático até suas formas mais sofisticadas onde a psicologia ganha o espaço inevitável que deve ter.)
Ouvir um argumento e estar disposto a ouvir argumentos significa aceitar um jogo cujos limites cada um tem a atribuição de fixar, nesse jogo nada pode obrigar e constranger alguém, apesar da enorme importância que concedemos a fatos e verdades, leis e normas. Absolutamente nada. Não somos máquinas, sistemas input/output, embora esse seja um bom modelo para pensar nossa relação com os argumentos e seu efeitos proposicionais e epistêmicos.
Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”
Ludwig Wittenstein, Sobre a certeza, § 512
A impossibilidade da coerção/coação e a falta de acordo sobre os fundamentos sempre levará alguém a sonhar com a ideia de que a linguagem (natural) deveria obedecer… ou melhor, funcionar como pretensamente funcionam a matemática e a lógica. Assim nascem os impulsos intelectuais envolvidos num mito importante — um dos muitos mitos de uma sociedade tecnológica e sem mitos, a Tecnosfera: o mito da determinação (derivado da mitologia das regras1). Mas não convém falar disso agora.
Não levanta nenhuma controvérsia (entre matemáticos, por exemplo) o fato da regra ser ou não seguida adequadamente. Não se chega por isso a atos de violência. Pertence ao arcabouço a partir do qual nossa linguagem atua (por exemplo, dá uma descrição).
Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 240
O caso é que vivemos em mundos diferentes, e a pretensão de comunicar-se com outros seres humanos a partir de chaves intelectuais universais não basta para afetá-los (isso significa que essa saída pela universalização está bloqueada de Kant e Frege até Habermas).
Não é como se a única forma de nos afetar fosse por meio de argumentos, ou como se nossa visão de mundo pudesse ser reduzida à totalidade de um sistema de proposições. Levar as pessoas a mudar não é apenas um processo de controle de inferências.
Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.
Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 19
Vou fazer duas considerações gerais sobre o que acabo de dizer, dois comentários sobre os quais deveríamos refletir, se é verdade que nosso modo de afetar se afunilou a uma, digamos, dieta unilateral:
A arte (como domínio do não-factual) precisa ser integrada à cultura humana não apenas como forma de entretenimento, mas como fonte de aprendizado. E em um lugar central. Como uma maneira de entender a importância do ficcional… e seu alcance ético. Ou como um modo de nos ensinar a diminuir a importância que acreditamos que o conhecimento tem para a ética (abandonar Platão), de repensar o lugar da ciência na cultura humana e de aceitar a verdade da post-truth, como a extrema-direita já tem feito um monte de gente aceitar (para desespero de uma esquerda que não sabe bem o que fazer, e que parece ainda disposta usar o fact-checking como arma política/ideológica). Enfim, abraçar a pós-modernidade e tirar proveito dessa perspectiva.
A filosofia e o pensar precisam tornar-se comuns, parte do maquinário cotidiano dos seres humano, como uma maneira de nos adaptar à instabilidade, à mudança a que nos conduziu o progresso tecnológico que iniciamos no último século. Filosofar significa aceitar a instabilidade, construir quadros normativos, isso é certo e inevitável, mas sobretudo aprender a valorar, a determinar valor a medida que as circunstâncias se dão — aprendizado que não pode ser reduzido à constituição de quadros normativos e a qualquer forma de objetividade (lição do Tractatus, da Conferência sobre a ética). Não se pode ensinar a julgar e a pensar.
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.
Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus § 6.52
É claro que bons argumentos importam! Aceitar a pós-modernidade não significa transformar-se num marqueteiro ou num pastor — e vender qualquer coisa. A verdade importa profundamente! Mas não como instrumento capaz de constranger e coagir, de acionar as engrenagens da necessidade (lógica), e definitivamente não como parte do único modo de lidar com o Real, como retrato e representação do Real que não admite concorrentes.
“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.
Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 241
1 Escrevi sobre o modelo determinação e a mitologia das regras na tese de doutorado, e essa ideia é uma das três pedradas na matemática que foram lançadas no século XX. Uma delas é a pedrada de Gödel no PrincipiaMathematica, de Russell; a outra é a de Turing, uma pedrada nas definições em sua passagem ao jogo da imitação; e há a pedrada de Wittgenstein em si mesmo, no Tractatus e em seu perfeito modelo de determinação, que as Investigações Filosóficas apresenta como a máquina, arquétipo invencível de determinação (e que afeta não só a matemática, mas todo o simbolismo, por isso Kripke considerou o que ele chama de paradoxo cético o mais bombástico problema filosófico já formulado). Esse comentário sobre a determinação está na segunda seção do quarto capítulo da tese, e tem só 6 páginas. A matemática é o zombie mais poderoso que existe — e porque vivemos no mundo da computação e dos computadores, a determinação não sairá do nosso horizonte intelectual tão cedo. (Mesmo que o quanta traga um cenário tão diferente e desafiador para perspectivas determinísticas em causalidade.)
Escrever e falar são habilidades distintas, com diferentes pesos na cultura. A escrita tem o peso de uma técnica, é uma aquisição de segunda ordem e exige dedicação não apenas ao próprio exercício de escrever, mas também ao ato de leitura. A leitura não é uma atividade no mesmo sentido em que dizemos que a escrita é uma atividade, a leitura é mais passiva, menos criativa. Você pode entendê-la como atividade e como espaço de criação se imaginar alguém lendo um poema, como Caetano Veloso lendo Elegia, de Drummond..
ou seja, se pensar a leitura como algo aparentado às artes cênicas, à retórica (que não é pouca coisa), mas ainda assim não é disso que eu estou falando. Bem, o que eu quero é apenas destacar que embora a escrita possa a prescindir da leitura, em geral as duas coisas caminham juntas, de sorte que a habilidade de escrever acompanha o hábito de ler, e o hábito da leitura contribue decisivamente para que a escrita também se fortaleça como expressão do espírito.
Este é um relato pessoal sobre minha experiência com duas competências bem gerais, na minha vida a escrita tem sido minha habilidade preferida, aquela à qual eu dediquei maior atenção. Pela diferença mencionada antes, pelo fato da escrita ser mais técnica, estar ligada a uma tradição longeva que reúne seres humanos da melhor espécie que eu posso conceber; seres humanos que eu aprendi ao longo da vida a amar e admirar, de Aristóteles a Charlotte Brönte, de Clarice Lispector a Heráclito. Pierre Clastres define negativamente a sociedade arcaica como uma sociedade caracterizada pela “pela ausência· de escrita e pela economia dita de subsistência”, isso dá uma boa medida da importância da escrita e de tudo que ela envolve. À parte essa justificativa sociológica da escolha, a verdade é que minha percepção era de que falar era comum, e a vontade de falar a mais vulgar das pretensões.
Escrever, ao contrário, não tinha nada de comum, requeria dedicação, esforço, regularidade, alguma disciplina, senso de objetividade, leitura, coragem (para expor o que se escreve e para submetê-lo a apreciação), e tantos aspectos precisavam ser mobilizados no desenvolvimento dessa competência que não parecia nem mesmo justo comparar o desejo de saber falar com o desejo de saber escrever. E, bem, até hoje tem sido assim. Mas a verdade é que faz alguns anos eu me dei conta do que as coisas não são assim tão simples. Minha avaliação das virtudes envolvidas no domínio da fala não era justa, apenas um endosso cego (embora bem justificado) de uma vontade de escrever que, dado o contexto onde eu cresci, parecia ser a única coisa que alguém deveria almejar.
Ainda é verdade que as pessoas continuam falando muito depois de não terem mais nada que dizer, mas é verdade também que a própria escrita se banalizou. O caso é que a fala tem ao seu lado uma infinidade de aspectos que eu simplesmente não tinha me dado conta, fechado em minha bolha. Antes de mais nada, pra relembrar o que eu já disse antes: “o verbo” significa o sopro divino cuja importância se deixa notar no fato de que, embora pudéssemos criar vida segundo a tradição cabalística, só Deus podia conceder às criaturas o dom da fala, insuflar em nós o espírito. Mesmo que eu não seja exatamente um religioso, essa ideia tem um simbolismo que transcende a dimensão religiosa.
Além disso, a fala, como a escrita, é também um meio de expressão, no sentido de que por meio dela as pessoas tentam moldar o significado de suas existências e externalizar aquilo que, como uma necessidade vital, precisa ser externalizado. Isso significa que o mesmo ímpeto que sente quem precisa da escrita como um modo de ser no mundo também sente quem precisa da fala e o fato dela ser uma competência comum não torna menos extraordinário quando as pessoas verdadeiramente conseguem fazer disso uma habilidade excepcional.
Mas por que você escreve? – A: Eu não sou daqueles que pensam tendo na mão a pena molhada; tampouco daqueles que diante do tinteiro aberto se abandonam as suas paixões, sentados na cadeira e olhando fixamente para o papel. Eu me irrito ou me envergonho do ato de escrever; escrever é para mim uma necessidade imperiosa – falar disso, mesmo por imagens, é algo que me desgosta. B: Mas por que você escreve então? A: Cá entre nós, meu caro, eu não descobri ainda outra maneira de me livrar de meus pensamentos. B: E por que você quer se livrar deles? A: Por que eu quero? E eu quero? Eu preciso. – B: Basta! Basta!
Nietzsche. Humano, demasiado humano, § 93
Há ainda muitas outras questões que ganham destaque em razão da singularidade de nossa circunstância histórico-tecnológica. A fala tem uma dinamicidade natural que a escrita não pode ter, falando podemos rapidamente corrigir-nos, repetir, ajustar e refazer o que é dito, pois não há o compromisso com o produto (o output) que a escrita necessariamente deve manter. No contexto de uma sociedade digital, essa dinamicidade aliada à acessibilidade da fala parece quase pressionar uma mudança de paradigma. Em alguns registros da vida humana não me surpreenderia se nós constatássemos a substituição da escrita pela oralidade (dada a possibilidade de registro em vídeo, ao invés de um simples registro em formato de texto digital). Essa é uma possibilidade já aventada por algumas pessoas.
Devo dizer, pensando bem sobre minha desconfiança com o falar, que a implicância na verdade era contra o seu caráter comum e o popular. Ou seja, o que realmente não me interessava era me dirigir a pessoas cujo entendimento pudesse decifrar somente aquilo que não contivesse nenhum grau de abstração. Havia, portanto, um elitismo na minha escolha, e um elitismo compreensível, dado que até hoje mesmo o debate público no Brasil (e grande parte do discurso que se produz) é profunda e sintomaticamente carente em matéria de abstração.
Acontece que sem o comum não há comunicação, e por comum eu entendo não aquilo que perpassa diferentes compreensões de uma ideia qualquer, mas, ao contrário, o próprio modo de costurar uma compreensão comum tendo em conta um público/audiência. O falar está mais habituado ao ajuste, àquilo que me refiro quando digo que a humanidade é uma rede peer-to-peer. Muitas vezes mais importante do que encontrar aquele aspecto comum que a abstração extrai por meio de uma generalização é forjar este comum sobre la marcha, isto é, no calor de uma intercâmbio de consciências, tendo em contas todos os aspectos da psicologia de massas, do aspecto intersubjetivo da fala.
Minha relação com a fala se desenvolveu relativamente pouco, pois eu sempre me restringi a falar apenas com as pessoas eram minha audiência, pessoas que em tese já seriam capazes de entender minha escrita. Isso quer dizer que nossa conversa já se encontrava favorecida por conexões que encurtavam a necessidade de palavras, como geralmente acontecesse com amigos (ainda quero um dia escrever sobre isso). Desenvolver a fala significa desenvolver a capacidade de estabelecer conexões circunstanciais e de fazer ajustes dinâmicos, o melhoramento dessa capacidade implica uma desenvoltura que não se reduz a uma técnica (aliás, como a própria escrita) e tem efeito ético e político.
O destino se encarregou de criar circunstâncias que me levaram a encarar a necessidade de desenvolver, pelo menos um pouco, minha capacidade de falar fora da bolha. O efeito da fala é notoriamente distinto, porque perceptível. A escrita é uma experiência solitária e raramente constatamos seu efeito. A fala, ao contrário, exige algum tipo de presença e por isso com frequência tem efeito notório e imediato. A presença do espírito, para usar uma expressão conhecida e interessante, se manifesta mais perceptivelmente por meio da fala. Isso por si só já é um tremendo fato, e profundamente atrativo.
Apesar de tudo isso, pra mim o maior desafio de desenvolver a fala é a completa aversão que eu sinto pela vulgaridade do desejo de falar. Na minha cabeça a vontade de falar está visceralmente associada a um intuito de chamar atenção tão comum e tão vazio que eu não consigo admitir esse desejo senão como expressão de um sentimento que eu não toleraria em mim. Depois de um tempo a escrita naturalmente se converte não apenas num hábito, mas numa necessidade, em algo que dá azo ao que nela há de terapêutico. Como admitir coisa semelhante a uma vontade de falar, quando me enoja as pessoas que vão pela rua matraqueando como se tudo que lhes saísse pela boca fosse pure gold? Como não sentir vergonha pelo desejo vaidoso e egocêntrico de sentir o holofotes apontados para si? Há muitos obstáculos postos para meu desejo de aperfeiçoar essa competência e o desafio de superá-los aponta para questões que foram sempre centrais para mim.
A escrita tinha aparentemente uma vantagem (que não tem mais), ela podia funcionar como um horcrux, pois era um modo de gravar o espírito no texto. Por exemplo, nas páginas dos seus livros e escritos o espírito de Nietzsche vive, como Sauron vivia no Um anel, como Valdemort vivia nos horcrux (o que me leva a pensar, Tolkien inspirou J. K. Rowling?). Sua presença pode ser sentida. A oralidade, apesar de sua força, do seu caráter imensurável, tinha muitas limitações, que foram superadas depois que aprendemos a gravar em vídeo, e especialmente depois que entramos numa sociedade digital e construímos tecnologias de armazenamento como o Solid State Drive (SSD). O historiador da computação Paul Cerruzi tem uma seção só sobre Solid State Eletronics em seu livro, Computing, a concise history.