Por que bons argumentos não importam?

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Por que as pessoas não mudam de opinião mesmo quando ouvem bons argumentos e/ou fatos que contrariam suas crenças? Bem, primeiro, porque fatos importam muito menos do que creem os cientistas (e os realistas em geral). Mas o mais importante é: porque a psicologia é o centro da vida simbólica humana, não a lógica. E a vontade é o único fator que determina o colapso ou a manutenção de sistemas de crenças. O único.

Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água, mas não se pode obrigá-lo a beber.

Sommerset Maughan, A servidão humana

E adivinha? Todo mundo quer manter o seu sistema de crenças. Tendemos à estabilidade (o contrário disso pode bem ser a loucura). Tanto as pessoas estúpidas quanto as inteligentes tendem à estabilidade. A inventividade e o engenho de um cientista — nosso único modelo de inteligência — não necessariamente o abrem à transformação, ele apenas vive num mundo mais complexo que o estúpido (quando não é um deles), não significa que ele esteja mais disposto a trocar de mundo. Um mundo complexo é um mundo mais difícil de desestabilizar.

(Thomas Kuhn e Imre Lakatos falam, cada um à sua maneira, sobre a relação da ciência com a estabilidade: em Kuhn o ponto de vista é o dia a dia do desenvolvimento das pesquisas cientificas, a relação conservadora da ciência normal com as mudanças de paradigma; Lakatos parte da perspectiva de alguém que quer entender e explicar as transformações do falsificacionismo de Popper, do seu falsificacionismo dogmático até suas formas mais sofisticadas onde a psicologia ganha o espaço inevitável que deve ter.)

Ouvir um argumento e estar disposto a ouvir argumentos significa aceitar um jogo cujos limites cada um tem a atribuição de fixar, nesse jogo nada pode obrigar e constranger alguém, apesar da enorme importância que concedemos a fatos e verdades, leis e normas. Absolutamente nada. Não somos máquinas, sistemas input/output, embora esse seja um bom modelo para pensar nossa relação com os argumentos e seu efeitos proposicionais e epistêmicos.

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”

Ludwig Wittenstein, Sobre a certeza, § 512

A impossibilidade da coerção/coação e a falta de acordo sobre os fundamentos sempre levará alguém a sonhar com a ideia de que a linguagem (natural) deveria obedecer… ou melhor, funcionar como pretensamente funcionam a matemática e a lógica. Assim nascem os impulsos intelectuais envolvidos num mito importante — um dos muitos mitos de uma sociedade tecnológica e sem mitos, a Tecnosfera: o mito da determinação (derivado da mitologia das regras1). Mas não convém falar disso agora.

Não levanta nenhuma controvérsia (entre matemáticos, por exemplo) o fato da regra ser ou não seguida adequadamente. Não se chega por isso a atos de violência. Pertence ao arcabouço a partir do qual nossa linguagem atua (por exemplo, dá uma descrição).

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 240

O caso é que vivemos em mundos diferentes, e a pretensão de comunicar-se com outros seres humanos a partir de chaves intelectuais universais não basta para afetá-los (isso significa que essa saída pela universalização está bloqueada de Kant e Frege até Habermas).

Não é como se a única forma de nos afetar fosse por meio de argumentos, ou como se nossa visão de mundo pudesse ser reduzida à totalidade de um sistema de proposições. Levar as pessoas a mudar não é apenas um processo de controle de inferências.

Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 19

Vou fazer duas considerações gerais sobre o que acabo de dizer, dois comentários sobre os quais deveríamos refletir, se é verdade que nosso modo de afetar se afunilou a uma, digamos, dieta unilateral:

A arte (como domínio do não-factual) precisa ser integrada à cultura humana não apenas como forma de entretenimento, mas como fonte de aprendizado. E em um lugar central. Como uma maneira de entender a importância do ficcional… e seu alcance ético. Ou como um modo de nos ensinar a diminuir a importância que acreditamos que o conhecimento tem para a ética (abandonar Platão), de repensar o lugar da ciência na cultura humana e de aceitar a verdade da post-truth, como a extrema-direita já tem feito um monte de gente aceitar (para desespero de uma esquerda que não sabe bem o que fazer, e que parece ainda disposta usar o fact-checking como arma política/ideológica). Enfim, abraçar a pós-modernidade e tirar proveito dessa perspectiva.

A filosofia e o pensar precisam tornar-se comuns, parte do maquinário cotidiano dos seres humano, como uma maneira de nos adaptar à instabilidade, à mudança a que nos conduziu o progresso tecnológico que iniciamos no último século. Filosofar significa aceitar a instabilidade, construir quadros normativos, isso é certo e inevitável, mas sobretudo aprender a valorar, a determinar valor a medida que as circunstâncias se dão — aprendizado que não pode ser reduzido à constituição de quadros normativos e a qualquer forma de objetividade (lição do Tractatus, da Conferência sobre a ética). Não se pode ensinar a julgar e a pensar.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus § 6.52

É claro que bons argumentos importam! Aceitar a pós-modernidade não significa transformar-se num marqueteiro ou num pastor — e vender qualquer coisa. A verdade importa profundamente! Mas não como instrumento capaz de constranger e coagir, de acionar as engrenagens da necessidade (lógica), e definitivamente não como parte do único modo de lidar com o Real, como retrato e representação do Real que não admite concorrentes.

“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 241

1 Escrevi sobre o modelo determinação e a mitologia das regras na tese de doutorado, e essa ideia é uma das três pedradas na matemática que foram lançadas no século XX. Uma delas é a pedrada de Gödel no Principia Mathematica, de Russell; a outra é a de Turing, uma pedrada nas definições em sua passagem ao jogo da imitação; e há a pedrada de Wittgenstein em si mesmo, no Tractatus e em seu perfeito modelo de determinação, que as Investigações Filosóficas apresenta como a máquina, arquétipo invencível de determinação (e que afeta não só a matemática, mas todo o simbolismo, por isso Kripke considerou o que ele chama de paradoxo cético o mais bombástico problema filosófico já formulado). Esse comentário sobre a determinação está na segunda seção do quarto capítulo da tese, e tem só 6 páginas. A matemática é o zombie mais poderoso que existe — e porque vivemos no mundo da computação e dos computadores, a determinação não sairá do nosso horizonte intelectual tão cedo. (Mesmo que o quanta traga um cenário tão diferente e desafiador para perspectivas determinísticas em causalidade.)

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