Por que bons argumentos não importam?

Por que as pessoas não mudam de opinião mesmo quando ouvem bons argumentos e/ou fatos que contrariam suas crenças? Bem, primeiro, porque fatos importam muito menos do que creem os cientistas (e os realistas em geral). Mas o mais importante é: porque a psicologia é o centro da vida simbólica humana, não a lógica. E a vontade é o único fator que determina o colapso ou a manutenção de sistemas de crenças. O único.

Pode-se conduzir um cavalo à beira d’água, mas não se pode obrigá-lo a beber.

Sommerset Maughan, A servidão humana

E adivinha? Todo mundo quer manter o seu sistema de crenças. Tendemos à estabilidade (o contrário disso pode bem ser a loucura). Tanto as pessoas estúpidas quanto as inteligentes tendem à estabilidade. A inventividade e o engenho de um cientista — nosso único modelo de inteligência — não necessariamente o abrem à transformação, ele apenas vive num mundo mais complexo que o estúpido (quando não é um deles), não significa que ele esteja mais disposto a trocar de mundo. Um mundo complexo é um mundo mais difícil de desestabilizar.

(Thomas Kuhn e Imre Lakatos falam, cada um à sua maneira, sobre a relação da ciência com a estabilidade: em Kuhn o ponto de vista é o dia a dia do desenvolvimento das pesquisas cientificas, a relação conservadora da ciência normal com as mudanças de paradigma; Lakatos parte da perspectiva de alguém que quer entender e explicar as transformações do falsificacionismo de Popper, do seu falsificacionismo dogmático até suas formas mais sofisticadas onde a psicologia ganha o espaço inevitável que deve ter.)

Ouvir um argumento e estar disposto a ouvir argumentos significa aceitar um jogo cujos limites cada um tem a atribuição de fixar, nesse jogo nada pode obrigar e constranger alguém, apesar da enorme importância que concedemos a fatos e verdades, leis e normas. Absolutamente nada. Não somos máquinas, sistemas input/output, embora esse seja um bom modelo para pensar nossa relação com os argumentos e seu efeitos proposicionais e epistêmicos.

Não é essa a questão: “E se você tivesse que mudar de opinião mesmo sobre aquelas coisas mais fundamentais?” E a resposta a essa questão parece ser: “Você não tem que mudar. Isso é exatamente o que ser ‘fundamental’ significa”

Ludwig Wittenstein, Sobre a certeza, § 512

A impossibilidade da coerção/coação e a falta de acordo sobre os fundamentos sempre levará alguém a sonhar com a ideia de que a linguagem (natural) deveria obedecer… ou melhor, funcionar como pretensamente funcionam a matemática e a lógica. Assim nascem os impulsos intelectuais envolvidos num mito importante — um dos muitos mitos de uma sociedade tecnológica e sem mitos, a Tecnosfera: o mito da determinação (derivado da mitologia das regras1). Mas não convém falar disso agora.

Não levanta nenhuma controvérsia (entre matemáticos, por exemplo) o fato da regra ser ou não seguida adequadamente. Não se chega por isso a atos de violência. Pertence ao arcabouço a partir do qual nossa linguagem atua (por exemplo, dá uma descrição).

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 240

O caso é que vivemos em mundos diferentes, e a pretensão de comunicar-se com outros seres humanos a partir de chaves intelectuais universais não basta para afetá-los (isso significa que essa saída pela universalização está bloqueada de Kant e Frege até Habermas).

Não é como se a única forma de nos afetar fosse por meio de argumentos, ou como se nossa visão de mundo pudesse ser reduzida à totalidade de um sistema de proposições. Levar as pessoas a mudar não é apenas um processo de controle de inferências.

Imaginar uma linguagem significa imaginar uma forma de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 19

Vou fazer duas considerações gerais sobre o que acabo de dizer, dois comentários sobre os quais deveríamos refletir, se é verdade que nosso modo de afetar se afunilou a uma, digamos, dieta unilateral:

A arte (como domínio do não-factual) precisa ser integrada à cultura humana não apenas como forma de entretenimento, mas como fonte de aprendizado. E em um lugar central. Como uma maneira de entender a importância do ficcional… e seu alcance ético. Ou como um modo de nos ensinar a diminuir a importância que acreditamos que o conhecimento tem para a ética (abandonar Platão), de repensar o lugar da ciência na cultura humana e de aceitar a verdade da post-truth, como a extrema-direita já tem feito um monte de gente aceitar (para desespero de uma esquerda que não sabe bem o que fazer, e que parece ainda disposta usar o fact-checking como arma política/ideológica). Enfim, abraçar a pós-modernidade e tirar proveito dessa perspectiva.

A filosofia e o pensar precisam tornar-se comuns, parte do maquinário cotidiano dos seres humano, como uma maneira de nos adaptar à instabilidade, à mudança a que nos conduziu o progresso tecnológico que iniciamos no último século. Filosofar significa aceitar a instabilidade, construir quadros normativos, isso é certo e inevitável, mas sobretudo aprender a valorar, a determinar valor a medida que as circunstâncias se dão — aprendizado que não pode ser reduzido à constituição de quadros normativos e a qualquer forma de objetividade (lição do Tractatus, da Conferência sobre a ética). Não se pode ensinar a julgar e a pensar.

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus § 6.52

É claro que bons argumentos importam! Aceitar a pós-modernidade não significa transformar-se num marqueteiro ou num pastor — e vender qualquer coisa. A verdade importa profundamente! Mas não como instrumento capaz de constranger e coagir, de acionar as engrenagens da necessidade (lógica), e definitivamente não como parte do único modo de lidar com o Real, como retrato e representação do Real que não admite concorrentes.

“Então você está dizendo que o acordo entre homens decide o que é verdadeiro e o que é falso?” — Verdade ou falsidade é o que os homens dizem; e na linguagem os homens estão de acordo. Esse não é um acordo de opinião, mas de formas de vida.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas § 241

1 Escrevi sobre o modelo determinação e a mitologia das regras na tese de doutorado, e essa ideia é uma das três pedradas na matemática que foram lançadas no século XX. Uma delas é a pedrada de Gödel no Principia Mathematica, de Russell; a outra é a de Turing, uma pedrada nas definições em sua passagem ao jogo da imitação; e há a pedrada de Wittgenstein em si mesmo, no Tractatus e em seu perfeito modelo de determinação, que as Investigações Filosóficas apresenta como a máquina, arquétipo invencível de determinação (e que afeta não só a matemática, mas todo o simbolismo, por isso Kripke considerou o que ele chama de paradoxo cético o mais bombástico problema filosófico já formulado). Esse comentário sobre a determinação está na segunda seção do quarto capítulo da tese, e tem só 6 páginas. A matemática é o zombie mais poderoso que existe — e porque vivemos no mundo da computação e dos computadores, a determinação não sairá do nosso horizonte intelectual tão cedo. (Mesmo que o quanta traga um cenário tão diferente e desafiador para perspectivas determinísticas em causalidade.)

Autoridade e conhecimento na sociedade digital

Não é possível saber tudo — mas é possível escolher boas autoridades. Quero dizer, a menos que você fale sobre poucos e restritos domínios, você não pode oferecer razões para todas as conclusões que você extrai, avaliando informações e verdades em distintos campos de saber. (Colocando de outro modo: você não tem como oferecer aquilo que se aceita como garantido para passar das premissas às conclusões de um argumento em todos os campos, isto é, as garantias argumentativas). Mas as pessoas se formam em matemática e naturalmente falam sobre política, física, literatura, etc. Cada pessoa tem seus interesses. Em certos momentos, se você quiser seguir utilizando os conceitos de outra área, mesmo que não tenha pleno conhecimento sobre ela e sem se dedicar intensamente a estudá-la — e supondo que você concorda que não é possível se dedicar a todas as áreas possíveis ao longo da vida — você deve confiar nas garantias argumentativas que um outro tem, mas que você não pode oferecer. Esse é o papel da autoridade. E não há melhor representação da autoridade do que Einstein.

FUGA

Está
Cada vez mais difícil
Fugir de mim!
Albert Einstein

Confesse, por um segundo o nome de Albert Einstein não ameaçou emprestar aos horrorosos poemas de Michel Temer algo do seu brilho? Se você não se deixou enganar, parabéns, mas nem todos nós estamos imunes à possibilidade de estar submetido a uma confiança cega na autoridade, uma vez que aceitemos querer saber de tudo. (Essa expressão boba é apenas um modo de representar o gosto pelas infinitas possibilidades que a capacidade simbólica humana oferece). “9 de cada 10 pessoas que citam Einstein estão certas”, pensamos. Mas o que empresta ao pensamento de Einstein essa autoridade que parece transcender o próprio domínio da física? Muitas vezes não sabemos, ou não sabemos tal como um professor de física poderia expor a questão. Isso porque em algum ponto da cadeia de argumentos que poderia ser apresentada para justificar a autoridade de Einstein seriam necessários conhecimentos físicos que não temos. Alguém certamente poderia me enganar apresentando um conjunto arbitrário de notações usando variáveis e letras grega e me dizendo se tratar de um importante teorema de Gödel. Me enganar significa: eu não saberia avaliar a verdade do que essa pessoa diz. Mas o mais importante é: eu não preciso aceitá-la como autoridade. E voltamos mais uma vez a Einstein. A escolha da autoridade é importantíssima, portanto também a noção de credibilidade.  Mas essas ideias vieram apenas como preâmbulo de outro tema: lendo sobre mídias sociais, encontrei nesse texto a seguinte citação:

As pessoas são capazes de capturar, escrever, compartilhar notícias nas plataformas de mídias sociais, permitindo ao leitor tomar o controle, desafiar o conceito tradicional de notícias unilaterais (one-way news).
Sagan & Leighto, The Internet & the future of news. American Academy of Arts & Sciences, 139(2): 119-125.

[Um metacomentário: eu não sou capaz de reconhecer a autoridade dos pesquisadores, a bibliografia básica de um pesquisador dessa área pode ser gigantesca, mas eu tenho boas razões para acreditar no que ele diz, e isso já é o bastante para suscitar interesse e gerar confiança] Nesses tempos de mídias sociais parece imprescindível ter uma relação mais flexível com as autoridades e com nossas próprias perspectivas e conhecimentos. Sob pena de não sermos capazes de utilizar as ferramentas que já estão disponíveis para aqueles que querem usar os recursos de uma sociedade digital. (Eu sou um crítico da lógica social que dirige o desenvolvimento tecnológico, mas não um tecnofóbico.) Por ocasião morte de Alvin Toffler, quem eu não conhecia, saiu um texto no Nexo com algumas de suas frases e uma delas chamou minha atenção:

O iliterato do século 21 não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aqueles que não conseguem aprender, desaprender e reaprender

Nada mal pra um dito de um livro de 1970, Choque do Futuro. Esse é o caso! Mas dou um exemplo mais concreto. No Twitter, há poucos dias, saiu o indiciamento do presidente Lula e eu queria saber se o pedido da Polícia Federal era sustentável (razoável) e se Polícia havia mudado de posição, já que dias antes uma notícia em nota de rodapé dizia que a Polícia não havia indiciado nem Lula nem dona Marisa. Minutos depois me esclareceram que se tratava de outro processo e fiquei até sabendo o pedido de indiciamento estava bem fundamentado. Decidi acreditar no que me disse alguém, porque não queria ler o relatório. Acreditar numa autoridade não precisa ser um bicho de sete cabeças, quando você tem boas razões e quando não se tem compromissos com (pelo menos parte das) suas crenças (ou alguma ferida narcísica que nos impeça de admitir erros). Nosso conhecimento, daqui pra frente, terá que saber articular fontes confiáveis (no modelo tradicional de pesquisa e produção de conhecimento) à capacidade de reconhecer autoridades (ainda que provisórias e locais) a fim de formar uma perspectiva da realidade (ou tomar uma decisão) com os dados que temos disponíveis, num tempo curto. Essa não é uma recusa à paciência do conceito, mas uma solução de adaptação e necessidade. Nesse cenário, a representação da realidade (para quem não está preocupado com o analítico) será menos inteiriça, mais fragmentária e indeterminada do que gostariam os intelectuais tradicionais, mas outro cenário me parece tecnologicamente inevitável, já que o fim do capitalismo não é uma opção (e o capitalismo exige inovação e inovação tecnológica). Teremos então muitas representações heterogêneas, perfeitamente falíveis e questionáveis, sem que isso desabone a capacidade de uma certa representação de comunicar um sentido que talvez deva ser examinado. Acho que esse é um dos novos modelos de representação/apresentação, e de argumento, de uma sociedade digital — uma sociedade que não tem como processar a quantidade exorbitante de dados que produz e que ainda assim precisa aprender a agir a partir dessa perspectiva provisória e indeterminada.  

PS. Outra ideia ilustrativa: os dados coletados pelo Large Hadron Collider formam um enorme conjunto de dados a espera de teorias. Essa enorme quantidade de dados se transforma num mecanismo eficiente para descartar teorias, já que os dados, as independent of theory as possible, podem ser imediatamente comparados às previsões de futuras teorias. Acho que essa é uma boa imagem (junto com toda a ideia de Big Data) para representar a diferença de ritmo entre a nossa produção de informação e a nossa capacidade de conferir sentido a tudo que temos.  

A cultura da influência

O post também poderia se chamar o paradoxo dos especialistas. Em filosofia, os especialistas, pesquisadores especializados em autores e/ou temas em certos autores, são muito importantes. Eles acabam estabelecendo leituras, quase como doutrinas ou jurisprudências. E naturalmente o recurso à leitura de especialistas acaba virando um aspecto importante da própria pesquisa acadêmica.

Quando o recurso ao especialista é usado como um dos critério para avaliação de um trabalho filosófico (exégetico ou não) ele se transforma numa espécie de chancela que corrobora certas interpretações. Naturalmente, como há muitas perspectivas, há diferentes normas e critérios que se ajustam em linhas interpretativas. Tudo isso funciona de maneira a formar uma colcha de retalhos: a comunidade filosófica abriga uma série de linhas e o trabalho avaliado tem tanto mais força quanto mais ele é capaz de dar suporte à sua leitura não apenas por meio do autor estudado, mas também segundo as linhas disponíveis. Vejamos um caso em concreto. Através desse recurso seria possível avaliar — mesmo não sendo especialista numa certa fase do pensamento de um filósofo — se um trabalho sobre Capitalismo e Esquizofrenia, de Deleuze, é capaz de mobilizar apropriadamente a obra em questão, mas também as leituras disponíveis nas linhas de interpretação consolidadas. (O exemplo não é dos melhores, escolhi Deleuze para ter que citar Wittgenstein ou Heidegger). Porque, naturalmente, há linhas diferentes, de acordo com perspectivas e ênfases diferentes. Contudo, ênfases diferentes podem levar um filósofo de crítico mordaz do antisemitismo a mentor intelectual de políticas antisemitas, como todos sabem. Claro que este último exemplo é um caso extremado, mas a escolha foi deliberada. O caso foi escolhido para destacar um aspecto. Há, no entanto, diferenças em menor grau.

O problema é: argumentativamente, isso não raras vezes funciona como uma garantia que pretende justificar a inferência que nos leva da constatação de uma diferença interpretativa (com a qual não concordamos) à conclusão de que a interpretação carece de força. “Eu confio nos especialistas”. Mas há especialistas dizendo toda sorte de coisa. Confiar em consensos nem sempre é um bom argumento (embora em certos casos possa ser uma garantia suficiente). Portanto, a confiança ela mesma nem sempre substitui o argumento do especialista. E então surge o paradoxo às vezes comum. Quando usamos o confronto com uma bibliografia como critério, inevitável e até inconscientemente nós selecionamos uma leitura e a aceitamos como padrão. Se você usa uma certa leitura como critério, como padrão, obviamente economiza tempo (racionaliza tempo) ao cobrir uma área mais extensa do que seu campo de atuação ou interesse acreditando que outros já o fizeram. Ou simplesmente acreditando nos outros. O problema da autoridade não é exatamente simples, sobretudo quando se considera certas discussões sugeridas nos debate sobre teoria da argumentação — e em especial se considerarmos o vínculo que (acredito eu) essas discussões tem com a lógica paraconsistente e sua aplicação (ou seja, com as discussões a respeito do que se pode fazer quando se enfrentam contradições). O caso é que da aplicação desse critério, se o aceitarmos como critério, só pode resultar, no melhor dos casos, em dissidências controladas, nunca rupturas completas. A confiança no especialista e nas suas ideias, consagradas ao longo do tempo, só pode gerar o efeito psicológico da desconfiança em que não é. Ou pelo menos em quem não é especialita tal como “o especialista” ou “os especialistas”. E esse é o caráter paralisante do que deveria ser um critério de seleção do melhor trabalho. Para o pensamento, há um perigoso componente de esterilidade quando o que era pra ser uma ferramenta auxiliar se converte num farol da atividade intelectual.

Curioso é que, creio, isso tem muito a ver com a desconfiança que alguns autores manifestaram contra a influência intelectual, autores como Nietzsche (contam, não sei) e Wittgenstein.


É inexequível dar conta de tudo que já foi dito sobre um autor. Mas a pretensão de dar conta de uma bibliografia que, nos tempos de hoje, cresce a uma velocidade assustadora, só pode ser um grande entrave à própria capacidade criativa de quem se propõe a refletir. A força reflexiva fica engessada pela necessidade de enfrentar leituras já estabelecidas. A necessidade de definir critérios de rigor (aceitação de leituras, procedimento, métodos consagrados) que nos torne capazes de estabelecer uma comunidade (como a ciência pretensamente tem, embora a ciência seja mais fragmentária do que supõem os que a veem de fora) na qual o diálogo seja facilitador do “desenvolvimento de respostas” (outro contrabando da ciência) acaba por sufocar o próprio ânimo do pensamento, que exige, sobretudo, liberdade. A ideia de método, tal como a ideia de ordem, nos enfeitiçou. Acho que é preciso quebrar esse encanto.


Toda comunidade (intelectual ou não) tem um pouco de clube. O recurso a especialistas é uma maneira dos outros membros da comunidade filosófica entenderem que o sujeito deu conta de uma série de problemas que podem ser encontrados no texto de determinado filósofo. Mas ele supõe que os problemas e consequências implicadas pelo pensamento de um certo filósofo já estão estabelecidos. O mais difícil de ver é o que está sempre diante dos nossos olhos.

Intimidação, democracia e argumentação


Democracia exige pluralidade de ideias. Exige argumento, exige debate, mas exige sobretudo vontade — algo que, na sua melhor expressão, produz generosidade (como nos lembrava Nietzsche). Exige não apenas produção, mas também circulação de ideias. Portanto, nada mais danoso à democracia do que a intimidação. Aliás, esse é o sentido da ideia e da luta pela liberdade de expressão. Que ela tenha um aspecto turvo em alguns pontos, sobre se devemos permitir que circulem certos tipos de discurso, não tira a luminosidade da proposta: deixemos que as pessoas produzam e circulem ideias a fim de que as outras possam repensar sua própria experiência (individual, coletiva, social, sexual etc.) à luz do que acharem conveniente, e a gente discute depois o que fazer sobre nossos acordos.

Acontece que esses pontos turvos não são desimportantes, porque não poucas vezes a liberdade foi usada para ferir, controlar, escravizar — a liberdade produziu vítimas (o que me lembra Camus: “Mas os campos de escravos sob a flâmula da liberdade, os massacres justificados pelo amor ao homem pelo desejo de super-humanidade anuviam, em certo sentido, o julgamento. No momento em que o crime se enfei­ta com os despojos da inocência, por uma curiosa inversão peculiar ao nosso tempo, a própria inocência é intimada a justificar-se” — sempre atual). Surgiram então vozes que muito justamente reivindicavam a presença no debate público. Presença importantíssima, uma vez reconhecido que grupos inteiros da sociedade continuam excluídos ou sub-representados na composição de suas vozes. E continuam oprimidos. No entanto, é temerário, embora muito comum, crer que a opressão que ainda persiste será derrotada por uma ocupação topológica do espaço público, por uma espécie de conquista de território ocupado. E aí entra a intimidação. Pois o medo de produzir vítimas (ou o cuidado para não permitir isso) deu lugar ao poder vigilante que intimida o opressor [1]. E o caráter turvo de todo o cenário se complexificou com a reação que algumas pessoas tiveram ao se sentirem ameaças pela presença dessas novas vozes. Elas reagiram empregando os estereótipos geralmente utilizados para controlar essas vozes. O resultado foi aquela velha fórmula: “não sou X, mas …”. O espaço público entendido territorialmente ficou assim ocupado de forma significativa não só pelas novas vozes, instaladas precária e recentemente neste espaço, mas também por antigas vozes ressentidas que denunciam o que enxergam como uma ameaça. E a classe heterogênea de pessoas que não fazem parte dos dois grupos se viu entre um fogo cruzado [1]. No entanto, as pessoas que não se sentem ameaçadas podem ter críticas a fazer à prática ou à teoria que orienta essas novas vozes, podem ter diferenças [1]. Aliás, chamo de novas vozes até pra dar uma dimensão da pluralidade interna dos próprios movimentos, pra que não seja necessário instanciar o caso. No marco democrático da liberdade de expressão, uma crítica pode ser uma ocasião para refletirmos sobre nossas próprias práticas e teorias. Ou pode ser apenas um mal-entendido, pode ser muitas coisas. Entretanto, pra que possamos avaliar o que as pessoas dizem, elas tem que estar a vontade para falar. Um mau professor não é apenas um professor que não sabe que não é um depósito de conhecimento a ser despejado sobre os alunos, é também aquele que não cria as condições necessárias para o questionamento, para a reflexão — e para a expressão. O professor, penso eu, deve criar o ambiente necessário para que a liberdade da sala da aula prevaleça sobre a reação natural do aluno de se intimidar diante da autoridade do professor. Só assim podemos sentir o efeito real da liberdade de pensamento, seja na educação, seja na política.

A intimidação nasce da autoridade semelhante a do professor em sala de aula. Mas ela é até mais intimidadora. Porque a autoridade do professor é essencialmente epistêmica, isto é, relativa ao conhecimento. A autoridade que se mobiliza como meio de intimidação é moral. Não há nada mais intimidador, para quem compreende a dimensão danosa da liberdade, do que ser acusado de ser opressor. Por questão de justiça é preciso destacar que apenas uma parte das novas vozes usa a tática da intimidação, mas os danos são reais — e em especial junto às pessoas que certamente apoiam suas ideias. Os verdadeiros alvos dessas críticas não se preocupam com elas, porque eles nem reconhecem a “autoridade” dessas vozes. Eles continuam a pronunciar o “não sou X, mas …” porque eles não admitem que sejam X. A luta fica assim engessada entre alguém que não admite reconhecer-se como X, tenha dito ou feito o que for, e outro que vê em todo o fazer e dizer alheio um potencial dano e um potencial opressor (e também porque já compreendeu a dinâmica de poder embutida na capacidade de apontar opressores). Sendo assim, a intimidação já é um reconhecimento da alteridade, já é um “claro que não posso fazer parte dessa voz, claro que essa voz tem uma autoridade”. É certo que também um professor tem uma autoridade, mas a função mesma do professor é subordinar a autoridade àquilo que é o mais importante: o aprendizado. Do mesmo modo, na democracia, a autoridade das novas vozes é inegável. Mas ela deve estar subordinada à nossa crença mais fundamental no papel da produção e circulação da mais rica diversidade de ideias. E esta autoridade não pode nem deve ser instrumentalizada em nome da constituição de poderes de execução e legislação de tribunais morais. Não deve constranger o exercício da liberdade de pensamento — manipulando arbitrariamente o campo do repreensível e do censurável [2].

Podemos acreditar que essa intimidação beneficia alguém, na medida em que evitaria novos oprimidos e novos danos, mas a única vítima nesse caso é a democracia. Até porque, vigilância (e justiça) é algo diferente de intimidação.


[1] O caráter turvo da questão repousa justamente sobre o fato de que se pode questionar seja o pertencimento da pessoa que faz uma crítica ao grupo dos “não ameaçados”, seja a autoridade de quem expõe uma crítica — supondo ou definindo critérios para aferir essa autoridade. E os abusos que disso resultam dependem da capacidade e da autoridade dos que podem dizer quem é o opressor. E nesse pântano no qual garantias argumentativas funcionam como axiomas, o curto-circuito vira a própria regra de funcionamento do discurso na medida em que favorece a criação do poder que quase arbitrariamente faz os críticos transitarem do grupo de pessoas “não ameaçadas que tem uma crítica” ao grupo das “pessoas ameaçadas” que dissimulam sua ameaça. E elas então passam ao mesmo grupo das pessoas que dizem “não sou X, mas …”. Só que são acusadas de mascarar o caráter opressivo das suas palavras por meio de uma sofisticação que os que dizem simplesmente “não sou X, mas …” não empregam. Assim nós entramos no redemoinho das intenções — e dos tribunais que se constituem para julgá-las. A estratégia da denúncia de intenções pode ser resumida assim: ela consiste na acusação de que o outro esconde seus desejos e interesses. Daí a necessidade de fazê-los aparecer na esfera pública na forma de denúncia, de acusação. O desejo e o interesse para quem os sentem são coisas dadas, mas para os outros são sempre expressões, daí o caráter pantanoso da discussão. O desejo e o interesse nem sempre se manifestam com a objetividade de um argumento. O que não significa que não se possa discutir intenções, mas não me parece razoável fazer dessa estratégia uma forma privilegiada de argumentação, porque ela depende essencialmente de um tribunal moral. O tribunal naturalmente não se limita a julgar os casos em que a expressão das intenções é clara, ele também se incumbe da responsabilidade de definir os critérios das expressões e interesses, portanto, ele se constitui também como poder de falar do desejo e do interesse alheio.

[2] Claro que ninguém acredita estar manipulando arbitrariamente os limites desses campos, todo mundo se crê justificado em afirmar o que quer que seja e em acusar qualquer um. E é a partir dessa tensão que se engendra o poder que nós devemos discutir no sentido de evitar o redemoinho das intenções, um caminho que não costuma nos levar a acordos. Há uma tensão aí que não apenas não precisa ser resolvida, mas que não pode ser resolvida. E não à toa Márcia Tiburi escreveu um livro sobre um caso limite que não poucas vezes é tratado como regra: Como conversar com um fascista.

PS. Ainda há muito a ser dito sobre o tema, mas por ora fico por aqui, para não me estender em demasiado.
PPS. Eu criei esse blog como um exercício de expressão, desde então são quase 400 posts. Agora decidi que ele deve se tornar um exercício sistemático de expressão, embora ainda relax, de modo que tentarei escrever pelo menos um post por semana, preferencialmente às quartas. O que não significa que não possa publicar também nos outros dias.

Religiosidade: uma ameaça possível à ordem argumentativa?

Eu estava assistindo o vídeo de um programa em que Tulio Vianna comenta a questão da pirataria quando um comentário chamou minha atenção:

Ymaei quem pirateia é bandido

Eu planejei escrever sobre esse tipo de comportamento, mas pensei que vocês não fossem gostar. Agora o tema se me impõe. É incrível, não há obstáculos que impeçam um sujeito completamente ignorante de manifestar garbosamente sua imbecilidade. Longe de mim recomendar a censura ou coisas do gênero, o que me surpreende é que não existam mecanismos internos (vergonha, culpa, insegurança, receio) capazes de deter a expressão da bestialidade. (É preciso esclarecer, essa característica não se restringe aos religiosos, eu considerei escrever sobre assunto depois de ler comentários igualmente levianos sobre o Linux, destilados na caixa de comentários de um artigo no G1 que pretendia esclarecer dúvidas sobre o sistema).

O indíviduo passa anos estudando, sedimentando ideias e escolhas, fundamentando-as em fontes confiáveis ou construindo suas próprias bases teóricas, para que sua posição seja contraposta numa sentença dogmática que simplesmente ignora toda a argumentação em contrário. Curioso, fui olhar o perfil de criatura. Vejam os vídeos que encontrei por lá: Deus humilha o diabo no carnavalO Diabo perde a graça na Sapucaí. E, por fim: Silas Malafaia pregando contra a pirataria. A doutrina evangélica expandiu seus domínios e agora legisla também sobre o comportamento dos seus fiéis diante de um computador. O argumento do pastor: “O que Deus vai achar disso?” Comprou o CD pirata do pastor? “Você vai pro inferno, irmão”. Deus deve estar mesmo muito ocupado examinando a procedência dos CDs comprados pelos seus fiéis.

A intolerância é odiosa. Quando ela se mistura à estupidez, eis a receita de tudo que me contraria. Constatar o fortalecimento da classe evangélica, da representatividade política, da penetração da cultura gospel nos mais variados setores da vida cultural do país, é aterrorizante.

Abraão e Isaac

Meu temor é que, em circunstâncias extraordinárias — não é preciso que seja uma ameaça extraterrestre, como em O nevoeiro —, as pessoas se disponham a alienar o pouco espírito crítico e a autonomia que lhes restam a um suposto representante de Deus — como no filme. Desse modo, fiéis se converteriam em soldados cegos, guiados por alguém cujas palavras manifestam a vontade de Deus. Qual é o limite ou ao que estaria disposta uma pessoa submissa aos desígnios de Deus? Bem, vocês devem conhecer o famoso caso bíblico, o sacríficio de Isaac por Abraão (ou pelo menos a ordem divina), que fomentou grandiosas reflexões de Kierkegaard. (Em todo caso, o filme O nevoeiro é bastante para divisar as consequências nefastas dessa confiança cega). 

Qualquer ordem argumentativa se dissolve quando confrontada com os imperativos de uma entidade doadora de sentido. Ou seja, nenhum argumento, por mais forte e convincente que seja, mantém-se em pé caso se contraponha a uma ordem supostamente emanda por um Deus, isto é, por algo que provê o sentido da vida, a segurança e a esperança de milhões de pessoas. Deus é, antropologicamente, um instrumento de poder. Uma ferramenta que, desde tempos imemoriais, tem sido empregada para agenciar os medos mais primitivos dos homens em favor de certos grupos. As circunstâncias extraordinárias tendem a aprofundar a confiança nas ordens superiores — em prejuízo da crença na capacidade humana (desastres climáticos, guerras persistentes e situações políticas e sociais adversas). À medida que se perde a confiança nas forças humanas, tem sido quase natural entre nós, as expectativas são depositadas nos ombros de algum entidade. Com uma vantagem. Nas religiões, ao contrário da maior parte dos sistemas argumentativos, contradições constantes podem ser equilibradas convocando a famosa cláusula do Deus imperscrutável. “Deus escreve certo por linhas tortas”. Mais uma mostra da limitações humanas, não ser capaz de advinhar os desígnios divinos. A religiosidade é impenetrável.

Mas o problema maior ainda não está exposto. Quando Deus é o fator determinante para configuração de  códigos éticos e da moralidade de um tempo, os crédulos ficam sujeitos à vontade dos seus intérpretes. Situações adversas podem ser explicadas apelando para a suposta insatisfação divina, e redundar assim numa brusca alteração de códigos e normas de comportamento. Por hipótese, se, no futuro, a constância de uma série terrível de catástrofes naturais for explicada por algum pastor como resultado da insatisfação divina frente à iniquidade dos homens, quem deixará de agir conforme as palavras e recomendações desse pastor, caso reconheça nele a autoridade de um dos intérpretes de Deus? Quanto poder pode acumular uma pessoa quando o que ela manipula é o capital simbólico do medo e da esperança? Eu não consigo imaginar poder mais terrível.

A Igreja Católica durante longos séculos sustentou a pretensão de dar bases racionais à sua fé, por isso dissimulou parte da sua arbitrariedade. Hoje, enfraquecida pela sombra dos seus erros antigos e atuais, ela não apresenta ameaça significativa. As Igrejas neopentecostais, os evangélicos, por sua vez, são um perigo flagrante. Não é nem mesmo preciso que dissimulem, a democracia comporta a existência de suas ideias. Esse é um perigo, aliás, que subjaz à toda forma de religiosidade.

Se em circunstâncias normais as pessoas estão dispostas a aceitar os mais rasos argumentos do pastor Silas Malafaia, a agir ou não agir conforme seus conselhos, apenas porque ele é pretensamente reconhecido como um intérprete de Deus, o que aconteceria em situações extremadas? Se no contexto de reuniões diárias não há espaço para contrariar suas recomendações, imaginem vocês o que aconteceria caso o poder que ele detem fosse exponenciado por uma circunstância que colocasse a escolha divina como a única opção, como a única fonte de esperança, caso tudo que restasse aos homens fossem esperar por uma intervenção divina. As palavras dele teriam a força de lei. Nasceria assim um novo Leviatã.

A imagem do Leviatã é boa em muitos sentidos. A dissolução de um ordem argumentativa coincide também com a anulação quase que completa dos vínculos entre os sujeitos que a compunham. Há uma centralização na figura do Leviatã. Isto é, algo como um pacto entre eles deixa de existir, eles deixam de ter uns sobre os outros a capacidade de influenciar, demonstrar, persuadir, convencer, enquanto existir o Império do medo e da esperança. Toda a diferença é anulada enquanto o que restar for a promessa de uma salvação da Providência.

O poder da religião é ainda a mais velha, forte e complexa estrutura de manipulação e agenciamento da História e, repito, quando ela se mistura à política institucional, é de arrepiar. Faz a gente pensar que o poder cego e delirante pode se erguer mesmo sem o auxílio de circunstâncias extraordinárias. Eu quero ter morrido antes disso. Oxalá!

A falta de talento para argumentar

Das pessoas que produzem textos a serem associados à imagem de grandes grupos de comunicação parece que não é mais exigido nenhum talento especial para argumentar. Essa é uma impressão antiga que se precipitou hoje aqui em razão da pavorosa defesa que Barbara Gancia lançou em favor de Boris Casoy por conta do episódio em que ele se envolveu.

Se uma amiga me pergunta se seu vestido novo é bonito, há um forte constrangimento que me impele a ser político, a despeito da minha opinião sincera. Bem, eu não preciso explicar isso a ninguém, mas, certos contextos exigem discursos determinados, modos de ação determinados e até certa dissimulação. É certo que muita coisa errada se esconde por esses meios, mas só através deles nós podemos aparar as arestas do convívio social e torná-lo mais agradável. Tente dizer sempre a verdade e você logo perceberá uma catástrofe social em curso. É claro que, no meio político, as máscaras se confundem com a própria atividade. Entretanto, em qualquer caso, se houver um deslocamento, se um discurso, uma fala, uma frase sequer, dirigida a um determinado contexto, cai por acidente em qualquer outro, o dano logo se vê. Esse é o caso, por exemplo, do incidente envolvendo a declaração de Ricupero que foi trazida como analogia. Porém, o acidente não imuniza a declaração — atenua, talvez.

Mas isso nada tem a ver com o caso. O que se critica aqui é: em nenhum contexto a declaração deixa de ser preconceituosa. Ela não seria menos preconceituosa se não tivesse vazado, não se trata meramente de um deslocamento de discurso. Mesmo que, como ela supõe, Boris estivesse contestando as escolhas da produção, isso não amenizaria o tom preconceituoso da contestação. Mas Barbara abusa da inteligência do leitor e transforma um comentário preconceituo, desses que saem da boca das pessoas quando elas se sentem à vontade entre interlocutores coniventes, num gesto profissional:

Isso é da natureza do nosso trabalho e não tem nada a ver com preconceito.

Como se pudéssemos confundir o tom jocoso de um gracejo com uma observação estritamente profissional, uma contestação. Além desse malabarismo, sobram apelos e testemunhos pessoais e profissionais sobre o caráter de Boris. “Um tipo que se incomoda com leviandades”. As dos outros, na certa. E por fim, como não poderia deixar de ser, ela formula em duas linhas uma teoria para explicar a indignação geral:   Boris Casoy teve uma rusga pública com o governo Lula. Boris Casoy é identificado pela esquerda histérica como sendo um homem de direita. E, portanto, Boris Casoy deve ser atacado a cada oportunidade que se apresente. Menas, idiotas latino-americanos, menas.   Por fim, a indignação se explica na sanha da esquerda histérica, dos barbudinhos, como ela mesmo diz, ansiosa em atacar o que ela identifica como um homem de direita. Nada melhor, para desabonar as razões de outro, do que pintá-lo como alguém com segundas intenções, certo?   O texto parece um tratado prático de falácias, equívocos e má retórica. É uma bela declaração de afeto, mas um atestado de incompetência para argumentar que, sem necessidade, transforma comoção legítima, em esperteza políticas de gente de esquerda. Como se a questão suscitasse comentários políticos — e não éticos.   Talvez o primeiro indício de talento seja a capacidade para identificar temas defensáveis. Isso é uma vergonha! (sic)