A ciência não avança por falsificação

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Por duas razões quero abordar aqui problemas relativos ao falsificacionismo, primeiro, por conta de uma leitura bastante difundida segundo a qual a ciência avança por falsificação, isto é, observações e enunciados singulares falsificam ou corroboram hipóteses e teorias científicas. Nesse panorama a experiência cumpre o papel da última corte de apelação nas disputas teóricas. Segundo e por consequência, em razão da frequente mobilização do conceito de “fato” nos contextos em que se busca ancorar uma teoria no solo inconteste da experiência (ou da realidade). As duas posições envolvem um entendimento que se cerca de muitos problemas. Meu texto quer menos dissipar tais problemas do que apresentá-los segundo dois aspectos da interpretação exposta por Lakatos — a respeito do desenvolvimento teórico de Popper — em seu artigo La falsación y la metodología de los programas de investigatión científica.

Definir um critério de demarcação consiste num dos pontos essenciais da filosofia da Popper. Herança kantiana, ele envolve a tentativa de estebelecer uma fronteira nítida a partir da qual possamos distinguir os enunciados da ciência natural dos enunciados de outros campos do saber — da metafísica ou mesmo das ciências formais, lógica e matemática. O primeiro passo dessa empresa, contudo, traz a distinta marca humeana: negar à indução o papel de agente privilegiado na constituição da ciência. O conhecimento científico é de natureza sintética — isto é, seus resultados não eliminam a possibilidade de ocorrência contrária, não envolvem, como no caso do método dedutivo, necessidade lógica. A ciência natural deve incorporar a contingência como parte essencial da sua constituição, sob pena de confundir-se com as pretensões metafísicas. (ver Problem of induction). A experiência (as observações singulares) não pode através do método indutivo legitimar a inferência de leis universais. As observações e os fatos são sempre singulares e logicamente independentes — enquanto as leis universais que são a própria matéria do conhecimento científico e eixo de sua operacionalidade estabelecem ligações externas entre eventos logicamente independentes. Que o sol nasça todos os dias e que os homens sejam mortais parecem verdades irrefutáveis resultantes de leis gerais. Mas como a experiência de eventos singulares — o sol nascido no dia 14, 15 e 16, e nos dias anteriores ou a morte de José, Márcio, Antônio e todas antes dessas — pode justificar o enunciado que abrange todas as ocorrências possíveis, mesmo as futuras? Que elo lógico torna a possibilidade de o sol não nascer, ou de Pedro não morrer, uma contradição, algo impossível? Absolutamente nenhum. A experiência, ensinou Hume, não oferece suporte para operações semelhantes. O critério de demarcação que se apoia no método indutivo não consegue livrar a ciência de embaraços forjados ainda no século XVIII. Esse é um dos pontos de partida da reflexão popperiana.

Se a experiência não pode testemunhar em favor das leis unversais que a ciência propõe, ela pode, contudo, refutá-las e refutar com necessidade. Através do método dedutivo o cientista pode submeter uma hipótese a teste e refutá-la caso as consequências previstas sejam contrariadas ou não se cumpram. A experiência, assim, volta ao palco principal na condição de agente falsificador — através da prova indireta (modus tollens), de um método dedutivo que, portanto, comporta necessidade. De forma grosseira, eis o panorama do que Lakatos denomina de falsificacionismo dogmático. O cientista propõe uma teoria que deve ser submetida a teste, caso resista, é incorporada ao quadro de sistemas científicos até que sobrevenha um teste crucial que a falsifique (e assim a ciência progride). Científicas são aquelas teorias falseáveis, quer dizer, teorias que guardam a possibilidade de serem falsificadas, que dizem as circunstâncias que as tornariam falsas.

Segundo Lakatos, aí então começam os problemas para o falsificacionismo dogmático. Tornada agente falsificador, a experiência ainda apela para uma “psicologia da observação“. Os enunciados teóricos, contrapostos aos enunciados observacionais, são objetos de refutação. É preciso que nenhuma dúvida incida sobre a observação falsificadora. Mas como uma observação pode falsificar uma teoria? Como um sistema de enunciados, uma teoria científica, pode ser contrademonstrada por uma impressão sensível? Apenas se se imaginar que a observação envolvida na refutação é uma experiência comum, irredutível, imutável, universal, pura e acima de tudo verdadeira. (Mesmo assim não se dissolve o embaraço de se introduzir uma experiência sensível numa ordem de argumentos, de enunciados — um “enunciado de fato” não pode ser demonstrado a partir de uma experiência, só enunciados podem demonstrar enunciados. Se a experiência não pode garantir o valor de verdade do enunciado de fato, pois não pode demonstrá-lo, a refutação também não pode ser garantida e, portanto, ciência não se avança por falsificação). Vê-se que o falsificacionismo ainda se envolve em dificuldades na medida em que supõe uma experiência pura. O critério de demarcação assim definido traça uma fronteira natural entre enunciados científicos e enunciados observacionais e devolve a ciência ao terreno sombrio de outrora. Das muitas questões que Lakatos destaca essa é uma das duas que me parecem centrais. A forma primitiva do falsificacionismo está comprometida com uma espécie de naturalismo. Desse modo, ela ainda é “fortemente anti-teórica”.

Nesse panorama há outras questões que se aproximam e exigem atenção: aqui quero apenas apontar os problema envolvidos num certo modo de pensar a ciência. Popper responde a dificuldade de delimitar as fronteiras entre o teórico e observacional mediante outro artifício: estabelecendo que o que é teórico e o que é observacional se define já no interior de uma teoria (de uma teoria sobre o método), conforme uma decisão.

El que un enunciado sea un “hecho” o una “teoría” en el contexto de una contrastación es algo que depende de nuestra decisión metodológica.

Assim o problema de uma psicologia observacional se resolve. Outros problemas se erguem, mas vamos tão somente apreciar o horizonte que se abre com essa idéia. Esse novo espaço foi interditado ao naturalismo, verificacionismo, justificacionismo e a ismos semelhantes. A fronteira entre o teórico e o empírico não é natural, mas artificial, portanto, todos os enunciados são teóricos. Chamar de observacional um enunciado é somente uma maneira de dizer que em determinado contexto ele é empregado de maneira não-crítica, como conhecimento de fundo não problemático (afastamos assim o problema da demonstrabilidade dos enunciados de fato). Essa definição envolve não o reconhecimento de uma experiência pura, unívoca e universal, mas uma decisão metodológica. Não há portanto nenhum enunciado observacional no sentido antes invocado, nenhuma experiência que seja anterior a um organização teórica, por consequência, nenhum fato último cuja constatação assegure a uma teoria sua ascendência sobre outras. Ao contrário, os fatos são os resultados mediatos da adoção de alguma teoria, ainda que primitiva. Assim o papel dos experimentos, das experiências, reduziu-se significativamente. Embora sejam indispensáveis, as experiências não cumprem a função de demonstrar ou contrademonstrar teorias.

Registrar que uma psicologia observacional desempenha a função de delimitar as fronteiras naturais entre o teórico e o observacional nos permite destituir a experiência de seu posto decisivo ao mesmo tempo em que abre espaço para o entendimento de que não é a experiência pura, a maneira positivista ou justificacionista, que empresta legitimidade aos enunciados científicos. O desenvolvimento da ciência, na leitura de Popper e conforme Lakatos, é um processo complexo que não pode ser entendido sem que se examine as convenções e decisões metodológicas que instauram normas para organização do espaço teórico. Nesse sentindo, a experiência — a realidade, o mundo — não pode ser chamada a testemunhar em favor de qualquer teoria já que ela não determina o abandono de uma teoria, mas apenas condiciona algo que só pode acontecer por decisão.

Interessante notar como Lakatos sublinha a imunidade que as grandes teorias adquirem ao longo do tempo. O caráter geral dessas teorias importa em que elas raramente contradigam enunciados básicos, singulares, observacionais. Dessa maneira, é frequente que elas sejam salvas da falsificação imediata por artifícios, argumentos ad hoc, que tomam o evento singular, que em tese bastaria para falsificar a teoria, como um anomalia causada pela interferência de outros fatores na observação do fenômeno.

Repito, muitas questões continuam sem respostas, sobretudo porque eu fiz um recorte mais-do-que grosseiro a fim de destacar os pontos importantes. Contudo, espero ter despertado em vocês, caros amigos, a desconfiança para a pacífica mobilização de “fatos” e “experiências”, chamados a socorrer teses como se eles pudessem assim decidir definitivamente um litígio teórico.

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