O bem e o mal na política

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Quem se dedica à política, ou seja, ao poder e força como meios, faz um contrato com as potências diabólicas, e pela sua ação sabe-se não ser certo que o bem só possa vir do bem e o mal possa vir do mal, ocorrendo com frequência exatamente o contrário. Quem deixar de perceber isso é, na realidade, um ingênuo em política.

Max Weber

É recomendável assistir à entrevista para melhor entender o texto. Entrevista de Heloísa Helena no Jornal das Dez

Embora eu tenha simpatia por Weber, a frase acima conheci através de um livro de Norberto Bobbio. Lembrei dela por ocasião de uma entrevista da Heloísa Helena ao Jornal das Dez (da Globo News). Se existem candidatos e partidos que sugerem programas de ruptura com a economia do sistema político vigente, é porque há demandas que justificam tais propostas. No Brasil isto é mais do que evidente. Portanto, o progressivo ganho representativo destes partidos é um benefício para a manutenção da “homeostase” do cenário político, garantindo a composição de um quadro misto de interesses.

Heloisa Helena conhece minuciosamente a máquina pública, seu funcionamento, suas ferramentas e dispositivos, seus produtos — sem dúvida um domínio importante para uma candidata à presidência. Essa especialização técnica é um fator capital na concepção de engenhos institucionais para funcionamento do Estado, mas ela é — e é aqui que se situa minha crítica — a fração mecânica¹ da organização política. A articulação (não-mecânica) que projeta tais engenhos, que os promove, é de natureza mais primitiva do que as tecnologias político-institucionais implicadas na engrenagem da máquina pública; não é só primitiva, é secular.

Mas o que isto significa? Significa que as relações que governam o fluxo do fazer político não se inscrevem precisamente no domínio institucional, no aparelho do Estado, nas feições das leis, mas se espraiam em múltiplas ramificações que perpassam todos os segmentos do corpo social, alterando suas formas numa lógica e velocidade inapreensíveis. É Foucault que tenho em mente diante desta configuração particular do discurso da esquerda: sua visão organizada exclusivamente em termos de aparelho de Estado. As relações de poder estão profundamente arraigadas desde menores instâncias locais (não proponho aqui o trabalho de identificar as manifestações do poder nestas microdimensões, para isto vide A microfísica do poder, de Foucault) até o domínio de realização total, que é o Estado. É justamente a totalidade e a evidência do exercício do poder político que faculta a negligência quanto à sua atuação (do poder) em menor escala. Numa sociedade precariamente desenvolvida os elos entre os estágios maiores e menores estreitam-se, interiorizam-se ainda mais, comprometendo a independência do exercício do poder, moldando-o.

Só o povo pode exigir, com força coerciva, o legítímo uso do poder político. A mais primorosa Constituição, instalada numa avançada estrutural estatal, não garante a legitimidade no emprego do poder, a menos que se articule os seus múltiplos segmentos, institucionais ou não. Ao contrário do que possa parecer, não estou fundando uma ética da corrupção ou coisa do gênero, apenas observando uma regra prática que, queira ou não, orienta a atividade política num país subdesenvolvido.

Pode ainda não estar clara a relação entre as minhas observações e as idéias da candidata Heloísa Helena, portanto, passarei a apontá-la: somente um laço estreito e direta entre o Executivo e a esmagadora maioria do povo (como fonte do poder do Estado) permitiria uma ruptura na ordem do sistema político. Imaginar essa possibilidade como real é ingenuidade sem par. Portanto o que resta? Resta uma complexa, sinuosa e longa cadeia que vai do povo até o chefe do Estado, passando pelos vários patamares da organização política interna (prefeituras, governos estaduais), sem contar instituições estatais de natureza implicitamente política e suas manifestações em níveis capilares. A governabilidade não se sustenta diante da negligência de tão numerosos estágios. O poder se exerce através do monopólio e manipulação da comunicação pública em regiões particulares, da sujeção às más condições de trabalho as quais está submetido um empregado por conta da necessidade de sua família, das negociações desiguais que se estabelecem entre sindicato e patronato, em vista dos altos níveis de desemprego, etc. Enfim, ele têm no espaço exterior ao aparelho do Estado uma força descomunal e decisiva que só pode ser omitida a preço da estabilidade política e governabilidade.

Quanto a Weber? Weber define a norma para uma política segura, embora morosa e promíscua: o pacto com potências diabólicas. Cabe salientar que evidentemente há limites de segurança para seu o estabelecimento, contudo, definitivamente não é a claridade plena da luz do dia o terreno fértil para progresso político. A sabedoria para escolher os momentos certos para conceder e censurar, eis a pedra de toque para o sucesso neste espaço.

¹ A contraposição subliminar entre a fração mecânica e não-mecânica é semelhante a contraposição entre o positivo e o não-positivo, entre aquilo que pode ser manipulado por ser objetivo, rígido, fixo e o que não pode por ser fluído, volátil, instável, local, parcial.

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