Li há poucos dias a polêmica entre o ator Alexandre Nero e uma das suas seguidoras no Instagram. A garota escreveu o seguinte:
Quero ver quando você estiver com teus filhos em um restaurante e tiver 2 gays se beijando.. Alias, todas as pessoas que pregam a favor disso! Vc vai conseguir aceitar e explicar aos teus filhos o quão normal isso eh? De verdade? Sem hipocrisia!
O conceito de normal é o pano de fundo comum à maior parte das manifestações conservadoras (e também o conceito de natural; em certa medida as duas noções se recobrem). Ele é brandido como se o par normal-anormal fosse um ponto irredutível ao qual somos obrigados a reconhecer. “De verdade, você quer mesmo dizer que isto é normal? Não se pode atribuir normalidade a isto sem hipocrisia” — diria!
Diante disso, poderíamos julgar que um dos mais significativos serviços prestados por Foucault à vida política foi a explicitação do nascimento do normal. A vontade do saber (primeiro volume da coleção História da sexualidade) pode ser abordado sob muitos pontos de vista, dentre eles a perspectiva de uma genealogia da sedimentação das normas. (Já escrevi sob pontos de vistas afins em outro post).
Normal e natural são conceitos que tem, quando muito, três séculos. Isso significa que nunca tenham sido usado antes disso? Não, claro que não. Sempre existiram múltiplos nomes para designar os praticantes da sodomia (pederasta é um deles, conforme o próprio Foucault declara no volume dois da História da sexualidade), mas isso não o impede de afirmar que “o sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie”. Espécie cuja data natalícia remonta ao ano de 1870 e ao artigo de Westphal. O que Foucault quer nos fazer ver é o nascimento das categorias e, mais do que isso, dos discursos e saberes que lhes dão suporte (e que somente nesse contexto eles podem ser usados tal como são hoje em dia). Da medicina, psicologia, psiquiatria, das ciências cujas preocupações respaldaram a vontade de saber que interroga nossas práticas, lhes discriminam, nomeiam, classificam, separam, regulam, administram, etc. É somente no interior desse novo sistema de preocupações que a única ferramenta com que sempre lidamos com a diferença, isto é, a moral, é substituída por um leque amplo e diversificado dos instrumentos agora sob o patrocínio da ciência. E é nesse contexto que o que era “resto”, meramente entrevisto, “tem agora que tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são”. Os binômios normal-anormal, natural-antinatural supõem assim o nascimento dos discursos nos quais se amparam e em função dos quais se estabelecem como normas. Não são fatos, evidências, a que poderíamos atestar em qualquer época — antes, são documentos que refletem o que mais próprio ao nosso tempo. A pretensão de quem os usa como armas ideológicas é se utilizar do poder embutido nas ciências que forjaram tais conceitos, como se não tivéssemos alternativa senão nos prostrar às supostas verdades enunciadas (qualquer opção contrária é mera hipocrisia!).
O problema está na confusão frequente que fazemos entre o modo como nós olhamos o mundo e o mundo como ele é. Não que eu seja um defensor da ideia de que existe um mundo independente do nosso olhar — eu acho que questões como essa são ociosas e sem sentido —, ao contrário, é que a filosofia e a ciência carregam e carregaram preocupações longínquas em estabelecer verdades universais e absolutas e tais pretensões nos incapacitam a perceber o mundo histórico, cambiante. Enfeitiçados ainda por tais pretensões, esquecemos que as ferramentas com que manipulamos o mundo (o conceito de normal ainda é uma delas, como outrora foi para alguns a frenologia) são não reflexos de como é este mundo etéreo e definitivo, mas resultado das nossas próprias elaborações, não só passíveis de revisão e completa mudança (não foi o que aconteceu com o antropocentrismo?), mas intrinsecamente subordinados aos nossos interesses (e, para ficar em Foucault, aos poderes que operam a maquinaria das nossas relações sociais). A expressão que melhor registra esta dificuldade colhi em A força de regra, de Jacques Bouverresse: a história das verdades necessárias. Difícil perceber e aceitar que os elementos mais essenciais na organização da nossa vida possam ser, daqui a dois ou três séculos, completos absurdos patentemente recusados. Mas é este exercício de imaginação que nos capacita a entender que reconhecer o caráter contingente dos nossos conceitos não implica mitigar a força que nos compele a aceitá-los e aplicá-los, mas nos ajuda a curar da cegueira manifesta na incapacidade de conceber o mundo para além dos nossos recursos. Cegueira bem representada na incapacidade de enxergar os acontecimentos, para além das lentes do normal e anormal. Como se não tivéssemos, em outras eras, olhado o sol eclipsado pela sombra da lua e visto a manifestação de um Deus e como se o nosso atual modo de lidar com o fenômeno fosse definitivo, irrevogável e verdadeiro — enquanto os outros olhares não fossem senão proto-olhares, primitivos e atrasados.
Foucault, mas não só ele, diante de uma certeza que nos parece inescapável, nos ensina a pergunta não sem suspeita a sua origem, as instituições, pessoas e saberes responsáveis pelo seu estabelecimento. Pois a transigência incondicional às formas e categorias que nos foram ensinadas produz como consequência inevitável o endosso aos valores e efeitos de controle implicitamente embutidos nas verdades que eles carregam. Pois a ciência, vejam só, a amada e imparcial ciência, é o carro chefe, o leitmotiv do biopoder, das formas de controle que criam amarras invisíveis e que imobilizam a capacidade de mudança.
Por coincidência, ontem, quando eu já havia registrado a pretensão de escrever esse texto, caiu no meu colo o fantástico texto da Stoya que está algo relacionado aos meus comentários. Vou repetir aqui o que disse no Facebook: É impressionante a lucidez, dignidade e nobreza com que ela trata o tema das relações, a maturidade e, sobretudo, o modo como ela reagiu às manifestações de preconceito, à incapacidade alheia para aceitar uma maneira diferente de encarar a vida. Há muitos textos que abordam essa questão, mas o comentário da Stoya é especialmente lúcido e nobre. Isto é, ela não é alguém que está, como nós, meramente repetindo fórmulas que lhes foram ensinadas, sua opinião externa uma reflexão sólida sobre relações, opinião de alguém que foi capaz de criar e produzir, onde nós fomos capazes apenas de repetir e imitar.
PS. Ainda que a ciência seja mobilizada como arma e tenha sido de fato a responsável pelas clivagens instrumentalizadas pelos conservadores, isso não significa que ela endosse práticas desse tipo. A dicotomia normal-anormal, tal como estes a empregam, é um anacronismo atroz, embora não seja impossível pensar que mesmo hoje alguns cientistas ainda a utilizem no sentido original. É apenas um uso político conveniente de uma ferramenta científica (e há outros tipos de uso?).