Determinismo em Strawson e Dostoiévski

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Freedom and resentment. A releitura obscureceu mais do que o contrário. Sinal de que me iludi na primeira leitura. Uma resposta ao determinismo é elaborada ali de maneira bastante peculiar. Em verdade Strawson diz nem mesmo saber do que se trata a tese determinista [I belong to, I must say it is the first of all, the party of those who do not know what the thesis of determinism is]. Admitindo as questões relativas a moral e a punição como sólidos indicadores das consequências da verdade ou falsidade dessa tese, ele sublinha dois tipos de conduta que esclarecem sua posição: as atitudes reativas e as atitudes objetivas. As atitudes reativas respondem a uma ação de um agente considerado plenamente capaz e livre para exercer sua vontade, mas é pela segunda classe que essa distinção mostra seu alcance, as atitudes objetivas são aquelas dirigidas aos agentes considerados incapazes e elas estabelecem um padrão objetivo de comportamento que suspende o comportamento reativo — esse novo padrão em geral adotamos em relação a crianças, loucos, enfim, pessoas consideradas incapazes, transitória ou definitivamente. Portanto, o caso é que essa objetividade que pareceria resultar da tese do determinismo, Strawson destaca, é exercida apenas em casos especiais:

I remarked that the participant attitude, and the personal reactive attitudes in general, tend to give place, and it is judged by the civilized should give place, to objective attitudes, just in so far as the agent is seen as excluded from ordinary adult human relationships by deep-rooted.

Essa é, conforme minha leitura algo claudicante, a meada pela qual Strawson nos conduz. Resumindo: as relações entre agentes normais de uma comunidade moral são essencialmente subjetivas — sendo objetivas apenas quando tratam-se de relações com agentes “excluded from ordinary adult human relationships by deep-rooted”.

Parte da minha confusão se deve ao fato de que não concordo com as concessões que ele faz à tese determinista.

For it would not follow from that thesis that nobody decides to do anything; that nobody ever does anything intentionally; that it is false that people sometimes know perfectly well what they are doing. I tried to define freedom negatively. You want to give it a more positive look. But it comes to the same thing. Nobody denies freedom in this sense, or these senses, and nobody claims that the existence of freedom in these senses shows determinism to be false.

A liberdade contraposta ao determinismo consiste na irredutibilidade das ações a aspectos externos. A vontade é o núcleo da liberdade, portanto, embora elementos exteriores possam condicionar as ações — nunca podem determiná-las. A concessão de Strawson parece não contemplar seja esse conceito de liberdade, seja essa representação do determinismo que lhe vem contraposta. Combater essa espécie de determinismo significa combater a idéia de que as ações humanas resultam de uma configuração exterior, natural, para a qual a vontade não tem poder decisivo. Significa libertar a vontade da natureza.

Diante disso, lembrei de uma passagem de Dostoiévski, em Memórias do Subsolo. Neste fragmento o personagem encena uma revolta extrema contra as consequências da redutibilidade determinista. O resultado é uma daquelas representações delirantes e geniais do compromisso com a liberdade e a autonomia — que parece ser ferido no peito por tais consequências. Dostoiévski parece partilhar com Strawson a idéia de que o que é humano deve abrigar um aspecto indefinível e subjetivo que é a própria matéria essencial de nossa constituição. O russo deixa claro para quem quiser que o esforço para reduzir o limite do imprevisível vicia o próprio querer e lança o homem num espaço insípido e indesejável, numa condição abjeta — a tal ponto de fazê-lo preferir outra tão indesejável quanto.

Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isto fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar fora do calendário. Mais ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática, ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição. E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o caos, inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é seu! Lançaria a maldição pelo mundo, e visto que somente o homem pode amaldiçõar (é privilégio seu, a principal das qualidade que o distinguem os outros animais), provavelmente com a mera maldição alcançaria o que lhe cabe: continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano. Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição — de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão — vou responder-vos que o homem se tornará louco, para não ter razão e insistir no que é seu! Creio nisto, respondo por isto, pois, segundo parece, toda a obra humana consiste apenas em que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não um tecla!

É claro que em Dostoiévski há muitas outras coisas em jogo, mas a “tecla de piano” é a imagem de um homem convertido numa função específica, previsível, calculável. Contra isso o personagem recorre a tudo — e o artifício último é a prova inconteste do gênio de Dostoiévski: a loucura! Voluntária, ela atesta a insubordinação característica do homem que não se conforma à condição de mera engrenagem. Quisera essa fosse realmente a disposição natural humana!

Noutra oportunidade eu comento as questões envolvidas nesse fragmento, da parte VIII do primeiro capítulo de Memórias do subsolo. Esse livro é cheio de passagens deliciosas!

PS. Se eu escrevo e não reviso, eu flagro, numa leitura posterior, erros abomináveis (e crassos). Eu devo ter alguma espécie de doença!

PS 2. Para que vocês façam idéia da minha desatenção doentia, um dia depois de publicar o texto eu percebo que faltava um trecho significativo da frase final da citação de Dostoiévski. Faltava o “demonstre a si mesmo” da última frase.

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