Esquerda: Espirais de poder e prazer

Esse é o primeiro de uma série de posts reunindo críticas à esquerda. E o primeiro tema da série não podia ser outro senão o poder — embora em realidade o poder seja o fio que costura e atravessa todos os temas.

Uma das contribuições mais fascinantes de Foucault à filosofia é o seu modo de conceber o poder. Tenho em vista especialmente a Vontade de saber, primeiro volume da sua História da Sexualidade, ao qual eu não me canso de voltar. O mais importante aspecto dessa concepção é a crítica dirigida aquela que talvez seja a única concepção de poder existente, a que todo mundo conhece e usa, o modelo binário. O modelo binário apresenta duas posições numa relação de poder: a do opressor e a do oprimido. É um paradigma altamente explicativo, como a própria dicotonomia entre bem e mal. Com ele você pode organizar o mundo muito claramente, se posicionar em relação a ele, agir e reagir. Segundo esse paradigma, toda relação de poder se apresenta como um certo disnível de forças que constitui o quadro no qual o oprimido se encontra submetido ao arbítrio do opressor.

Foucault não nega esse modo de representar o poder, sua posição é muito mais cuidadosa e sofisticada que um simples desejo de falsificar. O que ele nos diz é que a relação de poder é mais complexa que isso. O poder se constitui em todos os lugares — e mais do que isso, ele se mantém não apenas pela força e arbítrio do opressor. É aí que as coisas começam a ficar incômodas.

Foucault diz: e se pensarmos o poder como uma espiral? E se não houver apenas dois polos de força lutando entre si, como num cabo de guerra, mas uma [mesma] força que vai e vem conjuntamente e que se reforça nesse movimento contínuo? Só quando algo mais concreto se apresenta é possível entender o que significa essa imagem e o que ela pode acrescentar de novo. Foucault diz, o oprimido também tem prazer em resistir. E ainda: a resistência gera poder. Assim, o rebelde também tem interesse na manutenção da ordem contra a qual luta. Uma vez desfeita a ordem opressiva (o modelo da sexualidade repressiva é o exemplo privilegiado), o rebelde perde também seu poder (e seu status) nessa configuração de forças — o poder de resistir e tudo que isso envolve, o que não é pouca coisa.

Aí então se vê que a força vetorial do modelo binário, que lança o arbítrio e o poder do opressor contra o oprimido, não representa bem tudo que está em jogo nessa dinâmica, em especial a capilaridade da dinâmica do poder. Não é como se o oprimido fosse um sujeito alheio e indiferente ao poder e prazer instaurados pela dinâmica de resistência. Se você perde de vista esse fator, se você deixar de notá-lo, não saberá quais são as regras que governam a experiência do poder em suas múltiplas expressões. Por consequência, você não poderá ser um agente eficiente na luta pelo poder, porque está vendo menos fatores determinantes do que [existem]. Desculpem pelo vocabulário determinista e realista, mas eficiência causal implica controle e influência sobre fatores determinantes (mesmo que estes sejam intencionais). Se você não quer ter controle sobre os fatores que determinam o poder ou se você acha que há formas não-causais de controle e eficiência, bem, boa sorte, eu simpatizo com a sua posição mas é sempre difícil argumentar nesse sentido numa sociedade cientificista.

Assim, é claro que um dos mais centrais problemas da esquerda é não ser capaz de enxergar a corrupção da sua própria alma, isto é, a fascinação que o poder/prazer de resistir gera naqueles que o exercem. Por consequência, ela não pode ver tampouco como isso dá lugar aos tribunais e à intimidação que parecem a regra da ação política da esquerda, fazendo com que uma agenda tão nobre* quanto a sua seja preterida em favor de coisas tão hostis, toscas, violentas e rasteiras quanto as ideias de gente como Bolsonaro ou Trump. O afastamento das pessoas que não se sentem unidas por um laço de identidade é uma consequência natural da cegueira para o uso e o abuso do poder dentro da esquerda. (Unidade entre os iguais é certamente importante, mas é ainda muito, muito pouco.) Tenho a impressão — e talvez seja uma grande ingenuidade da minha parte — que pra que as pessoas se sintam inclinadas a escolher tudo que representa Trump e Bolsonaro é preciso que algo não esteja funcionando bem no maquinário das nossas ideias e práticas.

*  Não deixo de sentir um incômodo ao apresentar assim, tão romanticamente, a agenda da esquerda. É porque eu tenho um certo otimismo antropológico (anti-hobbeseano) de que as pessoas sempre preferirão a fraternidade (o amor) ao ódio (e ao medo), desde que a gente construa as condições adequadas para isso. Pois é muito mais fácil cultivar o medo que o amor, e muito mais fácil encontrar inimigos que amigos, mas o amor ainda assim é uma força poderosa quando bem utilizada. Mas é isso, desculpa a pieguice.

Misoginia e pederastia

Segundo Foucault, pederastia e homossexualidade são coisas distintas. A pederastia é uma prática cujo sentido depende de um contexto muito particular, de uma sociedade na qual a mulher é cidadão de segunda classe. As queixas contra o suposto apoio de Aristóteles à escravidão vem da mesma situação, para Aristóteles certas pessoas eram cidadãs, outras não. Sendo assim, a pederastia consistia no ensino ou na introdução ao amor, ensino que tinha lugar entre dois cidadãos do mesmo nível social, por assim dizer. Portanto, um homem mais velho deveria ensinar um homem mais jovem. Exatamente porque a mulher não era vista como uma igual, a importante tarefa de introduzir os homens no amor cabia aos homens mais velhos e experientes.

Essa ideia cria uma nítida divisão entre os gêneros: os homens pertencem a um grupo no qual eles se vem como iguais e superiores às mulheres, e o grupo das mulheres, rebaixadas relativamente ao grupo dos homens. É natural que, dado esse quadro de valor, os homens não queiram imiscuir-se com nada que diga respeito a um grupo socialmente inferior (escravos ou mulheres). Essa divisão própria à pederastia, curiosamente, parece refletir um modo de ver as coisas muito próximo a pessoas que não poderíamos imaginar mais distantes: certos tipos de heterossexuais.

Certos homens são misóginos declarados, a despeito de uma heterossexualidade quase militante, isto é, apesar de não só não admitirem outras orientações sexuais, mas de se sentirem ameaçados por elas. Eles dizem gostar de mulheres, não aceitam quem não goste, mas gostam apenas o necessário para certos propósitos. Seus valores e suas referências são não apenas inteira e exclusivamente masculinos, mas não se misturam a nenhum elemento que possa integrar (ou mesmo coincidir com) o plural quadro referencial do feminino. Isso provoca importantes consequências, vamos ver se um caso particular ajuda a ilustrar o que eu quero dizer.

Um dia nós estávamos num bar onde acontece uma festa brasileira, quando entraram alguns homens de perfil bem típico. Para descrevê-los de maneira intencionalmente imprecisa embora de modo suficientemente ilustrativo, vamos pensar no tipo pitboy. Numerosos e barulhentos, logo eles tomaram o centro do pequeno espaço em frente ao palco. Eu reparei então em dois deles e vou desginá-los simplesmente como X e Y. Y conhecia algumas mulheres que já estavam ali, ele falava e dançava com elas com alguma espontaneidade. X aparentemente também as conhecia, mas parecia estar à vontade somente com o seu amigo ou pelo menos valorar apenas a sua companhia. Quando me dei conta disso, eu discretamente chamei atenção de minha mulher, pra me assegurar que não era loucura da minha cabeça. A linguagem corporal de X era curiosíssima: apesar da torrente de estímulos do lugar (música, pessoas), ele insistentemente voltava seus olhos pra seu amigo. Acontecia algo, ele comentava e ria com seu amigo; quando este estava falando com alguém, ele o contemplava silenciosamente; chegava a ser embaraçoso constatar quantas vezes, naquele formigueiro de gente, podíamos encontrá-lo olhando, mesmo que inconscientemente, para seu amigo. Bem, espero que vocês não me levem a mal, não estou dizendo que ele era homossexual ou coisa do gênero, mas me parece claro (e, nesse caso, sintomático) que alguns homens só se sentem a vontade no entorno das referências e valores do universo “masculino”, a ponto de estarem completamente deslocados em outros contextos e conversas. Quando se aprecia apenas os elementos que orbitam um universo castiçamente masculino, universo que é preciso preservar contra a deturpação que ameaça embaralhar as coisas, parece natural ver a mulher como veem certos homens (como, em certa medida, viam os pederastas), como um meio em relação a um fim, como um objeto destituído de subjetividade e de valor. Longe de mim prescrever o que quer que seja, cada um deve fazer com sua heterossexualidade o que lhe parecer melhor, no entanto, homens que não se sentem à vontade ao redor do rico e múltiplo universo feminino, que sentem que podem perder o respeito de seus pares (homens) se se deixarem afetar por elementos deste universo, tendem a caminhar em direção à misoginia e a defendê-la como quem defende o time do coração.

Homens não raras vezes sem recursos emocionais, reprimidos pela escassez das ferramentas provistas pelo universo masculino, que lhes faculta pouco mais que a raiva para lidar com o complexo universo das paixões (do pathos, do que nos afeta) —  afinal, homens não choram — veriam sua experiência transformada se, ao invés de seguir o exemplo dos pederastas enxergando as mulheres como um grupo inferior, se permitissem definir seus próprios valores mediante o trânsito saudável entre os dois universos. Assim não apenas se sentiriam mais à vontade perto das mulheres (não raras vezes os homens não sabem como agir perto delas, salvo os canalhas, claro), mas poderiam aprender e enriquecer suas visões de mundo (frequentemente tortuosa e atormentada), por causa da mulher.

PS. Meu post sobre o nascimento do “normal” tem alguma relação com esse tema. São diferentes perspectivas sobre a nossa relações com as normas.

O nascimento do “normal”

Li há poucos dias a polêmica entre o ator Alexandre Nero e uma das suas seguidoras no Instagram. A garota escreveu o seguinte:

Quero ver quando você estiver com teus filhos em um restaurante e tiver 2 gays se beijando.. Alias, todas as pessoas que pregam a favor disso! Vc vai conseguir aceitar e explicar aos teus filhos o quão normal isso eh? De verdade? Sem hipocrisia!

O conceito de normal é o pano de fundo comum à maior parte das manifestações conservadoras (e também o conceito de natural; em certa medida as duas noções se recobrem). Ele é brandido como se o par normal-anormal fosse um ponto irredutível ao qual somos obrigados a reconhecer. “De verdade, você quer mesmo dizer que isto é normal? Não se pode atribuir normalidade a isto sem hipocrisia” — diria!

Diante disso, poderíamos julgar que um dos mais significativos serviços prestados por Foucault à vida política foi a explicitação do nascimento do normal. A vontade do saber (primeiro volume da coleção História da sexualidade) pode ser abordado sob muitos pontos de vista, dentre eles a perspectiva de uma genealogia da sedimentação das normas. (Já escrevi sob pontos de vistas afins em outro post).

Normal e natural são conceitos que tem, quando muito, três séculos. Isso significa que nunca tenham sido usado antes disso? Não, claro que não. Sempre existiram múltiplos nomes para designar os praticantes da sodomia (pederasta é um deles, conforme o próprio Foucault declara no volume dois da História da sexualidade), mas isso não o impede de afirmar que “o sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie”. Espécie cuja data natalícia remonta ao ano de 1870 e ao artigo de Westphal. O que Foucault quer nos fazer ver é o nascimento das categorias e, mais do que isso, dos discursos e saberes que lhes dão suporte (e que somente nesse contexto eles podem ser usados tal como são hoje em dia). Da medicina, psicologia, psiquiatria, das ciências cujas preocupações respaldaram a vontade de saber que interroga nossas práticas, lhes discriminam, nomeiam, classificam, separam, regulam, administram, etc. É somente no interior desse novo sistema de preocupações que a única ferramenta com que sempre lidamos com a diferença, isto é, a moral, é substituída por um leque amplo e diversificado dos instrumentos agora sob o patrocínio da ciência. E é nesse contexto que o que era “resto”, meramente entrevisto, “tem agora que tomar a palavra e fazer a difícil confissão daquilo que são”. Os binômios normal-anormal, natural-antinatural supõem assim o nascimento dos discursos nos quais se amparam e em função dos quais se estabelecem como normas. Não são fatos, evidências, a que poderíamos atestar em qualquer época — antes, são documentos que refletem o que mais próprio ao nosso tempo. A pretensão de quem os usa como armas ideológicas é se utilizar do poder embutido nas ciências que forjaram tais conceitos, como se não tivéssemos alternativa senão nos prostrar às supostas verdades enunciadas (qualquer opção contrária é mera hipocrisia!).

O problema está na confusão frequente que fazemos entre o modo como nós olhamos o mundo e o mundo como ele é. Não que eu seja um defensor da ideia de que existe um mundo independente do nosso olhar — eu acho que questões como essa são ociosas e sem sentido —, ao contrário, é que a filosofia e a ciência carregam e carregaram preocupações longínquas em estabelecer verdades universais e absolutas e tais pretensões nos incapacitam a perceber o mundo histórico, cambiante. Enfeitiçados ainda por tais pretensões, esquecemos que as ferramentas com que manipulamos o mundo (o conceito de normal ainda é uma delas, como outrora foi para alguns a frenologia) são não reflexos de como é este mundo etéreo e definitivo, mas resultado das nossas próprias elaborações, não só passíveis de revisão e completa mudança (não foi o que aconteceu com o antropocentrismo?), mas intrinsecamente subordinados aos nossos interesses (e, para ficar em Foucault, aos poderes que operam a maquinaria das nossas relações sociais). A expressão que melhor registra esta dificuldade colhi em A força de regra, de Jacques Bouverresse: a história das verdades necessárias. Difícil perceber e aceitar que os elementos mais essenciais na organização da nossa vida possam ser, daqui a dois ou três séculos, completos absurdos patentemente recusados. Mas é este exercício de imaginação que nos capacita a entender que reconhecer o caráter contingente dos nossos conceitos não implica mitigar a força que nos compele a aceitá-los e aplicá-los, mas nos ajuda a curar da cegueira manifesta na incapacidade de conceber o mundo para além dos nossos recursos. Cegueira bem representada na incapacidade de enxergar os acontecimentos, para além das lentes do normal e anormal. Como se não tivéssemos, em outras eras, olhado o sol eclipsado pela sombra da lua e visto a manifestação de um Deus e como se o nosso atual modo de lidar com o fenômeno fosse definitivo, irrevogável e verdadeiro — enquanto os outros olhares não fossem senão proto-olhares, primitivos e atrasados.

Foucault, mas não só ele, diante de uma certeza que nos parece inescapável, nos ensina a pergunta não sem suspeita a sua origem, as instituições, pessoas e saberes responsáveis pelo seu estabelecimento. Pois a transigência incondicional às formas e categorias que nos foram ensinadas produz como consequência inevitável o endosso aos valores e efeitos de controle implicitamente embutidos nas verdades que eles carregam. Pois a ciência, vejam só, a amada e imparcial ciência, é o carro chefe, o leitmotiv do biopoder, das formas de controle que criam amarras invisíveis e que imobilizam a capacidade de mudança.

Belíssima Stoya!

Por coincidência, ontem, quando eu já havia registrado a pretensão de escrever esse texto, caiu no meu colo o fantástico texto da Stoya que está algo relacionado aos meus comentários. Vou repetir aqui o que disse no Facebook: É impressionante a lucidez, dignidade e nobreza com que ela trata o tema das relações, a maturidade e, sobretudo, o modo como ela reagiu às manifestações de preconceito, à incapacidade alheia para aceitar uma maneira diferente de encarar a vida. Há muitos textos que abordam essa questão, mas o comentário da Stoya é especialmente lúcido e nobre. Isto é, ela não é alguém que está, como nós, meramente repetindo fórmulas que lhes foram ensinadas, sua opinião externa uma reflexão sólida sobre relações, opinião de alguém que foi capaz de criar e produzir, onde nós fomos capazes apenas de repetir e imitar.

PS. Ainda que a ciência seja mobilizada como arma e tenha sido de fato a responsável pelas clivagens instrumentalizadas pelos conservadores, isso não significa que ela endosse práticas desse tipo.  A dicotomia normal-anormal, tal como estes a empregam, é um anacronismo atroz, embora não seja impossível pensar que mesmo hoje alguns cientistas ainda a utilizem no sentido original. É apenas um uso político conveniente de uma ferramenta científica (e há outros tipos de uso?).

Foucault: o poder e a psicanálise

Talvez vocês não saibam, mas eu escrevi minha monografia sobre a interpretação e o uso que Marcuse fez de certas ideias freudianas. Marcuse se apossa da noção de repressão e dá voz e consequência à ideia de que uma espécie de repressão incide sobre sobre as energias libidinais, fazendo-as funcionar em favor dos dispositivos culturais. A contribuição de Marcuse consiste em destacar uma ruptura entre o agenciamento das energias sexuais e as finalidades a que elas foram afiançadas, dando lugar assim à noção de mais-repressão, que se caracteriza por uma quantidade de repressão adicional necessária para encobertar o giro no vazio da sexualidade, isto é, para mascarar o fato de estarmos submetidos à repressão, ainda que ela não mais sirva aos dispositivos culturais, mas antes à manutenção da máquina cega de produção capitalista.

Já no desenvolvimento da monografia encontrei um artigo de Foucault, publicado na coleção Ditos e escritos e, salvo engano, intitulado de A psicologia de 1850 a 1950, contendo uma afirmação que insinuava uma crítica interessante e corrosiva à teoria freudiana (e, claro, às leituras que se serviam dela). Lá, ele dizia que a psicologia freudiana tinha um caráter normalizador. Só agora, lendo o primeiro volume da “História da sexualidade”, A vontade de saber, encontrei a ideia plenamente desenvolvida.

Quero apresentar três aspectos — dos muitos pontos mobilizados por Foucault — que me parecem especialmente interessantes e ilustram breve e suficientemente o alcance da crítica dirigida à Freud (mas não somente a ele), bem como a maneira como o poder alinhava os mais distintos momentos da sua reflexão.

1. Atribui-se ao sexo uma (suposta) causalidade geral e difusa. As consequências implicadas nesse postulado bastam para justificar o emprego dos mecanismos e dispositivos subordinados à análise minuciosa que se encarrega de produzir a verdade do sexo. Da infância até a velhice, ao longo de toda a vida humana é imputado ao sexo um poder inesgotável e múltiplo capaz de produzir doenças, induzir comportamentos, definir costumes, etc. Somente à luz desse postulado algo controverso se justifica toda a engenhosa arquitetura da teoria frediana, a necessidade de investigar as práticas sexuais em busca de algum controle (poder) sobre essas variáveis.

2. A noção de poder que se representa também nas ideias de Freud enfraquece substancialmente a explicação da sua capacidade organizadora e reguladora, na medida que reconhece apenas a face negativa do poder: a interdição, a repressão e todas as restrições que lhe são derivadas. Para Foucault, é indispensável pensar a feição produtiva do poder, aquilo que ele alimenta, incita, estimula. O sexo e a sexualidade, reconhecidos como fatores determinantes na configuração do comportamento dos indíviduos e da espécie, passam à condição de elementos a serem regulados, submetidos às técnicas designadas por Foucault como expressões do “biopoder” (da biopolítica), técnicas não necessariamente restritivas mas de naturezas variadas.

3. O sexo e a sexualidade fazem parte de um domínio independente cuja investigação cabe a uma ciência desinteressada e livre. Extraído a partir da observação do domínio da sexualidade, o conhecimento científico é então coordenado pelas instâncias de poder que fazem pesar sobre ele suas exigências e que se valem dos seus achados (esse tópico é menos freudiano e mais endereçado a certas leituras que se fazem a partir da psicanálise, como a de Marcuse). O poder que pesa sobre o sexo é independente do saber que ele é capaz de alimentar.

As dependências que Foucault salienta geram, ao meu ver, danos permanentes não só à teoria freudiana, mas à todo a maquinaria discursiva que postula os mesmos pontos. A multiplicidade do poder que ele apresenta revela não só seu caráter positivo e produtivo, mas também os objetos que ele fabrica: como o próprio sexo, que ao invés de ser a matéria e base da sexualidade, é, aos olhos de Foucault, o seu produto elementar.

Reflexões sobre o kit anti-homofobia

O livro A vontade de saber, de Foucault, oferece alguns elementos para pensar o emprego da via pedagógica direta como recurso no combate à homofobia.

Antes, infelizmente, é preciso fazer aquele détour costumeiro — e, frequentemente, trampolim para a homofobia propriamente dita —  que consiste em dizer que meu propósito é tão somente refletir sobre as medidas aventadas. Apoio incondicionalmente o propósito que as anima, mas não estou certo de que esse seja o melhor caminho para enfrentar às dificuldades postas. Bem, essa nota pretende evitar o açodamento daquele tipo, comum a todas as classes, que evita o diálogo lançando na vala comum todo posicionamento contrário.

Para Foucault, os momentos históricos frequentemente considerados catalisadores da repressividade sexual — como aquele no qual surge a familia burguesa — coincidem, em verdade, com a violenta multiplicação de discursos sobre o sexo, começa ali a ser definida uma “norma de desenvolvimento sexual e cuidadosamente caracterizados todos os desvios possíveis”. E ainda mais: “organizaram-se controles pegagógicos e tratamentos médicos”. Aqui já estão postos fatores mais que suficientes para propor uma avaliação crítica, mas convém documentar ainda mais a avaliação, a fim de fazer entender a complexidade da organização que toma a pedagogia como um dos seus pontos axiais.

Fundamental é realçar o modo como a instituição da norma engendra o espaço em meio ao qual se reconhecem as práticas conforme (práticas heterossexuais, forma de sexualidade regular) e não conforme (práticas homossexuais, e outras práticas que refletem formas de sexualidade periféricas) a norma. Foucault afirma que os códigos (direito canônico, pastoral cristã e lei civil) recaiam e fixavam-se nas relações matrimoniais. As recomendações e constrições que impunham forçava um receituário rígido às práticas sexuais dos cônjuges. Ele reconhece também que “as regularidades devidas aos costumes e as pressões da opinião” exercem um papel, mas certamente não tão rígido e investido dos poderes e instrumentos coercivos que os códigos mencionados acima. Assim, o que estava fora desse horizonte enquadrado pela prática sexual no matrimônio, decerto poderia ser condenado, mas não com o mesmo vigor, pois não estava sob a mesma vigilância.

O ‘resto’ permanecia muito mais confuso: atentemos para a incerteza do status da ‘sodomia’ ou a indiferença diante da sexualidade das crianças.

É o próprio Foucault quem nos chama a atenção para a condição do que, depois, ele designará como sexualidades periféricas. A lei ditava a norma e mesmo aquilo que parecia “contra a natureza”, ele diz, só era digno de atenção na medida que consistia também numa contrariedade à lei. “Os hermafroditas foram considerados criminosos”, pois sua condição embaraçava a lei que distinguia os sexos.

Mas a história caminha no sentido de modificar esse cenário. A monogamia heterossexual ainda é a regra, mas os rigores que se ligam às práticas sexuais tornam-se mais silenciosos — embora nem por isso menos vigorosos e poderosos. A atenção antes dispensada ao “casal legítimo” e sua “sexualidade regular” passa a dirigir-se gradativamente à sexualidade das crianças, dos loucos e criminosos. “Todas estas figuras, outrora apenas entrevistas, tem agora de avançar para tomar a palavra e fazer a difícil confisssão daquilo que são”.

Crianças demasiado espertas, meninas precoces, colegiais ambíguos, serviçais e educadores duvidosos, maridos cruéis ou maníacos, colecionadores solitários, transeuntes com estranhos impulsos: eles povoam os conselhos de disciplina, as casas de correção, as colônias penitenciárias, os tribunais e os asilos.

Importa notar o movimento que tira o “resto” da sua condição indistinta, para lançá-lo no centro de uma força taxonômica implacável. Ou seja, a distinção do que era antes uma massa disforme supõe o surgimento dos saberes que impulsionam a classificação e aguçam o olhar discriminador (daí o título do primeiro livro da História da sexualidade, A vontade de saber). Não sem razão, Foucault observa que “a justiça cede em proveito da medicina” e que surgem aí mecanismos suplementares encarnados em “instâncias de controle e em mecanismos de vigilância instalados pela pedagogia ou pela terapêutica”. O foco das preocupações de Foucault invariavelmente recai sobre a terapêutica, sobre o modo como a instituição dos saberes psiquiátricos, em particular, abre espaço para uma ampla gama de instrumentos que espraiam sobre as práticas (e as práticas sexuais) o olhar inquiridor e as microvilosidades de uma rede de poder. Mas aqui nos interessa em particular a pedagogia — como interessa a Wittgenstein, não a pedagogia, mas a importância lógica que o treinamento (educação) adquire na constituição daquilo que julgamos “natural”.

Os saberes classificam tipos, impõem uma norma de desenvolvimento e um padrão de comportamento onde antes havia apenas figuras e práticas indistintas. E a pedagogia está no centro dessas mudanças. Mas avancemos na leitura de Foucault antes de apresentar avaliações sobre o caso. Ele nos diz: “Esta nova caça às sexualidades periféricas provoca a incorporação das perversões e novas específicação dos indivíduos”. Segundo ele, data em 1870 o ano de nascimento da categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade, a partir do “famoso artigo de Westphal”. Talvez a mais emblemática formulação das mudanças operadas pela instituição da norma esteja representada aqui: “O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie”.

O gesto de aparência banal de transformar uma prática recorrente na expressão de um tipo reflete o nascimento de uma categoria, de toda uma estrutura na qual ela se enquadra, onde ela se identifica.

Diante desse quadro, parece difícil imaginar que a pedagogia possa ser o veículo de transformação de um cenário que ela ajuda a manter. Não se trata nem mesmo de uma questão pontual, isto é, da ineficiência de um regime educacional preocupado em combater práticas homofóbicas, trata-se, de maneira mais ampla, da inaptidão de todo recurso pedagógico para servir ao propósito de abolir a ordem que ele mesmo exige e que o constitui. A homossexualidade e as outras formas distinguidas de sexualidades periféricas nascem da especificação de indivíduos que acompanha o soerguimento da ordem que encontra na pedagogia e nos expedientes médicos um do mais destacados meios de controle. A multiplicação do discurso em torno de diferenças que são tributárias dessa ordem não logrará reverter ou desfazê-la. A especificação é parte do saber e meio pelo qual ele se exerce enquanto poder. A educação sexual, de qualquer tipo, não reprime, ela apenas dispõe as práticas no lugar em que elas possam ser melhor fiscalizadas, vigiadas.

Sem dúvida, é preciso reconhecer como legítimo o propósito de buscar defesas discursivas contra o assalto manifesto na erupção de discursos homofóbicos, intolerantes, representados especialmente na voz de sacerdotes e seguidores das igrejas pentecostais e variantes. Discursos que pretendem combater dados assustadores sobre a homofobia. Mas é preciso considerar se a pedagogia é o mais apropriado instrumento nessa luta, ou pelo menos, uma ação direta como a que está proposta no kit anti-homofobia. Se a ideia que move a proposta do kit é a de evitar as práticas violentas que se dirigem aos homossexuais, ela não pode realizar-se reforçando as ferramentas que ajudaram a perpetuar as categorias contra as quais se dirigem. É preciso lembrar que a discriminação começa com o gesto de aparência banal que recorta a identidade do que antes era indistinto — Foucault enfatiza esse aspecto. Não que antes as diferenças não fossem notadas e que não inspirasse práticas condenáveis, mas decerto não estavam amparadas na solidez de uma plataforma constituída por saberes dos mais diversos gêneros. A multiplicidade dos saberes que correspondem à rede implacável de controle e fiscalização que incita o discurso sobre o sexo e a sexualidade repousa sobre o simples movimento de classificação, o ato que separa e classifica.

Um discurso eficientemente constituído para anular a força e o apelo da homofobia (como expresssão de uma das muitas formas de discriminação) deve recusar essa tentação de afirmar a diferença, de afirmar o gesto inicial de classificação e discriminação; deve ter um apelo ainda mais fundamental, como um discurso de cidadania, um texto que se enraize ainda mais fundo, que supra as carências e referências que hoje se nutrem dos bálsamos infantis oferecidos pelas Igrejas a cada esquina. Só quando a camada elementar das nossas referências humanas for constituída por princípios de cidadania — e não por certos dogmas religiosos — as ações e práticas civis (mesmo de crédulos e religiosos) estarão conforme ao respeito que todo ser humano merece, malgrado as diferenças que poderíamos, mas não devemos, apontar. A “diferença”, essa categoria sagrada, deve sempre se conserva assim, abstrata. Devemos resistir ao impulso de transformá-la numa ordem de diferenças, à tentação de identificá-las, discriminá-las, pois é nesse gesto trivial que se amparam as espirais de poder e prazer que perpetuam esta dupla incitação: o prazer em exercer o poder que questiona, fiscaliza, espreita, espia, e o prazer em escapar ao poder, de enganá-lo, fugir dele.

A pedagogia pode ser uma aliada nessa luta, mas apenas se ela nos ensinar, não a notar as diferenças, mas a torná-las (sob certo ponto de vista) insignificantes, indiferentes, irrelevantes. Eis o sentido de se conservar a diferença apenas abstratamente.