Se a única ferramenta que você tem é um martelo, você tende a ver todo o problema como um prego
Abraham Maslow
O que determina a nossa tendência a fazer com que as coisas, as experiências e o sentido que lhes conferimos, sempre se ajustem a nossa visão de mundo? Uma resposta possível poderia ser: o fato de não termos alternativa e de não estarmos familiarizados com perspectivas diferentes da nossa. Como assim, não temos alternativa? Grande parte da nossa visão de mundo se constitui por inculcação, isto é, por meio do condicionamento (adestramento) que nos familiariza com certos conceitos, com certas ferramentas com as quais lidamos com o mundo. Não temos outras opções, os instrumentos que herdamos são os únicos com os quais podemos lidar com o mundo, de tal sorte que as coisas que ameaçam esse conjunto de instrumentos (que formam um sistema) correspondem a um perigo real. A mera repetição tem um papel fundamental na construção da nossa visão de mundo. O que se constitui por meio da repetição e do condicionamento — os conceitos, as ideias, as imagens — são as próprias lentes com que visamos toda a experiência possível, a moldura com que enxergamos a realidade. Essas lentes não são descartáveis, elas são a própria condição de toda experiência, tudo que pode acontecer, para que possa ter sentido, deve se ajustar a elas. Nada deve ficar do lado de fora. Assim, não ter alternativa significa não ser capaz de ver o mundo fora dessa moldura, de outra forma e segundo outra perspectiva.
Um exemplo bizarro talvez ajude a esclarecer o que quero dizer: imagine que você olha pro céu e vê uma baleia voando. Um exemplo menos extravagante não poderia dar conta do propósito do exemplo que é ilustrar o colapso de nossos paradigmas. Mesmo quem nunca estudou física e biologia sabe o disparate que é imaginar uma baleia voando. Os princípios e leis científicas não são nada mais do que o esforço para dar contornos nítidos à regularidade dos eventos naturais (por meio de leis naturais) que povoam nossa experiência. Uma lei como a lei da gravidade se reafirma cotidianamente, a cada a nova experiência, sempre que acidentalmente deixamos cair o pão ou a caneta. Se um evento francamente incompatível com essa lei pudesse acontecer — como no caso da baleia voadora — e não pudéssemos encontrar uma explicação razoável (um exemplo tão bizarro tem seus méritos), pareceríamos compelidos a revisar todo o marco de nossas explicações e nos veríamos numa situação difícil. As leis muito gerais da ciência, como a gravidade, mesmo que em tese sejam falsificáveis, como queria Popper, tem um papel tão importante na estruturação e no controle de toda a experiência que seu possível colapso nos levaria ao completo desamparo, isto é, a uma situação para a qual não estamos preparados e à qual aparentemente não saberíamos ao certo como reagir.
Mas o que isso tem a ver com a tendência à confirmação? Nossa visão de mundo é um sistema de crenças e sua estrutura é como a de um castelo de cartas no qual cada peça está direta ou indiretamente ligada às outras. Dentro desse sistema a possibilidade de certas mudanças implica transformações radicais em nossa visão de mundo e poderia nos levar de um mundo familiar, com o qual estamos acostumados, a um mundo estranho e imprevisível, com o qual ainda precisaríamos nos familiarizar. A tendência à confirmação é uma certa disposição diante da possibilidade de um desamparo epistêmico ou da falta de sentido, isto é, da possibilidade de estar diante de uma situação não familiar à qual não sabemos o que pensar e como agir. A convicção que caracteriza e acompanha essa tendência parece funcionar como um estabilizador de visões de mundo. Assim, tendemos as selecionar os fatos que salvaguardam nossa visão de mundo, pois não temos nenhuma outra para substitui-la caso aceitemos que algo possa de fato colocá-la em perigo. Mas isso não significa que a tendência a confirmação (e a convicção que a acompanha) seja uma tendência deliberada, voluntária e consciente para preservar a estabilidade de nossa visão de mundo, essa estabilidade é antes o resultado da falta de alternativas. Tendemos a preservar nossa visão de mundo porque, mesmo que alguma alternativa se apresente, ela será menos familiar que a nossa própria e a transição (a conversão) a uma nova perspectiva implicaria, no mínimo, algum desconforto, uma insegurança diante da experiência e a necessidade de uma readaptação. Nada pode nos compelir, nos obrigar a reavaliar as bases que estruturam nossa visão da realidade, por isso mesmo toda essa temática está estreitamente ligada à questão da vontade e de seu papel na manutenção de nossa perspectiva. Se é verdade que os fatos (a descoberta de fatos novos) estão no centro da perspectiva científica sobre o mundo e parecem poder determinar alterações substanciais na nossa percepção da realidade, é certo também que grande parte da nossa visão de mundo permanece surda aos apelos da razão (isto é, à pretensão racional de constranger e obrigar por meio de razões), estando antes ancorada na vontade, isto é, num dimensão imune a qualquer constrangimento causal ou racional (daí porque, nesse pontos nodais, falamos em persuasão e não em convencimento).
Tudo isso deveria nos levar a considerar mais cuidadosamente o papel da imaginação. Se a passagem a uma situação não familiar — portanto não controlável porque não sujeita às normas estruturantes que herdamos ao adquirir nossa visão de mundo — representa uma ameaça abertamente rejeitada pela nossa vontade (vontade e razão andam de mãos dadas), talvez a possibilidade de uma posição diferente diante do desamparo, das situações não familiares, de tudo aquilo que foge ao nosso sistema de convicções, possa resultar de um maior espaço concedido à imaginação. Naturalmente, a imaginação não pode criar familiaridade, quer dizer, levamos muito tempo para nos acostumarmos à nossa visão de mundo e a imaginação não pode, num piscar de olhos, converter uma perspectiva distinta em algo familiar, mas ela pode nos tornar mais abertos à mudança. A convicção não poucas vezes nos fecha às mudanças e, em termos éticos, nos fecha à diferença e à alteridade. A imaginação não é incompatível com a convicção, mas ela pode determinar uma atitude diferente diante daquilo que não se encaixa em nossa visão de mundo. O efeito mais danoso da tendência à confirmação é o isolamento e a impossibilidade de entender diferenças radicais, e esse parece um dos maiores desafios de um mundo globalizado (apesar dos efeitos homogeneizantes da globalização). Quer dizer, num mundo dominado pela ciência, é muito difícil não abraçar uma perspectiva na qual todas as diferenças podem ser reduzidas a um solo comum e universal. Diante disso, é natural que cada um acredite poder justificar suas perspectivas frente a outras — ciência é justificação. Assim, o apelo à imaginação reflete a compreensão de que, apesar dos muitos campos comuns da nossa experiência passíveis de serem arbitrados pela lógica da nossa linguagem, o sentido do nosso simbolismo comporta graus de inteligibilidade que não podem ser acessíveis senão por um esforço imaginativo de compreender as circunstâncias que conferem sentido à visão de mundo dos outros. E mesmo o mais importante cientista arrisca mostrar-se intolerante se a convicção em suas posições determinar um senso de universalidade que lhe impeça de compreender a pluralidade das visões de mundo possíveis e a singularidade que cada conjunto de circunstâncias engendra, a despeito do indeterminado número de aspectos compartidos (universais) entre as diferentes perspectivas.
PS. Apenas recentemente tomei conhecimento do tópico de investigação psicológica conhecido como confirmation bias, mas desde então o tema me interessa profundamente, embora eu não tenha encontrado ocasião para ler algo nada técnico a respeito. De todo modo, me parece que a questão pode ser aproximada à discussão sobre certeza, convicções e visões de mundo (num âmbito lógico, conforme o entendimento de Wittgenstein).
PPS. Não sem razão a lógica e a matemática sempre foram apresentados como modelos de racionalidade, isto é, da capacidade da razão de constranger, de conduzir-nos “por paredes muito rígidas”. A força do dever e da necessidade lógico-matemática. Razão é poder. — Mas essa força não se deriva da generalidade (universalidade) das suas leis, como pensavam os formalistas.