A verdade não importa! Sexo e post-truth

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A lição mais direta, incontornável e desconcertante que o sexo nos dá é: a verdade não importa! É uma lição que aponta para um comentário igualmente embaraçoso de Zizek: fazer sexo é masturbar-se com o corpo dos outros.

Os homens não se importam que as mulheres finjam ter prazer, contanto que eles não saibam. Bem, tampouco é como se os homens fossem especialistas em identificar autenticidade e inautenticidade no sexo, qualquer coisa os engana. Alguns chegam até a ser indiferentes ao fingimento, tamanho é o caráter egoístico e autocentrado do seu prazer. Certos homens dão um tom enfermiço à verdade contida no comentário de Zizek.

As mulheres nem sempre se importam com as mentiras que os cafajestes lhes contam, e às vezes participam das ilusões que as aprisionam. Os cafajestes sabem o que dizer para fazer as mulheres se sentirem desejadas, e qualquer criatura que tenha o mínimo impulso sexual quer sentir-se desejada. Sexo é poder. Sentir que se tem meios e atrativos sexuais sobre outras pessoas é dos poderes mais impactantes que eu consigo imaginar. O que quero dizer é: um fingimento bem feito pode valer tanto quanto autenticidades escassas, raras, infrequentes. E que a encenação não seja mais que desejo e tesão, e não amor, que importa? Que importa se o amor é o (meio || instrumento) para se chegar ao sexo, ou se é máscara, disfarce, engodo? Qual é a diferença entre quem se engana e quem se deixa enganar? Quem se questiona esse tipo de coisa quando sente o corpo de alguém que deseja perto de si? — Acho que ninguém! Quanto vale a presença de um corpo desejado perto de si, se o preço por isso for acreditar em mentiras? Quem trocaria uma crença conveniente em mentiras pelas promessas de um amor futuro (ainda não presente) a menos que já saiba o que é o amor? Pior: quem conseguiria se desvencilhar dos laços do corpo, em nome da verdade, quem deixaria de abraçar alguém que deseja meramente por ter pensado que há algo de falso em tudo aquilo?

Esta não é uma apologia à cafajestagem, mas uma breve descrição da função quase inconfessa da imaginação e até da ilusão na sexualidade e na vida.

Bem, mas a cilada é a seguinte: a verdade também importa. E é curioso que a gente possa constatar isso numa letra de Bruno Mars, prócer do cafajestismo. Nessa música que ele canta junto com Anderson Paak (eles formam o duo Silk Sonic), e ali encontramos o seguinte verso:

I ain’t playing no games
Every word that I say is coming straight from the heart

Mesmo que a música, o clip, e tudo mais recenda a jogo e armação, ele insiste em afirmar a honestidade do que diz. Por quê? Porque embora a verdade não importe, no sentido de que o corpo e a fantasia bastam para criar um mundo próprio e suficiente em si mesmo, ela importa no sentido de que o desejo honesto não tem a mesma força que o desejo fingido. O desejo encenado pode conter alguma dose de desejo verdadeiro e de sua potência, mas não se sente de mesma forma. Dizendo de outro modo: aquilo que se finge não tem o mesmo poder do que é autêntico, e assim a gente constata, no sexo, a força e a importância da verdade.

Quanto à post-truth, o que convém dizer é que lutar contra ela é vão, nosso caminho não passa por abandonar a verdade, mas tampouco podemos continuar aferrados a autoridades e dogmas que facilmente se constituem como forças inabaláveis uma vez que a reflexividade esteja ausente. A post-truth é uma verdade amarga da pós-modernidade, dessas que levaremos anos, quem sabe séculos, para processar. O que há de importante nessa lição a ser processada é o aprendizado de que os distintos mundos e realidades em que vivemos se mapeiam por coordenadas que não se reduzem ao conhecimento, e de que do lado de fora está simplesmente tudo que há de importante (o valor), como está posto no Tractatus Logico-Philosophicus:

6.52 Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

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