Ilusões e prisões femininas

I

Eis aqui consumada minha promessa de escrever sobre as ilusões femininas. Temo não agradar aqueles que não vêem diferenças entre preconceitos e generalizações. Creiam, elas existem. Todo preconceito é uma generalização, mas nem toda generalização é um preconceito. A esse respeito talvez seja de algum valor a leitura do meu comentário sobre a importância das generalizações para a experiência comum. O comentário não é menos polêmico, mas é algo ilustrativo. Vamos ao caso.

As relações começam quase sempre de forma deliciosa. A expectativa pinta o objeto amado com cores vivas e as diferenças são solenemente desprezadas ou menosprezadas. Há uma encenação envolvida na corte, buscamos sempre enfatizar nossas virtudes e dissimular nossos defeitos. Uma vez eleitos como objetos de amor, somos também alvos de dissimulações: nossas parceiras (o mesmo acontece no lado oposto — ou no mesmo lado, para ser politicamente correto) representam-nos de forma que nossas características não se afigurem como possíveis obstáculos a segurança da relação. Todo amor, nessas condições, quer a eternidade e não mede esforços para moldar o mundo a esse projeto. Quem já olhou com alguma atenção a história da humanidade percebeu que a regra básica para mudar o mundo quase nunca passa pela transformação das condições materiais, como seres espirituais que somos, cuja sensualidade foi relegada ao terreno da imundície, da contingência, do descontrole e intemperança, somos levados a mudar, antes de qualquer outra coisa, a forma como encaramos o mundo. A história das religiões é pródiga em exemplos de interpretações promovidas com o intuito de justificar uma situação incontornável a fim de amenizar a dor dos estavam sujeitos a elas (1). Assim, dissimulando delicadamente — numa prática que nada tem de patológica ou anormal, ao contrário, constitui atividade própria ao homem — também no terreno amoroso construímos nosso objeto a fim de adequá-lo às nossas expectativas e combatemos gravemente todas as circunstâncias que ameaçam nossa construção. Mas o tempo, senhor de todos os ritmos e solvente universal, que imprime em cada flor a sua pisada, colocará à prova essa estrutura. O ritmo normal tende a desfazer as máscaras e frequentemente as relações terminam quando as duas pessoas se descobrem, após algum tempo de convivência, estranhas uma para a outra. Perdoem esse corte abrupto para o final da história, percebi que o post acabaria longuíssimo no ritmo romanesco em que estava!

Mas onde estão as ilusões femininas? Ora, as mulheres são as maiores combatentes, elas lutam fervorosamente para não se livrar da imagem original que prometia a segurança. (O que me cabe nesse comentário é a impressão de que elas, as mulheres, estão mais presas a esse esquema do que os homens; o que não significa que todas elas partilhem esse comportamento, tampouco que os homens estejam livres dessa armadilha, eu mesmo já fui vítima dessa armadilha). Mais do que isso, no anseio original do desejo costumam investir suas energias com maior desprendimento do que os homens, de sorte que suas vidas se vêem intimamente ligadas à relação. Quando nossa estabilidade emocional está estreitamente vinculada a segurança de uma relação, é previsível que uma ameaça a essa segurança seja encarada com hostilidade. O problema é que às vezes é o próprio objeto de amor que ameaça a estabilidade. Eis o típico cárcere feminino: prisioneira de uma objeto indigno porém que lhes garante uma estabilidade psíquica indispensável. É um tipo curioso de prisão, elas podem sair dela, mas o preço é demasiado caro para que seja assumido sem reservas. Aqui entra mais uma figura nesse relato breve e temperado pelo sono: o cafajeste. Pode ser impressão causada pelo sono, mas esse meu comentário está algo risível — continuemos, porém. O cafajeste é o sujeito que sabe identificar e articular essa fraqueza. Ele joga com as expectativas das mulheres e com as imagens que elas fazem dele. Valmont é um ícone desse perfil. A rigor, não admito que semelhante articulação consista num jogo por uma razão bem simples que, contudo, eu expus num post inteiro dedicação ao livro Ligações Perigosas, de Laclos: porque nesse “jogo” de dois participantes se podemos coordenar as reações do outro, certamente não controlamos as nossas. Valmont pagou alto preço por ignorar esse aspecto.

Algumas mulheres vivem situações ainda piores: reconhecem que seus amores não prestam (vamos botar as coisas nesses termos) e, no entanto, se aferram a idéia de que podem regenerá-los. Como o que está em jogo no rompimento é a própria estabilidade emocional, a luta pela regeneração é a própria luta pela auto-estima e pela segurança emocional. Quando as coisas atingem esse patamar, elas toleram os maiores absurdos, crendo que assim terão oportunidade de consertá-los — o que de fato nunca acontece, aliás, por uma razão bem óbvia: quando alguém abandona todo o amor por si, não sobre nada para o outro amar. Pode parecer uma afirmação piegas, mas não é: ninguém é capaz amar alguém que não se ama. Bem, essa matéria pode parecer um tanto estranha, porque figura em livros, manuais de auto-ajuda e revistas especializadas, mas ela tem um profundo interesse psicológico que transcende a banalização do caso. Não é em vão que organizações como a MADA se erguem. A complexidade das relações e dos investimentos libidinais está assinalada nesse caso, assim como a dinâmica da organização das nossas experiências. Eu arrisco afirmar que se é verdadeira minha impressão de que as mulheres caem nesse ardil com mais frequência, ela o é por força de uma organização social que lhes empenhou um papel mais emotivo, e que coagiu os homens a uma postura mais grave. Embora nos casos particulares muitas condutas masculinas sejam conscientes, no esquema genérico não cabem culpados, importante é arranjar as experiências de modo que possamos reaprender a lidar com os sentimentos de maneira a nunca alienar nossa felicidade a uma condição indigna. Nunca alimentar ilusões que possam se transformar em prisões. O que não significa também recuar diante de todo equívoco alheio, mas esse já é um assunto pra outro post..

(1) A diferença entre uma ficção saudável e constitutiva da experiência comum e a interpretações religiosas é de grau. As ficções religiosas são dogmáticas e inflexíveis, pois como sua função é ideológica e como elas coordenam circunstâncias quase sempre desfavoráveis, não podem ser desfeitas sem produzir a perda do caráter balsâmico que ostentam. É isso o que as faz tão atrativas e que torna seu abandono uma hipótese nem mesmo considerável. É apenas um esboço grosseiro de uma história das religiões de extração nietzscheana (e freudiana, por consequência).

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