Parada Gay: um poderoso símbolo da sexualidade masculina

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Todo homem deveria agradecer por ser homem, ou seja, por não ser mulher, ser homem é um privilégio e não são poucas as vantagens. O que talvez surpreenda um ou outro é que a Parada Gay seja um dos melhores lugares para constatar os privilégios masculinos, além de ser um símbolo do masculino muito mais forte do que aqueles ostentados por nerds vestidos de guerreiros ou com fantasias medievais. Nas paradas do orgulho gay em que já estivemos aqui em Madrid fica evidente a enorme liberdade que os homens têm para manifestar o seu desejo, e para manifestá-lo de modo ostensivo. Os homens nunca foram educados para se preocupar com o que as mulheres sentem e pensam, e esse é o significado de considerar o feminino um gênero de segunda classe, como na sociedade grega.

De qualquer forma, pra mim é sempre uma experiência antropológica circular no centro de Madrid no período do Orgullo. As ruas estão eletrizadas por uma tensão sexual quase tangível, e eu ando por elas olhando pro chão. Confesso que não me sinto confortável sendo assediado por homens. Pode parecer a voz de um bolsominion dentro de mim (lá ele!), mas eu posso explicar. Não estou acostumado a ser objeto de desejo, a ser olhado pública e abertamente com desejo, e eu diria que poucos homens heterossexuais estão. Diria ainda que a simpatia compartilhada vergonhosamente com um bolsominion não reflete, pelo menos não no meu caso, a negação do desejo homossexual como algo vergonhoso, proibido, ou coisa do gênero, o caso é que é francamente desconfortável estar na posição de presa de um predador que não me interessa. Não dá para entender isso sem uma analogia deliberadamente estereotipada. Imagine que você é uma mulher linda andando pela rua e de repente aparece um sujeito sujo, gordo e feio que começa a falar contigo como se você lhe devesse atenção. Ele quer tomar alguma coisa com você e não aceita não como resposta. Nessa situação dá para sentir o que há de desconfortável, para dizer o mínimo, não? É uma injustiça usar essa analogia porque pode parecer que há algo de abusivo na atmosfera do Orgullo, e não há. Mas é o mesmo tipo de desconforto de estar exposto às investidas de alguém cujo desejo não apenas não nos interessa, mas também nos enoja. (Os heterossexuais são adestrados não apenas a sentir, mas a demonstrar clara aversão pelos outros homens, de sorte que mesmo o contato físico parece, não raras vezes, algo embaraçoso e passível de comprometer a incorruptível reputação do homem macho).

Os heterossexuais não estão acostumados a estar na posição de presas, no papel passivo de quem que não escolhe por quem vai ser caçado. Essa é uma das prerrogativas masculinas, especialmente reservada aos heterossexuais. A posição de predador é confortável, pois seu papel é ativo, enquanto o papel da presa é passivo. O predador não precisa negociar os termos da relação com a presa, ele os impõe. Vamos fabricar um caso fictício (ou nem tanto): imagine um homem que pensa e age como se a melhor maneira de mostrar interesse por uma mulher é lhe mostrar seu pau duro! Seu desejo não lhe causa vergonha se ele não reconhece que a presa deve ter seus sentimentos e pensamentos levados em consideração. O exemplo pode ser extremado, mas reflete uma hostilidade que não tem nada de fictícia em qualquer caso, dado o desequilíbrio patente na relação entre presa e predador. E é isso o que incomoda imediatamente no assédio dos homens, independente se você é ou não bolsominion, na parada gay os heterossexuais se veem no espelho, sentem aquilo que costumeiramente apenas fazem sentir. Há uma hostilidade nessa atitude que logo faz melindrar a fortaleza masculina, que a irrita a ponto dela reagir com raiva e agressividade.

Mas a verdade é que por ali não há nenhuma hostilidade real, trata-se apenas de uma honestidade brutal que faz com que os jogos sexuais entre os homossexuais seja um reflexo mais fiel daquilo que se alarda como sendo a sexualidade masculina. Como não há obstáculos que os impeçam de revelar seu desejo, pois são homens, a todo momento este se revela. E de que modo se revela esse desejo que é também um convite? O desejo se revela da forma mais rápida e direta possível, pelo olhar. Ali os homens olham sem nenhum pudor, como de costume, e dizem com o olhar que querem foder ou serem fodidos. Agora, now! Isso não aconteceria em outro contexto, porque os homossexuais estão naturalmente submetidos ao mesmo tipo de restrição que as mulheres, seu desejo é costumeiramente entendido como algo vergonhoso, que deve ser escondido (e pode até mesmo ser alvo de agressão se se deixar ver em circunstâncias inadequadas). Mas no Orgullo esse desejo encontra o contexto apropriado para se expressar com toda a liberdade permitida ao masculino, de tal modo que ele não é percebido como hostilidade por ninguém, salvo pelos heterossexuais que por ventura cruzem o caminho dos muitos homens afoitos por boas fodas. E a verdade é que quem quiser pode passar o dia inteiro, da manhã até a noite, fodendo enlouquecidamente sem sequer saber o nome de seus parceiros. Um amigo que costumava gabar-se de foder prostitutas na lábia, sem pagá-las, chamava essa proeza de sexo sem diálogo, um dos maiores trunfos no universo simbólico heterossexual.

Se é verdade que os homens precisam de sexo mais que as mulheres, e se a potência sexual é símbolo de uma masculinidade que se orgulha de sua força, então é difícil escapar à conclusão de que as práticas homossexuais são símbolos mais ostensivos de virilidade que qualquer coisa que se encontre na contraparte heterossexual. Não deixa de ser francamente patético que o masculino se sinta tão ansioso por aglomerar-se ao redor de uma identidade cuja força simbólica precisa ser constantemente reforçada, a despeito dos milênios de dominação masculina. Mas a pergunta que fica é: em que medida é verdade que o desejo sexual masculino é significativamente diferente do feminino? É certo que os homens têm mais testosterona e que a combinação testosterona mais cortisol é explosiva, mas que parte cabe à cultura nessa equação?

Bem, mas antes de mais nada convém perguntar: por que os heterossexuais não estão acostumados a serem objetos de desejo? Alguns deles, é certo, porque são feios que dói. Talvez os mais bonitos tenham impressão diferente. De qualquer modo, mesmo estes tampouco encontrarão manifestações tão ostensivas de desejo pelo simples fato de que não é permitido às mulheres manifestar seu desejo abertamente. E aquelas que o manifestam orgulhosamente, pois também já há mercado simbólico para isso, são tidas como heroínas e rebeldes. Há toda uma rede de jogos e insinuações que devem mediar a apresentação do desejo feminino, pois de outro modo elas estão sujeitas a serem consideradas putas. Puta é nome que se dá às mulheres que fazem o mesmo que os homens, mas, por serem mulheres, suas ações são consideradas não apenas inadequadas, mas repugnantes. A promiscuidade (feminina) é estigmatizada, como se revelasse automaticamente algo do caráter de quem cede ao desejo e não pudesse ser apenas um modo de ser livre em relação à sexualidade, um modo de ser marcado pela autonomia e não pela aquiescência às regras morais que nos são inculcadas desde cedo. Apesar do estigma das putas a promiscuidade masculina é com frequência um indicativo de caráter mais confiável que a promiscuidade feminina. Se fosse permitido às mulheres serem livres como os homens, quem garantiria que sua sexualidade não se expressaria com tanto ímpeto quanto a que os homens ostentam garbosamente?

Devo dizer que não é sem tristeza que constato a maior frequência do assédio masculino que o feminino, porque como qualquer sujeito normal eu desejaria que as mulheres me olhassem como homens são olhados nas propagandas do desodorante da Axe. E é inevitável não pensar nos incels (involuntary celibate). Se as regras dos jogos entre heterossexuais fossem tão plásticas, flexíveis e permissivas quanto às que há entre os homossexuais nas paradas, certamente as coisas seriam de outro modo, e não haveria essa demanda absurda e sintomática por aulas de como tornar-se um macho alfa. Se a sociedade não fosse — pois ainda é — tão asfixiante em sua vigilância sobre a sexualidade feminina haveria espaço para outros papéis, pois as mulheres teriam liberdade de agir sem temer nenhum tipo de censura ou julgamento. Mas enquanto os homens (heterossexuais) estiverem aferrados aos modelos masculinos, à preguiçosa conveniência de serem apenas predadores, é difícil que permitam às mulheres expressar sua sexualidade livremente. E não é de duvidar que, no fundo e inconscientemente, temam a sexualidade feminina, notoriamente mais poderosa que a nossa (pois é, entre outras coisas, menos genital e mais corpórea).


O desejo é um estimulante natural, ele nos enche de um poder catalisado pelos hormônios, endorfina, serotonina, e dá às impressões que temos do mundo novas cores. A alegria resultante de uma liberdade sexual generalizada certamente concorreria para criar uma atmosfera distinta, onde talvez as pessoas pudessem sentir-se mais à vontade para experimentar modos distintos de desejar e agir em relação ao seu desejo. É certo que não sou desses que acredita que a liberdade sexual tem poderes mágicos, e convém lembrar que interessa ao capitalismo emular formas de liberdade que mascarem a escravidão geral que o sistema impõe (falei brevemente sobre isso no post sobre a safadeza), mas ainda assim não tampouco é conveniente subestimar a força e o impacto das restrições e repressões sexuais no domínio individual e coletivo da cultura.


A arte antecipa, na forma de performances, aquilo que gostaríamos de ver na realidade. E é assim que artistas como Nathy Peluso podem encenar a inversão do sinal, a posição da mulher como predadora cuja sexualidade se expressa com uma força impetuosa. Ela se apresenta como peligrosa, mafiosa, sandunguera, como uma mulher que causa medo nos homens, empunhando ameaçadoramente uma faca, enquanto seus gestos e danças insinuam ou mesmo expõem sem meias-palavras seu clitóris. E há quem não acredite no caráter transformador da arte!

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