É estarrecedora não só a falta de discussão sobre a fofoca como também a enorme condescendência com que o tema é tratado. Bem, talvez Georg Simmel tenha escrito sobre o assunto. O que é a fofoca senão um exercício do julgamento e da faculdade de julgar, um modo de contar histórias ou de inteirar-se sobre a vida alheia essencialmente marcado por um enfoque judicativo; um uso deliberadamente superficial do juízo, mais comprometido com a produção de sentenças (a conclusão de julgamento jurídico) do que com o processo de reunir elementos para o juízo. O hábito de colecionar elementos para o juízo deveria ser o construtor do compromisso com a justiça, essa palavra já tão abstrata e vazia de significado. No entanto, se o que predomina no exercício do julgar é o açodamento e uma certa ostentação da sentença assim rapidamente proferida, como é possível que a justiça tenha lugar?
A condescendência com que a fofoca é tratada faz supor que se trata de algo tolerável e inofensivo. E no que diz respeito à fofoca todas as distinções parecem se desfazer, pois dela tomam parte indistintamente sujeitos os mais variados, sem que se possa encontrar qualquer critério objetivo que indique maior ou menor propensão a fofocar. E tudo se passa como se não houvesse nenhum, nenhum empecilho que pudesse impedir alguém de ser ao mesmo tempo fofoqueiro e justo, e o hábito de fofocar não representasse nenhum impedimento ao exercício justo do juízo. A capacidade de julgar poderia nessas circunstâncias ser compartimentada, de um lado estaria nossa tendência a julgar questões pessoais importantes, temas sociais e políticos, ou temas profissionais relativos à competência de cada um, e do outro estaria nossa tendência a falar mal do vizinho, por exemplo. Os dois campos estariam assim perfeitamente separados, como água e óleo, existindo independentes um do outro. Mas a capacidade de julgar não pode ser compartimentada, ela é um todo sistêmico e este aspecto holístico é fundamental para a justiça.
No que há de propriamente sociológico é curioso constatar o papel que a fofoca desempenha nas relações humanas. Em raras circunstâncias uma afinidade pode ser tão prontamente estabelecida entre pessoas quanto naquela em que duas delas descobrem alegremente que podem falar mal de uma terceira. (Esta deve ser uma derivação da valiosa lição de Freud sobre o lugar da hostilidade na fortalecimento dos laços de afeto.) Nesse sentido, há poucos elementos tão eficientes na produção de laços sociais quanto a fofoca, pois é como se as pessoas se conectassem mais facilmente pela antipatia que pela empatia. Um certo grau de intimidade pode chegar a se formar por meio dessa relação; em pessoas fechadas, a fofoca pode vir a ser uma das poucas vias de expressão da intimidade (em realidade é uma falsa intimidade, a palavra mais adequada aqui é cumplicidade). Desse modo, forma-se uma espécie de sociedade secreta na qual os membros tacitamente se reconhecem como dispostos a falar dos outros. Isso não apenas abre portas, na medida em que permite que novos vínculos sejam imediatamente estabelecidos entre membros desconhecidos, como também produz formas de exclusão, posto que quem não se dispõe a falar dos outros é curiosamente visto com receio e desconfiança. Por cierto, dói constatar que o Twitter (minha rede social favorita) se tornou a rede social da fofoca e do mexerico. Embora muitos pensem que a fofoca está majoritariamente reservada às mulheres, nada poderia ser mais falso, é impossível determinar por gênero a proporção majoritária do engajamento em fofocas. A prática é fundamental não apenas no âmbito pessoal, mas também em ambientes profissionais, e tornou-se um elemento indispensável na articulação política necessária às atividades profissionais as mais diversas. Pensem, por exemplo, no papel da fofoca na Universidade, em centros de pesquisa e em qualquer outro ambiente de uma ampla comunidade profissional.
A fofoca está entre nós desde tempos imemorais, mas é certo que a Tecnosfera tem concorrido para degradar o uso do julgamento. O escanteamento da filosofia, sua servil conversão numa filosofia científica, que começou a ter lugar principalmente a partir do início do século passado, contribui para que todos os domínios antes ligados à ética/política passassem a aspirar a chancela de domínios científicos. Não é à toa que a expressão ciência jurídica circula abertamente entre aspirantes à advocacia como um rótulo desejável que poderia emprestar ainda mais valor à sua atividade. A ciência jurídica sobredimensiona a dimensão normativa do Direito, quase a ponto de fazer esquecer o que há de fundamentalmente (político || arbitrário || convencional) na constituição e aplicação das leis. — Mas o que tudo isso tem a ver com a fofoca? Se a dimensão ética e política do julgamento tem se degradado mesmo nos domínios onde sempre se conservou por questões genealógicas, o que esperar dos ambientes onde, aparentemente, não há nenhuma razão para que as práticas se mantenham ligada a preocupações éticas e políticas? Aí o julgamento pode prestar-se a papéis estritamente sociais e psicológicos como se não tivesse nenhuma outra relação/implicação.
A ideia de justiça está essencialmente ligada ao exercício de julgamento, se por alguma razão essas duas ideias se separam o resultado são práticas sociais (e uma cultura) sem orientação ética. Se isso se dá, além de tudo, num ambiente onde a tecnicidade parece mascarar a degradação ética ficamos também sem critérios para aferir essa perda. O discurso filosófico não apenas é incapaz para indicar essa degradação, posto que não tem valor senão decorativo e acessório, como tampouco pode remediá-lo, pois não pode intervir com eficiência (na falta de melhor expressão) onde é apenas ornamento e não parte axial de uma cultura (a filosofia não é instrumental, mas podemos falar metaforicamente sobre intervenção).
Se a fofoca cumpre um papel social tão importante, a ponto de ser percebida como algo inofensivo ou de azeitar relações sociais entre pessoas que de outro modo não encontrariam pontos de contato, é um imenso desafio conceber uma resposta a tudo aquilo que resulta do afastamento da ideia de justiça na cultura. Se removemos um componente importante de uma maquinaria sem substitui-lo por algo equivalente é inevitável produzir um sentimento de perda, de vazio. O sentimento de perda só poderia ser evitado se houvesse algum tipo de compensação, se a função que a fofoca cumpre na relação entre seres humanos pudesse ser substituída por uma nova forma de relação que substituísse sua superficialidade e imediaticidade por algo ainda mais desejável. O que poderia ser isso? Urge imaginar novas formas de conexão entre seres humanos.
Há poucas populações mais estigmatizadas que a dos moradores de rua, pois ninguém deve a um morador de rua nem mesmo a dignidade de suspender o juízo diante de sua condição. Se é verdade que o se diz e pensa dos moradores de rua não pode ser caracterizado como fofoca, isso ainda assim ilustra um tipo de superficialidade no uso dos juízos que se assemelha à fofoca ao recusar qualquer compromisso com o aprofundamento dos elementos necessários à justiça. Neto é um dos comentaristas esportivos mais populares do Brasil, sua linguagem e meios de expressão são populares, de maneira que preconceituosamente não esperaríamos dele nenhuma elaboração que pudesse nos ensinar algo de valioso sobre qualquer tema relativo à justiça. No entanto, Neto lembra algo essencial que perdemos de vista a todo momento e que mesmo a excelentíssima professora de direito da USP Janaina Paschoal ignora: moradores de rua, viciados em drogas, não são menos dignos que qualquer outra pessoa por sua condição, se perdemos a capacidade de olhar individualmente a história de cada um, se nos apressamos a acomodá-los nas categorias prontas em que facilmente tendemos a encaixar as pessoas, logo nos vemos longe de qualquer coisa desejável e de qualquer senso mínimo de justiça.