Sociologia da fofoca

Meme do Melted, creio.

É estarrecedora não só a falta de discussão sobre a fofoca como também a enorme condescendência com que o tema é tratado. Bem, talvez Georg Simmel tenha escrito sobre o assunto. O que é a fofoca senão um exercício do julgamento e da faculdade de julgar, um modo de contar histórias ou de inteirar-se sobre a vida alheia essencialmente marcado por um enfoque judicativo; um uso deliberadamente superficial do juízo, mais comprometido com a produção de sentenças (a conclusão de julgamento jurídico) do que com o processo de reunir elementos para o juízo. O hábito de colecionar elementos para o juízo deveria ser o construtor do compromisso com a justiça, essa palavra já tão abstrata e vazia de significado. No entanto, se o que predomina no exercício do julgar é o açodamento e uma certa ostentação da sentença assim rapidamente proferida, como é possível que a justiça tenha lugar?

A condescendência com que a fofoca é tratada faz supor que se trata de algo tolerável e inofensivo. E no que diz respeito à fofoca todas as distinções parecem se desfazer, pois dela tomam parte indistintamente sujeitos os mais variados, sem que se possa encontrar qualquer critério objetivo que indique maior ou menor propensão a fofocar. E tudo se passa como se não houvesse nenhum, nenhum empecilho que pudesse impedir alguém de ser ao mesmo tempo fofoqueiro e justo, e o hábito de fofocar não representasse nenhum impedimento ao exercício justo do juízo. A capacidade de julgar poderia nessas circunstâncias ser compartimentada, de um lado estaria nossa tendência a julgar questões pessoais importantes, temas sociais e políticos, ou temas profissionais relativos à competência de cada um, e do outro estaria nossa tendência a falar mal do vizinho, por exemplo. Os dois campos estariam assim perfeitamente separados, como água e óleo, existindo independentes um do outro. Mas a capacidade de julgar não pode ser compartimentada, ela é um todo sistêmico e este aspecto holístico é fundamental para a justiça.

No que há de propriamente sociológico é curioso constatar o papel que a fofoca desempenha nas relações humanas. Em raras circunstâncias uma afinidade pode ser tão prontamente estabelecida entre pessoas quanto naquela em que duas delas descobrem alegremente que podem falar mal de uma terceira. (Esta deve ser uma derivação da valiosa lição de Freud sobre o lugar da hostilidade na fortalecimento dos laços de afeto.) Nesse sentido, há poucos elementos tão eficientes na produção de laços sociais quanto a fofoca, pois é como se as pessoas se conectassem mais facilmente pela antipatia que pela empatia. Um certo grau de intimidade pode chegar a se formar por meio dessa relação; em pessoas fechadas, a fofoca pode vir a ser uma das poucas vias de expressão da intimidade (em realidade é uma falsa intimidade, a palavra mais adequada aqui é cumplicidade). Desse modo, forma-se uma espécie de sociedade secreta na qual os membros tacitamente se reconhecem como dispostos a falar dos outros. Isso não apenas abre portas, na medida em que permite que novos vínculos sejam imediatamente estabelecidos entre membros desconhecidos, como também produz formas de exclusão, posto que quem não se dispõe a falar dos outros é curiosamente visto com receio e desconfiança. Por cierto, dói constatar que o Twitter (minha rede social favorita) se tornou a rede social da fofoca e do mexerico. Embora muitos pensem que a fofoca está majoritariamente reservada às mulheres, nada poderia ser mais falso, é impossível determinar por gênero a proporção majoritária do engajamento em fofocas. A prática é fundamental não apenas no âmbito pessoal, mas também em ambientes profissionais, e tornou-se um elemento indispensável na articulação política necessária às atividades profissionais as mais diversas. Pensem, por exemplo, no papel da fofoca na Universidade, em centros de pesquisa e em qualquer outro ambiente de uma ampla comunidade profissional.

A fofoca está entre nós desde tempos imemorais, mas é certo que a Tecnosfera tem concorrido para degradar o uso do julgamento. O escanteamento da filosofia, sua servil conversão numa filosofia científica, que começou a ter lugar principalmente a partir do início do século passado, contribui para que todos os domínios antes ligados à ética/política passassem a aspirar a chancela de domínios científicos. Não é à toa que a expressão ciência jurídica circula abertamente entre aspirantes à advocacia como um rótulo desejável que poderia emprestar ainda mais valor à sua atividade. A ciência jurídica sobredimensiona a dimensão normativa do Direito, quase a ponto de fazer esquecer o que há de fundamentalmente (político || arbitrário || convencional) na constituição e aplicação das leis. — Mas o que tudo isso tem a ver com a fofoca? Se a dimensão ética e política do julgamento tem se degradado mesmo nos domínios onde sempre se conservou por questões genealógicas, o que esperar dos ambientes onde, aparentemente, não há nenhuma razão para que as práticas se mantenham ligada a preocupações éticas e políticas? Aí o julgamento pode prestar-se a papéis estritamente sociais e psicológicos como se não tivesse nenhuma outra relação/implicação.

A ideia de justiça está essencialmente ligada ao exercício de julgamento, se por alguma razão essas duas ideias se separam o resultado são práticas sociais (e uma cultura) sem orientação ética. Se isso se dá, além de tudo, num ambiente onde a tecnicidade parece mascarar a degradação ética ficamos também sem critérios para aferir essa perda. O discurso filosófico não apenas é incapaz para indicar essa degradação, posto que não tem valor senão decorativo e acessório, como tampouco pode remediá-lo, pois não pode intervir com eficiência (na falta de melhor expressão) onde é apenas ornamento e não parte axial de uma cultura (a filosofia não é instrumental, mas podemos falar metaforicamente sobre intervenção).

Se a fofoca cumpre um papel social tão importante, a ponto de ser percebida como algo inofensivo ou de azeitar relações sociais entre pessoas que de outro modo não encontrariam pontos de contato, é um imenso desafio conceber uma resposta a tudo aquilo que resulta do afastamento da ideia de justiça na cultura. Se removemos um componente importante de uma maquinaria sem substitui-lo por algo equivalente é inevitável produzir um sentimento de perda, de vazio. O sentimento de perda só poderia ser evitado se houvesse algum tipo de compensação, se a função que a fofoca cumpre na relação entre seres humanos pudesse ser substituída por uma nova forma de relação que substituísse sua superficialidade e imediaticidade por algo ainda mais desejável. O que poderia ser isso? Urge imaginar novas formas de conexão entre seres humanos.


Há poucas populações mais estigmatizadas que a dos moradores de rua, pois ninguém deve a um morador de rua nem mesmo a dignidade de suspender o juízo diante de sua condição. Se é verdade que o se diz e pensa dos moradores de rua não pode ser caracterizado como fofoca, isso ainda assim ilustra um tipo de superficialidade no uso dos juízos que se assemelha à fofoca ao recusar qualquer compromisso com o aprofundamento dos elementos necessários à justiça. Neto é um dos comentaristas esportivos mais populares do Brasil, sua linguagem e meios de expressão são populares, de maneira que preconceituosamente não esperaríamos dele nenhuma elaboração que pudesse nos ensinar algo de valioso sobre qualquer tema relativo à justiça. No entanto, Neto lembra algo essencial que perdemos de vista a todo momento e que mesmo a excelentíssima professora de direito da USP Janaina Paschoal ignora: moradores de rua, viciados em drogas, não são menos dignos que qualquer outra pessoa por sua condição, se perdemos a capacidade de olhar individualmente a história de cada um, se nos apressamos a acomodá-los nas categorias prontas em que facilmente tendemos a encaixar as pessoas, logo nos vemos longe de qualquer coisa desejável e de qualquer senso mínimo de justiça.

Promessas da cidade: Madrid

Em 2013, poucos dias depois de haver chegado em Madrid, vi uma imagem que ficou na minha cabeça: uma senhora sentada em sua cadeira motorizada, lendo um livro na rua, embaixo da marquise de um prédio na Calle Luchana. Essa imagem mostra de modo claro a importância da rua para os espanhóis e particularmente para os madrilenhos. Por isso a pandemia foi um tremendo choque para a sociedade espanhola, porque além do macabro e do letal da enfermidade, a livre circulação de pessoas foi impedida, e impediram-se os encontros. A sociedade espanhola, em sua pluralidade, é uma sociedade voltada aos encontros, e manifesta o seu melhor no esforço contínuo para tentar urdir uma trama simbólica e cultural que enlace os seres humanos e que faça com que nossas dores e medos sejam elementos que nos conectem. É fundamental que uma sociedade saiba estimular a sociabilidade, não de modo artificial e mecânico, mas de modo passional. Nada além da paixão pode gerar a necessidade que esperamos das normas (e no final das contas, das instituições).

Botellón na praça Dos de mayo

A pandemia impediu abraços e mesmo simples toques de mão se transformaram em possibilidades ameaçadoras, ensombrecidas pela perspectiva da contaminação. Talvez os espanhóis não sejam tão ligados ao toque quanto podem ser os brasileiros, mas a falta do contato também se faz sentir. E de todas as manifestações sociais que testemunham essa orientação aos encontros, nenhuma é mais emblemática que o botellón. O botellón é um encontro entre pessoas, geralmente jovens, que se reúnem em espaços públicos para beber e conversar. Eles se sentam nos bancos, no chão, onde for possível. O botellón é estigmatizado porque é barulhento, invariavelmente sujo, não consome nos bares locais (vive basicamente da informalidade de vendedores ambulantes), ele incomoda de muitas formas. Eu acrescentaria às críticas a queixa de que como fenômeno social ele é efêmero. No entanto, minha crítica talvez seja excessivamente materialista, preocupada em produzir efeitos identificáveis que nos levem ao “progresso”, ou seja, preocupada com o caráter político que supostamente deveria subsistir na base de todo encontro social. Alguma coisa fica dos encontros humanos? Algo que dura mais que o efêmero e superficial que neles se manifestam? É certo que não podemos controlar este resíduo (se é que ele existe) como quem controla uma relação de causa e efeito, como quem ajusta a dose de morfina de um paciente que sofre com dores terríveis — mas isso não é tão ruim quanto parece. A sociabilidade concebida como uma engenharia não enche meus olhos, muito pelo contrário. Assim, essas reuniões improvisadas, ainda que não contribuam objetivamente para nada que possamos identificar, são manifestações de um certo impulso hacia los Otros que me parece profundamente enternecedor. Não quero desfilar minhas críticas aos botellones, quero vê-los apenas como expressão do impulso culturalmente estabelecido e naturalmente internalizado de estar junto aos outros, de sentir-se bem e à vontade ao lado de seres humanos desconhecidos.

Registro meu da praça Dos de Mayo em abril de 2019.

Boa parte dos grandes pensadores, se não têm eles mesmos uma teoria da civilização, pelo menos já escreveram sobre sociabilidade e insociabilidade, sobre os impulsos opostos que atraem ou repelem os seres humanos uns aos outros. As promessas da cidade são em si mesmas um tipo de resposta ao desafio da sociabilidade, e parte de sua tecnologia, pois no extenso ambiente urbano a impessoalidade torna o trato mais agradável entre pessoas que não são mais que meros passageiros em relação aos outros. É mais fácil tolerar pessoas com quem não somos obrigados a conviver, que não conhecem nossas vidas e cujas vidas não conhecemos. Por contraste, numa cidade pequena, onde todos se conhecem, perdemos o anonimato das grandes cidades, pois todas as vidas ali parecem escrutinadas por um olhar público a um só tempo injusto e atento (a fofoca como uso do julgamento, certamente deve existir uma sociologia da fofoca). O rock star é um paradigma (um arquétipo, para usar uma categoria junguiana) daquilo que muitos buscam ser, talvez o modelo mais aspirado nas grandes cidades, pois há aí um desejo forte e comum que torna verdadeira a profecia de Andy Warhol sobre os 15 minutos de fama. E ainda assim, grande parte da contribuição das cidades (das cidades entendidas como tecnologia do social) consiste precisamente na abertura à possibilidade do anonimato e da impessoalidade, na falta de um olhar alheio atento, no passar despercebido, na liberdade de poder ser autêntico, livre. É na impessoalidade da cidade que o estranho pode se desenvolver, que os gozos diferentes sentem-se livres para gozar e que a singularidade pode encontrar espaço para medrar. O anonimato da cidade atenua o peso da constatação desconcertante que Sartre registra em Entre quatro paredes: “O inferno são os outros”. 

Após a pandemia a prefeitura de Madrid lançou uma campanha contra os botellones.


Meu temor, eu já disse, é que o botellón não seja mais que uma efemeridade, um evento que tem lugar e deixa de existir sem deixar rastros, como se nunca tivesse acontecido. Já minha esperança, meu delírio e minha ingenuidade é que o botellón como manifestação circunstancial e difusa do social seja uma das tantas oportunidades indeterminadas de construir, nas cidades modernas e globalizadas, um novo olhar, atento e justo. Um olhar que rompa a impessoalidade do urbano, essa distância que parece condição necessária da convivencialidade, e se aproxime do outro novamente não com o olhar injusto do fofoqueiro caricato das zonas rurais, mas que traga consigo a perspectiva marcada pelo entendimento da variabilidade e do significado global da espécie humana. Nesse mundo dos sonhos que me inspira a tecnologia das cidades, o olhar e o juízo humano acolhem sem se projetar no teatro publicitário (sem estar no teatro da filantropia, para lembrar de Thoreau) e entendem o diferente porque deixam que esse contato com o outro nos transforme, transforme as lentes com as quais vemos o mundo. É nas cidades, na proximidade impessoal das relações urbanas, onde tudo pode ser reconstruído.


É curioso constatar um interesse de estar próximo aos outros que não é precisamente um interesse por alguém em particular, mas um impulso inconsciente e culturalmente estabelecido de estar reunido. É nesse sentido que a cidade, cuja impessoalidade talvez seja o maior atrativo, pode resgatar ou fortalecer laços sociais esgarçados pelo imperativo do egoísmo e da competição.

Mesmo que eu já tenha morado numa cidade pequena no interior da Bahia, a primeira vez que me dei conta dos efeitos da impessoalidade dos grandes centros urbanos foi quando viajamos para um pueblo do interior da Espanha e eu então notei que aí as pessoas pareciam conhecer umas às outras. Pensei: “qual é o efeito para a sociabilidade desse conhecimento mútuo? quais são os efeitos éticos e políticos desse estar a par da vida dos outros?”

Manual de sobrevivência

Às vezes períodos difíceis da nossa vida, desses que a gente atravessa com perturbação e desassossego, desvanecem na memória e no passado quase como se não tivessem existido, enquanto em outros momentos coisas aparentemente incompreensíveis perduram na lembrança. Eu não esqueço quando pulei uma pessoa numa escada rolante na estação da Lapa. Me senti mal por ter feito aquilo, embora soubesse que era a única coisa a se fazer. O que mais eu poderia fazer? Parar e perguntar, “Cara, cê tá bem?”, pra um bêbado adormecido (ou desmaiado) na entrada da escada rolante de um terminal de ônibus? — Que tipo de idiota tem essa atitude? Vai levar pra casa todos os bêbados, malucos, moradores de rua, todas as pessoas perdidas, todas as solitárias, todas as se fingem de forte para dissimular sua dor? Quem você está querendo salvar agindo assim: ele ou você? Ele não era eu, era um outro, um desconhecido.

Em certo ponto da vida, geralmente quando somos crianças, nos apresentam ao Manual de Sobrevivência. Não somos apresentados formalmente, mas pouco a pouco nos damos conta da sua existência. É certo que as crianças tem uma enorme predisposição sádica, mas elas tem também curiosidade e interesse autêntico. Não raras vezes lhes espanta ver pessoas morando na rua, deitadas ou dormindo no chão onde os outros passam. O que lhes dizemos nessas ocasiões quando elas nos perguntam espantadas? Desconversamos, talvez. Como abordar um tema tão complexo com uma criança? Talvez nem mesmo os adultos a quem as crianças perguntam saibam explicar porque aquelas pessoas estão ali. É muito provável — dado a triste circunstância em que se meteu a sociedade brasileira — que seja dito às crianças que se tratam de vagabundos! Muitos se referem desse modo às pessoas que vivem na rua, como se a vida fosse algo muito simples e bastasse seguir uma série bem definida de regras. E aqueles que não fossem capazes de segui-las à risca seriam não apenas os únicos responsáveis pelo seu “fracasso”, mas pessoas desprezíveis e sem valor. Vagabundos! Assim alguns seres humanos se eximem de qualquer responsabilidade pelos outros e estão livres para pensar somente em si mesmos. A culpa é verdadeiramente terrível, mas não deixa de ser incrível o quão longe as pessoas podem ir para esquivar-se de responsabilidades que ninguém lhes atribue, mas que elas sentem como fardo invisível. Temos importado tanto da metrópole norte-americana que a distinção entre winners and losers já não parece uma ideia fora de lugar, mas algo que está em sintonia com o que há de pior em nós.

O caso é que as crianças são pouco a pouco desencorajadas a se ocupar com as pessoas na rua, a se importar com elas. São adestradas, como bons animais que são, a ter uma atitude “pragmática”, compatível com a vida cotidiana — são ensinadas a ignorá-las! Não dá pra salvar todo mundo. Há um ditado, muito realista, que me encanta: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de um milhão é estatística”. É natural ver o mundo com impessoalidade, pois é francamente compreensível a tendência a evitar a sobrecarga que cada pessoa representa se lhe concedemos a atenção que exige a justiça, se nos colocamos o dever de ser justos ao avaliar a sua história, como se ela fosse uma singularidade (particular) — e não um dos casos de uma regra (geral). É um fardo, a justiça é fardo, é um exercício que pesa (em termos quase computacionais, de recursos de memória). Que as pessoas queiram evitar esse fardo me parece inteiramente compreensível. Além do que, como lembrava Freud, o amor é o sinal de nossa distinção, há sempre algo de incontornavelmente tendencioso nos nossos julgamentos — e por isso o relativismo não representa o perigo que lhe atribuem. Estamos sempre em perspectivas e não há um lado de fora, um real que não seja perspectiva, mas objetividade.

O que é tão difícil de entender pode ser expresso assim. Enquanto permanecermos na província dos jogos de verdadeiro e falso, uma mudança na gramática só pode nos levar de um desses jogos para outro, e nunca de algo verdadeiro a algo falso.

Wittgenstein, gramática filosófica

Mas não é hora de falar disso, o que importa é que existe algo que nos inclina a uma misantropia, a uma insociabilidade, a uma privacidade, a um querer estar longe. Eu não posso dizer que não compreendo quem honestamente se confessa misantropo. Há boas razões para odiar as pessoas em geral. É claro que, se a impessoalidade prevalece e nos distanciamos desses seres odiosos que são os outros seres humanos, nós perdemos a capacidade de senti-los. E assim perdemos a ginga perto deles.

Deixamos de ser capaz de sentir o que é dito por Nai Palm, sobre sua orfandade e sua relação com a natureza.

Deixar de ser capaz de sentir os outros humanos não é uma perda qualquer, muito se perde com isso. Quem já esteve num estádio cheio, no carnaval, num show de música, teve pelo menos ocasião de sentir a força e a beleza da conexão entre seres humanos. No carnaval, quantas vezes a alegria da música nos fez sentir como se nos dissolvêssemos na ressonância desse sentimento coletivo, como se experimentar a alegria como indivíduo não fosse nada perto da experiência de senti-la na rua, com pessoas queridas e os outros desconhecidos. E como se a alegria não pertencesse a nenhum de nós, mas fosse de todos, e por isso mesmo fosse muito maior do que qualquer coisa que pudéssemos experimentar sozinhos. Não ser capaz de sentir isso é uma grande perda.

Nossa dor é que balança o chão da praça!” Chame gente talvez traduza melhor o espírito do carnaval, mas é difícil achar uma versão que espelhe seu caráter incendiário na avenida.

O que quero dizer é: embora afastar-se dos outros (ou manter em relação a eles uma distância impessoal) possa parecer a opção segura, prática e razoável, ela não nos afasta realmente deles, pois nunca deixamos de ser afetados pelas vidas dos outros, por mais esforço que façamos para viver em nossas bolhas. O covid19 talvez tenha nos feito lembrar disso, ou pelo menos esse fantástico texto me fez. Somos animais sociais e a rede que nos une tem laços profundos e tramas que nem mesmo suspeitamos. O que eu ia dizendo antes de começar essa longa digressão é que as crianças são encorajadas a ignorar as pessoas na rua, a fingir que não as veem deitadas nas calçadas, como se adquirissem assim uma espécie de virtude, uma habilidade que lhes torna aptas a viver no mundo. E quem pode negar a dura verdade dessa perspectiva?

O Manual da Sobrevivência, esse compêndio de regras para quem não quer ser esmagado pelo peso do social, não deixa de lembrar a sabedoria do verme, que se encolhe ao ser pisado para diminuir as chances de um novo pisão. Ainda que essa astúcia primitiva seja inegavelmente vantajosa, que tipo de seres humanos ela nutre?

Ser justo não é uma virtude que se ensina às crianças, mas nos parece imprescindível que, cedo ou tarde, os jovens aprendam a lidar com a ingenuidade codificada em sua programação padrão, de modo a evitar que sejam enganados, ludibriados, manipulados, etc. Deve-se substituir a ingenuidade por certo grau de esperteza e de malícia, com o objetivo de nos tornar menos sujeito à maldade humana em geral e à sua propensão parasítica em particular. Longe de mim fazer ressalvas a este aprendizado tão louvado e útil à sobrevivência dos seres humanos nas sociedades capitalistas, mas será que inibir uma propensão quase natural de importar-se com os outros não tem maiores efeitos? É verdade que as pessoas ingênuas chegam a ser irritantes, mas nada se compara àqueles que sentem prazer em confirmar (eles sempre se confirmam) a falibilidade do humano, como se dissessem: “Tá vendo, é por isso que estamos perdidos!”. Tratar todo impulso benéfico como a expressão de uma fraqueza a ser inibida tem nos custado muito.

É simplesmente impossível viver quando tudo nos afeta ou se não nos diferenciamos dos Outros — desde cedo aprendemos estas lições. No entanto, é verdade também que o esforço deliberado para responsabilizar o indivíduo por tudo que lhe acontece cria as condições ideias para o egoísmo e a indiferença. Não creio que devemos reagir a este esforço sistemático com o objetivo de evitar o egoísmo, há algo de inevitável no egoísmo e na egocentricidade. Mas é certo que poderíamos resgatar uma experiência entre seres humanos que se perdeu desde que temos estado sob a sombra dos dogmas liberais da competição e da individualidade atomizante. Talvez essa experiência seja o que se expresse natural e ingenuamente na atitude das crianças, em seu espontâneo interesse pelos outros seres humanos, um interesse não mediado pelos ardis dos sobreviventes e pelo amargor que inevitavelmente contamina suas lições de vida.


O sobrevivente é, acima de tudo, um ressentido e isso inevitavelmente me lembra esse deboche de Chico.

Debochando do cínico

Por que não substituir nossos juízes por computadores?

Os magistrados brasileiros formam uma classe vergonhosa (ainda que seja preciso lembrar das dignas e nobres exceções). Do medíocre ególatra Sergio Moro até destacadas figuras das altas cortes parece prevalecer nessa classe a falta de caráter e o completo desprezo por qualquer senso de justiça. Ou talvez seja apenas o efeito da má publicidade gerada pela exposição constante de uma minoria. A contaminação do todo por uma parte. Carl Hart costuma lembrar que a classe dos usuários de drogas é inteiramente estigmatizada pela má publicidade gerada por aqueles que tem problemas aditivos, mesmo que a maioria não tenha problemas. Talvez seja otimismo pensar que o mesmo se aplica à classe dos magistrados, mas quem sabe? De qualquer modo, o desejo de substituir juízes por computadores e o exercício ficcional de pensar essa ideia pode nos fazer ver algo interessante.

Em realidade, talvez haja no projeto de substituir juizes por computadores algo menos ficcional do que parece a primeira vez. Algo mais concreto. As perspectivas de Demis Hassabis, o criador da DeepMind, empresa dedicada a pesquisa e desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial, parecem afins aos meus devaneios ficcionais:

IAG é a abreviação de Inteligência Artificial Geral, um hipotético programa de computador que pode realizar tarefas intelectuais tão bem quanto, ou até melhor, que um humano. IAG será capaz de realizar tarefas discretas tais como reconhecer fotos e traduzir línguas, que são o foco estreito da variedade de inteligências artificiais (AIs) que habitam nossos telefones e computadores. Mas ele também irá somar, subtrair, jogar xadrez e falar francês. Irá entender artigos de física, escrever romances, traçar estratégias de investimento e ter conversas prazeirosas com estranhos (minha tradução macarrônica).

Parece Her, não? Quem disse isso desenvolveu o programa AlphaGo que, aplicando algoritmos de reinforcement learning, bateu um humano em go como antes o Deep Blue havia batido Garry Kasparov no xadrez. É razoável pensar que ele sabe do que está falando. Algumas pessoas dizem que o programa joga tão bem que parece ter um estilo artístico.  Imaginem! Estilo. Esse é o maior elogio que alguém pode fazer a uma inteligência artificial, ainda mais um estilo artístico.

Talvez não seja tão improvável que computadores substituam juizes. Seria conveniente e congruente com o entendimento do direito que parece dominar a nossa cultura. No Brasil o direito é exclusivamente uma técnica, é como se não tivesse nenhuma relação com a ética e com a ideia de Justiça. A Justiça está para o Direito assim como o cérebro está para a Neurociência. Como os juizes são autoridades técnicas, num país que ainda luta para alcançar níveis decentes de educação, há uma forte tendência a endossar simples e cegamente o que foi determinado pelos técnicos do judiciário. Mesmo jornalistas inteligentes (e honestos) às vezes costumam se colocar no papel de inaptos para avaliar a fundamentação das decisões dos nossos discretos e republicanos juízes. Se é assim, melhor mesmo que sejam computadores a julgar. Nenhum humano pode desempenhar melhor que um computador certas funções técnicas, especialmente computadores treinados para aplicar sistemas baseados em lógica paraconsistente, capazes de tomar decisões onde nós não poderíamos. Os expert systems de inteligência artificial sempre me voltam à minha lembrança quando penso nas nossas limitações.

Acontece que o Direito, embora exija algum nível de tecnicidade, não pode ser uma área estritamente técnica. Um leigo não pode avaliar as decisões de um neurocirurgião, e é bom que seja assim. No entanto, quando as pessoas deixam de apreciar as decisões dos juizes porque não se sentem tecnicamente preparadas, a sociedade caminha em direção a um sintomático distanciamento em relação à ideia de justiça — e àquela que deveria ser sua mais importante expressão. A capacidade para avaliar as expressões da justiça não pode ser um poder restrito a uns poucos (o juiz não deve ser constrangido por fatores externos, mas tampouco pode ser solipsista). Se é dever do juiz ser justo, convém lembrar que a justiça não é uma competência técnica, nem um mero acúmulo de saber, mas um modo de exercer o ato de julgar. E esse exercício supõe, em última instância, a ideia de autonomia (o que é um aparente paradoxo, mas de vital importância para a dinâmica de constituição da justiça). Um bom juiz deve inevitavelmente ser um bom legislador. Mas essa já é uma outra história.

O caráter irredutível do ato de julgar é o que feliz ou infelizmente nos impede de substituir os juizes por máquinas e nos compele à política e à ética, por mais desejável que seja o sonho de abolir a arbitrariedade do juiz e substitui-lo pela firmeza (determinação) de computadores aplicando leis segundo parâmetros claros e precisos. O conhecimento não pode nos levar à justiça, porque um bom julgamento não é determinado pelo conhecimento, embora possa se servir dele enormemente. Nossa sociedade científica virou as costas pra ética, apostando que em algum ponto na rota do nosso progresso tecnológico a justiça simplesmente brotará das expressões do conhecimento (das instituições, das técnicas e das práticas orientadas pela ciência). É uma boa aposta, mas ela fecha os olhos à irredutibilidade a que me refiro. Como supostamente é necessário apenas conhecer e saber fazer (o quase redundante binômio ciência e técnica), a ética desaparece e a política é sentida cada vez mais como algo sem solução, como um emaranhado de nós que aparentemente não se pode desenredar. Dobramos a aposta na ciência e no conhecimento. Nesse horizonte onde a política perdeu sua força —  e onde ética e justiça parecem palavras vazias — trata-se sempre de encontrar uma resposta tecnológica, pois tudo se resume à chave problema/solução. Quando as potencialidades computacionais forem satisfatoriamente realizadas, não apenas com o desenvolvimento pleno das inteligências artificiais, mas também com os computadores quânticos (ou a computação neuromórfica), teremos inteligência e capacidade computacional suficientes para resolver nossos problemas. É essa a impressão que me vem a cabeça sempre que fico sabendo o que pensam os especialistas em tecnologias de pontas sobre a função e o impacto delas na sociedade. Então é isso então o que nos falta, tecnologia e inteligência? Não temos inteligência no mundo o bastante? Pelo visto, nós humanos não temos capacidade computacional suficiente para processar todas as variáveis dos sistemas complexos do mundo de modo a que nossas respostas e ações possam estar razoavelmente embasadas, mas no futuro teremos (por meio dos computadores) — é uma questão de tempo.

Eu discordo frontalmente dessa avaliação, desse juízo. Meu conhecimento não me permite passar esse cheque em branco à tecnologia. Talvez essas pessoas maravilhosamente inteligentes, as autoridades e os investigadores nesses campos tecnológicos, saibam algo que eu nem imagino, e por isso tem uma visão do mundo radicalmente diferente da minha. Pode ser que seja o caso. No entanto, pelo que eles falam não dá pra extrair uma justicativa sólida para essa crença. E se tudo que nos resta é uma crença cega na ciência, reproduzindo a lógica da Freud, talvez fosse preferível continuar com a religião e não substitui-la por uma deusa inquestionável (a tecnologia). Tudo isso me parece mero wishful thinking. Eu ainda acho, com o velho Aristóteles, que temos que saber julgar e que saber julgar não se reduz a um conhecimento ou a uma técnica. Isto é, saber julgar não se reduz nem a um saber, nem a um saber fazer — é uma atitude, uma atenção contínua ao aperfeiçoamento do juízo, um compromisso com a reflexão sobre as próprias leis que dirigem o juízo (nas mais diversas áreas) e, portanto, exige como meta a autonomia, uma meta que inescapavelmente se choca o papel das autoridades (e dos próprios códigos). Devemos saber desconfiar das nossas próprias leis e convicções e ser capazes de fabricar, circunstancialmente, os parâmetros que devem orientar nosso julgamento.

Bem, o que fica desse emaranhado de considerações dispersas é a impressão de que o distanciamento da justiça — provocado em grande medida por um processo de complexificação institucional que a instala num domínio de quase exclusiva competência técnica — produz o efeito nefasto de separar as pessoas dos valores e princípios que nos levaram a organizar a sociedade em torno dessa ideia. A justiça perde a vitalidade porque já não está organicamente integrada às práticas da sociedade, das pessoas que a compõem, mas maquinalmente organizada por um conjunto de regras de procedimento cuja operação já não depende do vínculo orgânico com a sociedade. E dessa abstração contínua e crescente, aliada ao desencanto com a classe dos magistrados, é de onde pode surgir o desejo de substituir os falíveis juízes por máquinas infalíveis, comandadas por algoritmos inteligentes que operam dispositivos com capacidade de armazenamento e processamento incomparável mesmo as do humano mais inteligente. Seguramente há quem prefira apostar na solução tecnológica —  a tecnologia já se transformou numa tradição contra a qual é difícil dirigir qualquer crítica —, de minha parte, eu penso que é preciso reabilitar o vínculo das pessoas com a ideia de justiça — para além do âmbito institucional, o que significa também reabilitar a ideia de ética — comprometê-las com a formação contínua de um olhar justo. Enquanto elas estiverem ocupadas com outras coisas (soterradas por centenas de estímulos) e delegarem aos especialistas a reflexão sobre as expressões de justiça a sociedade seguirá como anda hoje, a deriva, ou melhor, a reboque de uma tecnocracia que não tem contrapesos. Uma boa parte dos nossos problemas vem do abandono voluntário da reflexão e da sua substituição pela capacidade técnica nas mais variadas áreas do conhecimento — como se eles fossem equivalentes. Sem a capacidade reflexiva é difícil avaliar os rumos da sociedade que construímos tanto quanto avaliar as ações das pessoas (e suas circunstâncias) e olhá-las com o cuidado que só pode ter quem está comprometido com a justiça.

Os computadores podem identificar regularidades onde nós não seríamos capazes e até mesmo encontrar soluções não triviais onde estaríamos impedidos por nosso apego à lógica clássica, mas por ora só nós podemos criar — escrever os códigos e instruções que orientam os computadores, mas também a nossa própria sociedade.

Denunciando intenções

O nascimento da razão

Quando estão discutindo ou conversando as pessoas tendem a identificar intenções e a usá-las como parte de seu próprio discurso. Por exemplo, a intenção de quem escreve um texto pode ser mobilizada contra o autor. Wittgenstein disse coisas curiosas sobre intenção, dentre elas, que um gato espreitando um pássaro é a expressão natural de intenção. A intenção pode até mesmo ter uma expressão natural. Isso não significa que essa intenção não possa ser objeto de disputa e controvérsia. Portanto, parece ainda menos aconselhável que ela seja empregada como uma espécie de evidência em estratégias argumentativas. E esse é um caso comum.

Poderíamos estar de acordo que todo texto expressa uma intenção, mas isso não quer dizer que a intenção cumpra uma função argumentativa no texto. Sempre que identificamos uma intenção com a qual não concordamos, nos apressamos em denunciá-la. Assim o cenário é: uma intenção não apresentada no texto é utilizada para refutar ou objetar o argumento ao qual supostamente ela se liga. O sujeito que assim se vale das intenções em geral constrói seu argumento em função da necessidade dar força à sua denúncia, isto significa que o argumento inicial ao qual à intenção supostamente está ligada é não raras vezes completamente elidido. Ora, a elisão do argumento é uma das características marcantes das falácias não-formais. Vejamos uma das mais características, a falácia ad hominem.

Nos tempos bicudos em que vivemos, imagine um deputado do PT que tivesse feito um forte e articulado discurso contra o Estatuto da Família. Agora imagine que alguém escreve um texto chamando-o de petralha e alegando que o propósito do seu discurso é solapar a base moral da sociedade brasileira, a família (heteronormativamente constituída). O que foi feito neste caso? Os eventuais argumentos apresentados pelo deputado foram solenemente ignorados e a resposta a eles, que deveria ser argumentativa, torna-se falaciosa, pois elude aquilo a que deveria responder: suas ideias e argumentos. Mas claro que se você desqualifica alguém e sugere que as suas intenções são tais e tais, seus interlocutores podem eventualmente estar de acordo contigo ou pode ter a mesma relação de repulsa em relação à intenção denunciada. Isso significa que esse discurso, embora falacioso, pode ser eficiente. Se o discurso falacioso não fosse eficiente, ele teria simplesmente deixado de existir. No entanto, ele frequentemente causa os efeitos esperados. O que me parece preocupante, no que diz respeito às intenções, é que este tipo de estratégia não esteja restrita a classe daqueles que escrevem com a boca amarga de fel. Podemos encontrá-la não poucas vezes no discurso de pessoas bem qualificada, de discurso articulado e, porque não dizer, na expressão gente bem intencionada.

Há muitos contextos em que a denúncia de intenções é de fato uma tática válida, bem como há circunstâncias em que o ad hominem é estratégia legítima. (Em contextos jurídicos, a condição de uma pessoa, que deveria ser irrelevante para avaliar a verdade do que ela diz, pode ser determinante para se estabelecer a credibilidade de suas palavras, portanto, o ad hominem pode não ser considerado uma tática inválida). Esses contextos não são o que me preocupam. Preocupante é que nós estejamos não apenas desatentos aos abusos, isto é, aos casos nos quais a denúncia é mera elisão (bem ou mal intencionada) do argumento, mas também profundamente inclinados a empregar, nós mesmos, táticas semelhantes.

Pensar e argumentar são coisas distintas. Podemos ter o mais complexo emaranhado de pensamentos em nossa cabeça, as convicções as mais certas, as mais redentoras, as mais importantes, e sermos incapazes de transformá-las em argumentos. O pensamento não necessariamente está determinado — e na maioria das vezes não está. Daí que a argumentação é o compromisso público do escritor. A linguagem só existe como coisa pública. O emaranhado de ideias que temos em nossas cabeças não tem nenhuma importância pro mundo. Nenhuma. Senão, obviamente, como coisa expressa publicamente. Uma válvula que pode ser girada sem que implique nenhuma mudança na engrenagem da qual faz parte não tem nenhum valor, é como se não existisse, como se não fosse parte do mecanismo. Nós confundimos a importância (privada) dos nossos pensamentos com sua importância pública. A importância pública de um pensamento está na sua capacidade de ser expresso (argumentativamente ou não, pois há pensamentos em filmes, poesias, músicas, encenações, danças, etc.). Insistir no caráter público da linguagem equivale a dizer: toda intersubjetividade só pode ser pública. Há pessoas que nós entendemos sem palavras, apenas por olhares e gestos, mas o texto é o compromisso com uma audiência muito mais ampla do que o punhado de pessoas (se tal) com as quais podemos nos entender sem palavras. E esse é o problema da banalização da denúncia de intenções.

Nós podemos encontrar muitas pessoas que partilham de nossas perspectivas e podemos mobilizá-las de muitas maneiras. E uma dessas maneiras é: indicando aquilo que elas, como nós, rejeitam. Portanto, quando alguém denuncia uma intenção, e mobiliza os outros contra ela, não necessariamente essa pessoa está rejeitando os argumentos aos quais a intenção se liga. Neste caso, tratar-se de anular a proposta do debate, trazendo, como “argumento”, a intenção que anima a proposta.

— Vejam, esse sujeito está querendo destruir a base moral da nossa sociedade, não deem atenção ao que ele diz.

Os argumentos não estão assim rejeitados, eles apenas não foram confrontados. Às vezes essa é uma maneira de enfrentar o que não se entende. Mas é uma maneira desonesta e daninha, mesmo quando usada inadvertidamente, embora eu saiba que muita gente não se dá conta disso. Toda expressão linguística pode ser a causa que leva alguém a aderir a uma perspectiva, importante é que ela seja também uma razão, isto é, que preservemos o espaço público no qual as razões estão disponíveis para serem contestadas ou confirmadas. Enquanto nos atemos às intenções e às afinidades que partilhamos com outras pessoas que podem ver as coisas como nós vemos, oferecemos pouco ou nada ao mundo, e só somos capazes de mobilizar aqueles que já partilham do nosso próprio ponto de vista. (Escrevi sobre tática semelhante quando comentei as estratégias de Diogo Mainardi)

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Quem argumenta por intenções precisa quase sempre do tribunal de seus pares. E não importa a que tipo de grupo a pessoa pertença: liberais, esquerdistas, fascistas, ateístas, religiosos, etc, etc. É reconfortante argumentar para quem tende a concordar com você. Esses tribunais não estão comprometidos com a verdade (ou mesmo com o sentido), mas apenas com a manutenção e exercício do poder que eles representam. O poder de sentenciar a intenção do outro.

Intenções são elementos importantes em tribunais morais ou jurídicos, mas não em ciência ou filosofia*. O que não significa que eles não sejam usados aí, provavelemente são. Em filosofia deve haver casos em que filósofos supõem intenções de outros pensadores a fim de denunciar uma coisa ou outra, mas mesmo nesse casos a intenção não é senão elemento secundário e acessório. No Direito ou na Moral, ao contrário. Decidir sobre as intenções de alguém é decidir se se deve ou não responsabilizá-lo por algo. Por isso não raras vezes vemos, dentre as pessoas preocupadas em julgar intenções, a formação de grupos de pessoas (podem ser duas ou três pessoas até grupos inteiros) nos quais um certo juízo é comum. Assim elas se fortalecem umas às outras. Mas esse é exatamente o contrário do propósito científico (e retórico, no sentido antigo, quase perdido) de ampliação da auditório (e da anuência a uma tese) e do esforço de argumentar para uma pretensa audiência universal. Julgar intenções é uma prática comum e necessária em parte da nossa vida cotidiana, no entanto, quando se converte num instrumento argumentativo sistemático atrelado a tribunais já constituídos (grupos) pode se tornar a expressão de preguiça intelectual e conformismo (de pertencer a um grupo que apoia certas classes de juízos e ignorar os restantes).

* Eu posso imaginar que intenções sejam importantes em teorias estéticas e coisas do gênero. Mas trata-se de mostrar intenções e não inferi-las. O auditório pretendido é o universal, não um tribunal com poderes condenatórios. A diferença é sútil mas importante.

Da importância do preconceito

Antes que me apedrejem, eu confesso que o título é estrategicamente polêmico. Não se trata de um elogio à discriminação racial, étnica, ou a coisa semelhante. Antes, é a tentativa de mostrar que nem todo preconceito é desprezível e dispensável, e que eles cumprem um papel fundamental na economia da nossa organização psicológica. Bem, vamos às explicações antes que a demora se torna uma inimiga.

Quem anda por aqui já me viu citando a conhecida frase de Lébrun: “não é possível pensar sem preconceito (prejuízo)”. Eu mesmo não sei o contexto da frase, mas adotei-a com se fosse minha. Talvez devêssemos começar pensando: e se não houvessem pre-conceitos? Mas vamos com calma. Primeiro pensemos o aprendizado. O que é aprender ou ensinar? Grosseiramente, poderíamos responder assim: é tornar alguém capaz de responder de forma relativamente padronizada a determinados estímulos. Ensinar a ler (aprender a ler) é fazer alguém capaz de transformar sinais gráficos em uma linguagem cujo sentido ele entende. Aprender a jogar xadrez é saber o que fazer diante das peças de um tabuleiro. Mas o aprendizado só pode se realizar se as condições, os estímulos, como contextos de execução, permanecerem imutáveis. Mas e se as coisas cambiassem arbitrariamente, se os sinais gráficos mudassem a todo instante, sem regra aparente? Talvez pudéssemos ainda falar em aprendizado, mas decerto em sentido bem diferente do que hoje nós empregamos. O significado da aprendizagem exige o espaço da estabilidade como condição de exercício de seu método. Se as pessoas fossem incapazes de reconhecer aquilo que é comum às coisas com as quais elas foram ensinadas a lidar, não saberiam como reagir a elas.

Mas qual é a relação disso tudo com o preconceito? Bem, o preconceito é um instrumento, uma espécie de fórmula geral (como todo instrumento, admite práticas boas e más). Através dele as pessoas se programam para reagir a determinadas circunstâncias. Nós nunca estamos completamente despreparados para novo. Diante do desconhecido, é comum hesitarmos. Mas por quê? Por que não exultar, ao invés disso. Alegrar talvez. A hesitação é uma forma de preconceito útil, na maioria dos casos. Quando uma mulher diz: “os homens não prestam” (eu já citei casos semelhantes por aqui), após uma tortuosa sequência de maus relacionamentos, ela expressa um preconceito “útil”, embora talvez danoso caso se mantenha por muito tempo. Ela aprende a reagir, ainda que traumaticamente, às sucessivas desilusões afastando-se daquilo que ela julga ter causado a dor que ela sente.

Mas deixemos os casos mais complexos de lado, voltemos à novidade. Nós estamos sempre, de algum modo, preparado para ela. Isso quer dizer que o desconhecido é sempre trazido ao terreno das nossas referências. Se não sabemos como lidar com ele, aplicamos alguns dos nossos conceitos. Agimos como se fosse uma ameaça, um perigo, ou podemos ter outra reação, mais positiva, a depender da personalidade de cada um. O fundamental é que: antes de termos razões para agir desse ou daquele modo, nós não ficamos sem reação, sem referências. Nós aplicamos os conceitos que já temos! — nada escapa às nossas conceitualizações. Diante do desconhecido, o homem não meramente paralisa até obter informação suficiente para julgamento apropriado. Essa é a imagem ingênua que habita o espírito dos que não entendem o sentido da importância do preconceito. Imaginem nossa mente como um grande arquivo. Considerem que o desconhecido aqui assume apenas a forma de pessoas, pessoas que não conhecemos. Vamos pensar então como aquelas pessoas que imaginam que os preconceitos são sempre dispensáveis. O que acontece quando conhecemos alguém novo? Criamos um novo arquivo onde as novas informações sobre aquela pessoas são condicionadas. Mas antes de termos informações sobre ela, simplesmente suspendemos os juízos? Se suspendemos, isso quer dizer que agimos de forma equânime com todas as pessoas que nos são desconhecidas? Quando nos deparamos com um sujeito mal encarado que, com a mão no bolso, vem em nossa direção, deixemos que se as coisas se materializem até que possamos legitimamente formar um juízo? Bem, eu não quero apenas mostrar que pensar assim é ir de encontro ao que é mais trivial no senso comum: ao fato de que na maioria das situações cotidianas o preconceito é uma ferramenta útil e indispensável. Eu quero mostrar que as coisas são assim porque se fossem de outro modo, nós não agiríamos com agimos. Voltemos a imagem da mente como um arquivo: se cada pessoa nova, desconhecida, fosse uma ficha, um arquivo, se não houvesse uma categoria maior das quais elas pudessem ser unidades, como num conjunto. Se não pudesse haver um conjunto maior do qual o conjunto atual fosse um subconjunto e assim por diante, então, cada ficha e arquivo seriam únicos e incomunicáveis. Não poderíamos aprender a lidar com as pessoas, a reagir a elas, pela razão que apresentei no início. Não teríamos a estabilidade necessária ao aprendizado. Se as pessoas fossem únicas e irredutíveis, no sentido de que todo o preconceito fosse detestável, não poderíamos esperar delas reações com as quais aprendermos a lidar. No entanto, muitos fatores fazem com que as pessoas ajam de modo homogêneo, e isso dá respaldo ao nosso aprendizado. Talvez haja uma dimensão própria da nossa natureza como justificativa para certas ações. Talvez haja uma dimensão própria de cada cultura. Não sei. O caso é que as regularidades que podemos observar auxiliam nossa lida com as coisas, com os outros, embora essa identificação não esteja imune ao erro.

O preconceito, na sua versão pavorosa e detestável, é a face contrária da crença ingênua na desimportância do preconceito. É a expressão do atraso de pensar que se pode ler nas coisas os sinais das categorias gerais usadas para lidar com as pessoas. Como se o preconceito fosse, não um recurso psicológico geralmente útil, mas um conhecimento irrefutável.

Não ser preconceituoso, no sentido pejorativo, não é não ter preconceitos, é ser capaz de flexibilizá-los, de romper com eles, de jogá-los no lixo. Ou, em outros casos, de reconhecer de sua utilidade. Nesse sentido eu sou um sujeito livre dessa versão negativa do preconceito, pois tenho capacidade para me desprender dos meus juízos; mas por isso mesmo sou um preconceituoso, no sentido positivo do termo, não imponho rédeas aos meus juízos (claro, eles jamais transpõem os limites da minha inteligência, pois, por exemplo, o preconceito racial é antes de mais nada uma forma de burrice; felizmente meus juízos não se ancoram no espaço que não pode receber a chancela racional). Deixem que eu conte um dos meus preconceitos, dias atrás eu diverti uma conhecida com ele: eu tenho preconceito de fãs dos Los Hermanos. Sem contexto, se você me diz que é fã dos Los Hermanos eu dou passo pra trás. Nada de errado com a banda, ela é bastante boa se consideramos o deserto cultural que assola certos setores da música brasileira há alguns anos — mas seus fãs são quase sempre insuportáveis. O discurso que eles constroem para enaltecê-la é em geral bobo e atesta frequentemente uma gritante escassez de referências (que é, na maioria dos casos, a razão real porque eles emprestam tanto valor a banda). Já tive gratas surpresas. Pessoas que ultrapassaram em muito as fronteiras desse meu juízo. Mas outras vezes, na maior parte dos casos (razão pela qual meu preconceito existe), eu me divirto afirmando orgulhoso meu preconceito diante desses fãs e, se o dia estiver inspirado, arrisco até descontruir a mitologia da banda, mesmo que com uma ou outra mentira. É divertido pirraçar essa gente preconceituosa, convenhamos.

Atualização: Por que você deveria falar com estranhos? É uma boa forma de entender o significado da ideia de conceitos, pré-conceitos e juízos. O vídeo diz de forma muito mais didática coisas que eu tentei indicar aqui, sobretudo a função organizativa dos conceitos