Enquanto esperava as horas reservadas àqueles que dependem do transporte público em Salvador estive atento a minha volta. Uma atenção incomum, propiciada pelo clima ameno e pelo Arrah and the Ferns. Fixei-me em três garotos, de 5 a 8 anos, que brincavam em plena avenida Oceânica (em frente ao Hotel da Bahia). Brincavam com o que a rua lhes oferecia — galhos, folhas secas e sobretudo garrafas de plaśtico e latas que eles, cumprindo o protocolo infantil, arremessavam embaixo dos carros para ouvi-las estourar sob os pneus. Brincavam, contudo, displicentemente, com aquela arrogância inocente das crianças, entre os carros de uma avenida movimentadíssima. Arriscavam-se a tal ponto que fiquei incomodado e, desatento, perdi o ônibus. Cogitei oferecer-lhes dinheiro entre um e outro engodo, para que eles fossem brincar na rua onde moram e deixassem a avenida. Logo desisti. Além de possivelmente iniciá-los numa prática inadequada, imaginei que não tardariam a voltar logo que eu fosse embora. Fiquei ali contemplando, preocupado, o espetáculo da arriscada brincadeira das crianças sem dispôr de qualquer recurso. Até que eu meu ônibus chegou e eu parti, engolindo em seco um sentimento entre a impotência e a indiferença indispensável aos que querem chegar até uma idade mais avançada, não muito, sem perder a sanidade, assistindo constantemente espetáculos semelhantes.
Mas tudo bem, em qualquer caso eram crianças e se divertiam certamente.
Acomodado no ônibus voltei a me distrair com a música até que na Pituba ouvi o cobrador gritar “É a cigana!”, e correu até a frente do ônibus pra ajudar uma senhora de idade que entrava. O cobrador parecia acostumado com a figura, em tom de brincadeira lhe disse uma ou duas coisas, enquanto ela se punha de pé no espaço reservado aos cadeirantes. “Pode sentar, não paga”, ele falou. Em seguida entra um sujeito grande e se senta em uma das duas cadeiras que se interpunham entre mim e o mar — de bom humor, ou distraído, não lhe dirigi mentalmente os esconjuros habituais. Era uma figura curiosa, dessas que só se pode descrever evocando um desenho animado: um sujeito grande e forte, mas forte por sua própria natureza e não por outro meio, de seus 30 pra 40 anos, com o ar bonachão — e isso era o curioso. Ele parecia um sujeito bondoso, assim, aparentemente, e sua bondade de algum modo contrastava com seu vigor, como se os dois aspectos se anulassem. Tudo isso, reparem, observado num átimo, quase distraidamente, enquanto ouvia a Amy cantar. Por fim ouvi um vendedor de balas entrar e lançar as primeiras estrofes do mantra costumeiro — surpreendentemente, sem me incomodar. Logo o esqueci e só voltei de novo ao ônibus quando novamente ouvi o cobrador brincando com a senhora. Ele dizia “senta, senta, que a senhora já tá babando”, “não está dormindo? e esse olho fechado?”, falava numa entonação que geralmente me irrita, mas eu estava bem. O cobrador estava no meio do ônibus, sentado, conversando com uma garota e a senhora a sua frente, as piadas que ele fazia, as brincadeiras com a senhora, preenchiam todo o ônibus e sugeriam uma certa intimidade, dessas que produz o hábito. Logo os passageiros estavam olhando pra ela e todos assumiam aquele ar risonho de quem consente. Então eu olhei para o sujeito bonachão e vi minhas ponderações confirmadas, ela trazia um sorriso de aprovação, não mostrava os dentes, mas era um sorriso estranho, parecia estrangeiro mas era demasiadamente natural, deformava o rosto e acentuava o nariz daquela figura levemente curvada, talvez pelo peso do corpo, talvez por uma má postura adquirida. Eu me senti estranho ali, olhando aquele homem que por sua vez olhava pra cena quase que por reflexo, como resposta à voz alta do cobrador, e sorria um sorriso bondoso, de aprovação, de conivência, de felicidade sincera — sem se dar por isso. Estavam todos em estado semelhante, contaminados pelos gracejos e pelo humor, mas o sorriso do homem tinha algo incomum. Meus olhos vacilaram numa sensibilidade piegas e inconfessável — que eu confesso com certo orgulho. Não apenas pela alegria de um instante bobo e casual, mas porque ela é possível e talvez também pela tristeza de saber que há tantos homens cujos corações se fecharam, numa amargura inacessível, a essa humanidade que se renova em pequenos gestos, na disposição, na solicitude, na espirituosidade. Homens que cultivam o ranço como um animal doméstico, alimentam-no e não o abandonam sob nenhuma condição. Lembrei de uma passagem de Werther que há tempos quero postar aqui, ela encerra uma recomendação que se dirige a esses homens e que fala também sobre alegrias:
– Nós lamentamos com freqüência que haja tão poucos dias felizes e tantos dias infelizes; e isto, ao que me parece, é um erro. Se nosso coração estivesse sempre disposto a fruir, sem idéias preconcebidas, os bens que Deus nos dispensa cada dia, teríamos também força Para suportar os maus dias, quando Eles nos chegam.
A mulher do pastor interveio:
– Mas nós não somos donos da nossa disposição moral, que depende tanto da disposição do corpo! Quando a gente sofre, não se encontra bem em parte alguma.
Concordei e prossegui:
– Se é assim, consideremos o mau humor como uma doença e perguntemos se não há remédio para essa doença.
Carlota acrescentou:
– Muito bem! Creio, pelo menos, que a gente pode fazer muito a esse respeito. Sei por experiencia própria: quando alguma coisa me contraria e fico com vontade de aborrecer-me, ergo-me imediatamente e caminho de um lado para outro do jardim, cantando qualquer compasso de dança; e tudo passa logo.
Retomei a palavra:
– Pois é o que eu queria dizer; o mau humor é uma espécie de preguiça, absolutamente como a própria preguiça. Somos muito inclinados à preguiça; entretanto, basta que tenhamos coragem de fazer um grande esforço, o trabalho caminha logo facilmente e encontramos na ação um verdadeiro prazer.
Frederica ouvia atentamente. 0 rapaz objetou-me que a gente não se pode dominar, nem muito menos dirigir os próprios sentimentos. Aproveitei o momento para dizer-lhe:
– Trata-se de sentimentos desagradáveis, com certeza, dos quais qualquer pessoa pode facilmente desembaraçar-se, porque ninguém sabe até onde vão suas forças, uma vez que ainda não as submeteu à prova. Um enfânio que deseja ardentemente recuperar a saúde consulta todos os médicos, um após outro, não repudiando toda sorte de privações e as drogas mais intragáveis.
Notei que o circunspecto ancião tinha os ouvidos alerta para tomar parte na conversa; a Ele me dirigi diretamente, elevando o tom de voz:
– Prega-se contra tantos vícios e, no entanto, que eu saiba, nenhum pregador tomou como tema o mau humor.
– Isso é para os pregadores das cidades – respondeu-me Ele -, os campônios não conhecem o mau humor. Não obstante, isso pode ser útil neste momento, quando menos para dar uma lição à esposa do pastor e ao senhor bailio
Todos desataram a rir, e o pastor também riu com todas as forças, até ser acometido de um acesso de tosse, que interrompeu por algum tempo a nossa palestra. Em seguida, o rapaz tomou a palavra para dizer:
– Vocês acham que o mau humor é um vício; parece-me um tanto exagerado.
– Absolutamente – repliquei – pois é justo que se dê esse nome a uma coisa que nos torna nocivos a nós próprios e ao próximo. Não basta a impossibilidade de uma criatura ser feliz? E ainda é preciso estragar o prazer que outros podem achar em si mesmos? Apontei-me um homem que, estando de mau humor, tenha a coragem de ocultá-lo, de sofrer sozinho, sem perturbar a alegria dos que o cercam? Mas o mau humor não seria antes uma irritação íntima devida ao sentimento da nossa própria insuficiência, um descontentamento em relação a nos mesmos, ao qual se junta sempre a inveja espicaçando uma vaidade idiota? Quando vemos algumas pessoas felizes, sem que para isso tenhamos concorrido, essa felicidade nos é insuportável.
Nem com que emoção eu falava, Carlota olhou-me, sorriu. Uma lágrima que eu percebi nos olhos de Frederica animou-me a prosseguir:
– Infeliz daquele que usa do seu poder sobre um coração para abafar as ingênuas alegrias que nele nascem espontaneamente! Todas as dádivas, todas as gentilezas deste mundo não compensam um só dos instantes em que possamos ser felizes por nós mesmos, se esses instantes forem envenenados pelo despeito de um tirano ciumento.
Meu coração transbordou naquele momento, tantas eram as lembranças do passado que me oprimiam a alma, de sorte que as lágrimas me vieram aos olhos:
– Ali! se disséssemos a nós mesmos, cada dia: “Tu só podes fazer uma coisa àqueles a quem amas: deixar-lhes as alegrias que possuem e aumentar a sua felicidade participando dessas mesmas alegrias! Pudesses tu proporcionar uma só gota de bálsamo à alma torturada pela paixão, roída pela tristeza no mais íntimo de si mesma, quando a enfermidade sem esperança abater com os seus terrores aquela a quem minaste a vida ainda florescente; quando a vires exausta, os olhos sem brilho voltados para o céu, o suor da morte manando da sua fronte lívida; quando estiveres de pé diante desse leito, como um condenado, certo de que tudo quanto fizeres é inútil; quando, com o coração mordido pela angustia, quiseres tudo sacrificar para dar a essa criatura agonizante uma parcela de conforto, uma centelha de coragem!.
Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, Carta do dia 1 de julho