Paraísos perdidos

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Nas noites de verão os operários instalam-se na varanda. Em casa ele só tinha uma janelinha. Então, desciam-se as cadeiras, que eram colocadas diante da casa, e saboreava-se o anoitecer. […] Em certo nível de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas, no limite inferior da escala, o céu retoma todo o seu sentido: uma dádiva sem preço.

Alberto Camus, O avesso e o direito

Durante algum tempo morei em Belmonte, cidade ao sul, no interior da Bahia. Naquela época ocorriam blackouts constantes e a regularização tinha prazo médio de um ou dois dias. Foi diante desta recorrência que nasceu a cultura da falta de luz. É verdade que muitos habitantes tinham o hábito de sentar à frente de suas casas, na ausência de luz ou não, mas o estímulo externo tornava o ritual quase absoluto. Lembro que também na Ilha de Itaparica a noite era convidativa e estar diante de uma televisão, por exemplo, parecia um sacrilégio imperdoável. Sei que este é um costume comum nas cidades de interior, mas ler uma ficção do começo do século XX, costurada no interior da Argélia, relatando uma prática semelhante é um desafio que nos propõe uma reflexão sobre tal semelhança.

Rio Jequitinhonha, que banha Belmonte. Mais fotos da cidade aqui.

Imagino que entre o nosso estágio atual de evolução tecnológica, de acordo com o uso cotidiano que fazemos dela, e a descrição do hábito acima, exista uma diferença que não comporta um incisivo estabelecimento de valor como entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso ou adequado e o inadequado. Malgrado nosso atraso em relação às tecnologias de ponta, a vida nos centros urbanos está inscrita num lastro mínimo de desenvolvimento tecnológico que nos apresenta um cenário diverso para estabelecimento das relações com o mundo. A exigência e fiscalização da manutenção dos serviços elétricos, o fluxo constante de veículos nas vias urbanas, a pluralidade (ainda que mínima) das opções de lazer, a exigência de uma iluminação pública suficiente que garanta conforto e segurança, a multiplicidade dos meios de comunicação, são fatores que alteram significativamente a relação dos homens com o outro (alteridade) e com a natureza — com o mundo. A naturalização parece uma atitude comum em face da presença e progresso simultâneos de tais artifícios, que se confundem com a nossa própria história pessoal; contudo, basta que falte luz por apenas algumas horas e nos vemos de novo restituídos a um estágio preciso de nossa humanidade. Não é um estágio anterior ou posterior (visto que ele ainda é atual nas cidades interioranas), mas um momento particular no qual as complexas constituições tecnológicas que revestem nossa pele como uma roupa dão lugar a nudez, invariavelmente embaraçosa. Lembro de uma palestra do professor Sérgio Cortella na qual ele comentava o diálogo de uma mãe e seu filho após uma queda de energia:

— Mãe, o que faremos agora?
Atordoada a mãe responde — Vamos dormir, filho!

E o filósofo comentava em palavras semelhantes: “um espaço subjetivo, um universo inteiro de sonhos e projetos reduzidos ao pressuposto de uma condição tecnológica, anulados pela sua ausência”. Talvez seja este meu receio diante da emergência e fluxo dos dispositivos tecnológicos. Não se trata de um elogio ao retrocesso técnico, como já disse, não cabem valores universais nesta perspectiva, mas um temor quanto ao modo como se lida com o desenvolvimento.

Apreciar a noite é desfazer-se dos embaraços inaugurados por um fluxo externo a nossa vontade, é restituir, para aqueles que se veem enredados na dinâmica dos engenhos dos novos tempos, uma humanidade casta. As regras que orientam as relações comerciais, a produção tecnológica, os laços políticos, são regras próprias a nossa cultura e fundamentais ao atual momento histórico — não se trata, portanto, de separar as tecnologias da humanidade, como querem muitos. Todo produto da cultura humana é parte integrante de sua constituição — mas eu professo a necessidade de uma hierarquia de relações, não institucional, mas pessoal, capaz de estabelecer a primazia das regras de relações intersubjetivas (num plano ainda pré-político ou pré-institucional) sobre as regras que orientam as demais instâncias, a medida que avançamos nos estratos que compõe a constituição social do homem. Acredito que só esta hierarquia de valores é capaz de conservar a unidade do homem moderno, na polivalência das suas diversas atribuições, ao mesmo tempo que divisa nitidamente a distinção entre as leis que governam cada um dos seus aspectos constituintes — na anarquia de nossa disposição original.

Confesso que por vezes sinto uma angústia profunda (e a angústia, como observam alguns pensadores, é um sentimento do qual não se entrevê claramente a causa) diante da neurose em que me instalo na ânsia pelas notícias, comentários, perspectivas políticas de um sem número de eventos do mundo. Mal sinto meu corpo, tomado pela gravidade e concentração que me exigem os temas. Mas ainda tenho a capacidade de me sentir angustiado, de me sentir estrangeiro neste mundo tecnológico e político, apesar das preocupações humanas que pautam minhas leituras e neuroses. Trago ainda em mim estes paraísos perdidos, restabelecidos na memória, a tempo de me lembrar que eu não me confundo com os aparatos que manipulo, de dispensar a uma pessoa o carinho terno e puro de uma conversa despretensiosa, sob a noite que, em algum lugar, ainda prevalece sobre todas as coisas.

Quisera eu que todos pudesse ter a experiência dessa noite!

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