Viagens de ônibus e banhos de mar

É lugar-comum dizer que os europeus experimentam o clima e a natureza de uma maneira muito particular. E é natural que seja assim. Quando o sol sai, eles se esticam em qualquer lugar por onde se estendam seus raios e é verdadeiramente uma benção. Pensando nisso, esses dias lembrei o quanto nós mesmos às vezes não damos conta da nossa relação com o mundo natural. (Pra não deixar de falar de Wittgenstein, como convém, não posso esquecer quantas vezes ele afirmou que o é mais importante em geral escapa à nossa percepção justamente porque está diante dos nossos olhos o tempo inteiro). Há muito tempo eu fiz cursinho pré-vestibular num curso no Relógio de São Pedro. E à noite. As aulas terminavam mais de 22h e eu tinha que ir à estação da Lapa pra voltar pra casa. Não raras vezes o ônibus demorava mais de uma hora pra chegar. Não havia smartphones, apenas as baratas e ratos da estação da Lapa e eventualmente algum providencial livro emprestado na biblioteca. De resto, sobravam somente o tédio e a monotonia com as quais qualquer passageiro de ônibus de Salvador estava acostumado. Mas não era só isso. A verdade é que apesar dessa espera rotineira, cansativa e da qual naturalmente eu me queixava, havia algo mais. Algo que, depois de tanto tempo, eu posso dizer: foi o que ficou. Vir da Lapa até a Boca do Rio, de noite, numa Salvador anterior à lamentável explosão de crescimento dos carros (pré-2007) era uma experiência diária de prazer e deslumbramento. O ônibus descia a Avenida Centenário e a partir do Shopping Barra vinha todo o percurso pela orla. Não havia engarrafamentos, nem muitos passageiros. Não apenas porque eram bons e saudosos tempos, mas também pelo horário. Às vezes circulávamos pra lá das 23h. Eu elegia o melhor assento — na janela, claro — e passava a viagem inteira sendo bombardeado pela brisa da orla acelerada pelo movimento do ônibus. Eu lhes digo isso como alguém que sabe, hoje, mais do que nunca, o prazer que pode ser fruir de uma simples nesga de sol. E eram assim todos os dias. O aburrimiento (como dizem os espanhóis: me veio na cabeça assim e eu deixo assim) das aulas, o cansaço da espera e do dia eram simplesmente apagados por aquele cheiro do mar que invadia meu peito com a violência do vento que corria forte, porque o motorista andava rápido pelas ruas vazias. O vento não era frio, tampouco era quente. Nenhuma das duas palavras encaixa. Ele era apenas agradável, reconfortante e tranquilizador. Sabe-se lá quantos pensamentos loucos passaram na minha cabeça nesse trajeto. Quantos planos, quantas ideias e aspirações. O caso é que ali, sentado na janela do ônibus que vinha até a Boca do Rio eu me perdia em pensamentos embalado deliciosamente por aquela temperatura agradável e por aquele vento quase familiar.

Pensando nisso eu lembrei também de algo similar. Da nossa (ou da minha, se for o caso) relação com o mar. Bem, a universalidade das nossas pretensões (políticas, sociais, racionais) muito frequentemente apaga a constelação de diferenças que existem mesmo entre pessoas imensamente afins. Digo isso porque a nossa relação com a natureza marca um universo inteiro de experiências e relações que muita gente em outras partes do mundo não conhece ou não entende. Eu mesmo, durante bons anos (vá lá, talvez meses, a essa altura nada é preciso na minha memória), tive o costume de ir andar ou correr na praia. Ora pela manhã ou início da tarde, ora pela noite. E lembro que, às vezes, quando o dia estava muito quente, andar, correr ou se exercitar na praia e em seguida tomar um banho no mar era uma experiência ressignificadora. Eu lhes digo: eu me sentia outra pessoa, com outra disposição. É claro que o sol é a fonte principal de vitamina D — e a ausência dela no organismo pode causar indisposição até psicológica, mas não se trata de encontrar explicações. O fato é que aquele banho que cortava um calor forte, mas perfeitamente suportável quando se gozava do privilégio de estar perto do mar e poder frequentá-lo me tornava outra pessoa. Do mesmo modo eu me sentia quando, anos depois, morando já no Garcia, nós íamos ao final da tarde tomar banho na água quente no Porto da Barra. A água quente, o sol se pondo — eu até escrevi sobre o melhor evento que eu já presenciei em Salvador, lá no Porto, o Espicha Verão — são elementos e testemunhas de que a natureza, para quem não se fecha nos artifícios do concreto, tem papel formativo na cabeça das pessoas. Ainda que só hoje eu possa dizer, reconhecer e expressar a dimensão dessas experiências em minha vida, dar-lhes o tamanho devido, já então elas tinham intuitivamente toda a importância que agora eu comunico. As viagens de ônibus e os banhos de mar me ensinaram mais do que a maioria dos livros que eu tive que ler. É incrível a quantidade de coisas que a gente pode aprender longe das fontes oficiais de aprendizado, quando estamos prestando atenção.

PS. Escrevi pelo menos mais dois outros posts sobre viagens de ônibus. Um perfeitamente legível e até recomendável, e outro que pode ser lido depois de um esforço para superar os primeiros parágrafos, mas que talvez tenha suas compensações.

Fabricando olhares

É comum pensar, quando algo nos comove, que estamos sendo afetados diretamente. Como se as impressões acessassem nosso espírito sem intermediários. Por outro lado se consideramos os pensamentos, a atividade intelectual, julgamos executar uma operação, exercer uma atividade que não é nada mais do que uma elaboração do material acumulado pelos sentidos e armazenado na memória. Curioso como o modo mais comum de encarar o funcionamento dos sentidos ou mesmo da atividade intelectual é vivamente marcado por uma forte tradição filosófica. Talvez fosse conveniente dissolver as categorias razão e sensibilidade (para usar o binomio clássico eternizado também pela literatura), contudo, penso que pode haver algo de produtivo em manter as coisas assim a fim de mostrar que, mesmo com esse esquema, as coisas podem correr de maneira diferente (e efetivamente correram, na história da filosofia).

Essa ruptura radical entre razão e sensibilidade* alimenta a antiga ideia segundo a qual tudo que é racional é meramente mecânico, e como se as operações e atividades intelectuais fossem uma espécie de corrupção do sentido original da impressão. Tudo que a racionalidade pode fazer é manipular a matéria das impressões armazenada na memória, já esmaecidas, destituída do brilho singular que a distinguia. Razão é cálculo, frio e sem espírito. A sensibilidade, por sua vez, na medida em que é pura, é intensa. Têm a força das coisas indomadas, incontidas. A sensibilidade é a matriz do conteúdo manipulado pela razão, mas o sentido dessa sensibilidade pura é maior antes de ser condicionado nas categorias racionais.

A oposição da racionalidade categorizante, opressora porque ansiosa por domesticar os impulsos sensíveis, à sensibilidade originária, mãe generosa de todas as impressões, rica, selvagem e incontrolada, é o manancial infindável da literatura, da poesia — e mesmo da filosofia. Tantos foram os poetas que denunciaram o estreitamento promovido pela linguagem ((o Orkut ficaria algo mais autêntico se os depoimentos ali não pudessem se servir da antiga premissa que sugere que as palavras nunca podem ser fiéis aos sentimentos, manifestação clara de uma espécie de consequência dessa ruptura)). Clarice Lispector foi maestra na arte de levar essa ideia às bordas da criação: A paixão segundo G.H. narra a deposição dos limites de um identidade lógica, gramatical, psicológica, como se postas abaixo as fronteiras da individualidade, o que restasse fosse uma unidade absoluta com o todo, capaz de nos fazer coexistir e experimentar mesmo o mais repulsivo. Essa unidade é uma forma radical de “negação” do fracionamento racional, um retorno à imensidão do sentido pré-condicionamento intelectual, à vivência do absoluto — o mar é a imagem que Clarice usa para simbolizar esse absoluto.

Há algo de injusto no tratamento dispensado à razão. As fronteiras não são assim tão nítidas. Razão e sensibilidade se confundem no instante da elaboração do olhar. Esse tema, a propósito, ocorreu quando recordei um par de epifanias tolas que ilustram esse entrelaçamento. Bem, deixem então que eu conte uma delas. É bobagem, adianto, mas eu gosto de flagrar não a descoberta da beleza, mas a sua invenção. Ainda que talvez o significado — ou a própria identididade daquilo que considero belo só possa receber a chancela dos meus proprios valores e dos de ninguém mais.

Certa feita eu entrei num ônibus e assim que passei a catraca** constatei com pesar que quase todas as janelas estavam ocupadas. Inconscientemente, demorei um pouco mais observando o modo como cada uma das pessoas se ocupava com o recorte da paisagem emoldurado pela janela. Cada uma delas tinha o seu próprio mundo. Mas isso ainda não era significativo para mim. O que havia apenas era a constatação factual de que as pessoas estavam ocupando as janelas do ônibus, de costas umas para as outras. Sentei perto da catraca, na cadeira do corredor. Pouco depois entrou uma mãe com uma criança e sentou na quarta ou quinta fileira do ônibus. A criança descobria que podia gritar, brincava, parecia divertido. Mas era de tal modo divertido vê-la brincar, balbuciar sons inarticulados, berrar, que as pessoas antes ocupadas de suas vidas e de suas paisagens particulares, passaram a olhar para ela. De repente então eu me dei conta do cenário: a criança havia conseguido fazer confluir o que antes era disperso. Mais do que isso, no rosto de cada um dos passageiros havia um sorriso bobo de complacência, desses que a gente dirige às crianças como se dissesse: “eu entendo”. E eu ali atrás com o mesmo sorriso bobo e com os olhos marejados de um certo orgulho infantil, não por ter descoberto aquela cena, mas por tê-la fabricado. Talvez outra pessoa, por desatenção ou qualquer outro motivo, não tivesse pensado o mesmo. Mas eu estava ali testemunhando a espessura da dispersão que agora eu simbolizava — mobilizando todos os clichês da crítica à sociedade moderna — como a insensibilidade, o atomismo e a individualidade dos nossos tempos ser vencida pela leveza dos caprichos e brincadeiras de uma criança. E isso guardava para mim, e talvez só pra mim, uma beleza sem nome.

Essa é uma das razões por que eu pensei que talvez nós não precisássemos conservar esse distanciamento das coisas racionais, imputando a elas uma frieza própria do que não tem sentimento. O sentimento mesmo já se confunde com um certo modo de olhar — ainda que um olhar que busque o infinito, o absoluto — como um recorte e uma organização racional, sim!, por que não? O trabalho do artista talvez seja o de um organizador empenhado em construir novas figuras a partir de unidades com as quais nós só conseguimos formar as mesmas imagens puídas e cansadas. Talvez, então, se pudermos pensar assim a razão, possamos encontrar algo mais libertador do o retorno ao absoluto pré-condicionamento categórico da razão, possamos encontrar a promessa da beleza nesse esforço, acessível a todos, de buscar sempre um novo olhar que revele, não a essência das coisas, mas algo que nós queremos ver, algo de nós mesmos, não encrustado, mas projetado sobre elas, sobre o mundo.

* Toda vez que eu uso conceitos filosóficos assim tão levianamente meu supergo filosófico açoita com sofreguidão as costas do meu ego.

** Catraca = Borbuleta (dicionário de baianês)

Causo cotidiano

Enquanto esperava as horas reservadas àqueles que dependem do transporte público em Salvador estive atento a minha volta. Uma atenção incomum, propiciada pelo clima ameno e pelo Arrah and the Ferns. Fixei-me em três garotos, de 5 a 8 anos, que brincavam em plena avenida Oceânica (em frente ao Hotel da Bahia). Brincavam com o que a rua lhes oferecia — galhos, folhas secas e sobretudo garrafas de plaśtico e latas que eles, cumprindo o protocolo infantil, arremessavam embaixo dos carros para ouvi-las estourar sob os pneus. Brincavam, contudo, displicentemente, com aquela arrogância inocente das crianças, entre os carros de uma avenida movimentadíssima. Arriscavam-se a tal ponto que fiquei incomodado e, desatento, perdi o ônibus. Cogitei oferecer-lhes dinheiro entre um e outro engodo, para que eles fossem brincar na rua onde moram e deixassem a avenida. Logo desisti. Além de possivelmente iniciá-los numa prática inadequada, imaginei que não tardariam a voltar logo que eu fosse embora. Fiquei ali contemplando, preocupado, o espetáculo da arriscada brincadeira das crianças sem dispôr de qualquer recurso. Até que eu meu ônibus chegou e eu parti, engolindo em seco um sentimento entre a impotência e a indiferença indispensável aos que querem chegar até uma idade mais avançada, não muito, sem perder a sanidade, assistindo constantemente espetáculos semelhantes.

Mas tudo bem, em qualquer caso eram crianças e se divertiam certamente.

Acomodado no ônibus voltei a me distrair com a música até que na Pituba ouvi o cobrador gritar “É a cigana!”, e correu até a frente do ônibus pra ajudar uma senhora de idade que entrava. O cobrador parecia acostumado com a figura, em tom de brincadeira lhe disse uma ou duas coisas, enquanto ela se punha de pé no espaço reservado aos cadeirantes. “Pode sentar, não paga”, ele falou. Em seguida entra um sujeito grande e se senta em uma das duas cadeiras que se interpunham entre mim e o mar — de bom humor, ou distraído, não lhe dirigi mentalmente os esconjuros habituais. Era uma figura curiosa, dessas que só se pode descrever evocando um desenho animado: um sujeito grande e forte, mas forte por sua própria natureza e não por outro meio, de seus 30 pra 40 anos, com o ar bonachão — e isso era o curioso. Ele parecia um sujeito bondoso, assim, aparentemente, e sua bondade de algum modo contrastava com seu vigor, como se os dois aspectos se anulassem. Tudo isso, reparem, observado num átimo, quase distraidamente, enquanto ouvia a Amy cantar. Por fim ouvi um vendedor de balas entrar e lançar as primeiras estrofes do mantra costumeiro — surpreendentemente, sem me incomodar. Logo o esqueci e só voltei de novo ao ônibus quando novamente ouvi o cobrador brincando com a senhora. Ele dizia “senta, senta, que a senhora já tá babando”, “não está dormindo? e esse olho fechado?”, falava numa entonação que geralmente me irrita, mas eu estava bem. O cobrador estava no meio do ônibus, sentado, conversando com uma garota e a senhora a sua frente, as piadas que ele fazia, as brincadeiras com a senhora, preenchiam todo o ônibus e sugeriam uma certa intimidade, dessas que produz o hábito. Logo os passageiros estavam olhando pra ela e todos assumiam aquele ar risonho de quem consente. Então eu olhei para o sujeito bonachão e vi minhas ponderações confirmadas, ela trazia um sorriso de aprovação, não mostrava os dentes, mas era um sorriso estranho, parecia estrangeiro mas era demasiadamente natural, deformava o rosto e acentuava o nariz daquela figura levemente curvada, talvez pelo peso do corpo, talvez por uma má postura adquirida. Eu me senti estranho ali, olhando aquele homem que por sua vez olhava pra cena quase que por reflexo, como resposta à voz alta do cobrador, e sorria um sorriso bondoso, de aprovação, de conivência, de felicidade sincera — sem se dar por isso. Estavam todos em estado semelhante, contaminados pelos gracejos e pelo humor, mas o sorriso do homem tinha algo incomum. Meus olhos vacilaram numa sensibilidade piegas e inconfessável — que eu confesso com certo orgulho. Não apenas pela alegria de um instante bobo e casual, mas porque ela é possível e talvez também pela tristeza de saber que há tantos homens cujos corações se fecharam, numa amargura inacessível, a essa humanidade que se renova em pequenos gestos, na disposição, na solicitude, na espirituosidade. Homens que cultivam o ranço como um animal doméstico, alimentam-no e não o abandonam sob nenhuma condição. Lembrei de uma passagem de Werther que há tempos quero postar aqui, ela encerra uma recomendação que se dirige a esses homens e que fala também sobre alegrias:

– Nós lamentamos com freqüência que haja tão poucos dias felizes e tantos dias infelizes; e isto, ao que me parece, é um erro. Se nosso coração estivesse sempre disposto a fruir, sem idéias preconcebidas, os bens que Deus nos dispensa cada dia, teríamos também força Para suportar os maus dias, quando Eles nos chegam.

A mulher do pastor interveio:

– Mas nós não somos donos da nossa disposição moral, que depende tanto da disposição do corpo! Quando a gente sofre, não se encontra bem em parte alguma.

Concordei e prossegui:

– Se é assim, consideremos o mau humor como uma doença e perguntemos se não há remédio para essa doença.

Carlota acrescentou:

– Muito bem! Creio, pelo menos, que a gente pode fazer muito a esse respeito. Sei por experiencia própria: quando alguma coisa me contraria e fico com vontade de aborrecer-me, ergo-me imediatamente e caminho de um lado para outro do jardim, cantando qualquer compasso de dança; e tudo passa logo.

Retomei a palavra:

– Pois é o que eu queria dizer; o mau humor é uma espécie de preguiça, absolutamente como a própria preguiça. Somos muito inclinados à preguiça; entretanto, basta que tenhamos coragem de fazer um grande esforço, o trabalho caminha logo facilmente e encontramos na ação um verdadeiro prazer.

Frederica ouvia atentamente. 0 rapaz objetou-me que a gente não se pode dominar, nem muito menos dirigir os próprios sentimentos. Aproveitei o momento para dizer-lhe:

– Trata-se de sentimentos desagradáveis, com certeza, dos quais qualquer pessoa pode facilmente desembaraçar-se, porque ninguém sabe até onde vão suas forças, uma vez que ainda não as submeteu à prova. Um enfânio que deseja ardentemente recuperar a saúde consulta todos os médicos, um após outro, não repudiando toda sorte de privações e as drogas mais intragáveis.

Notei que o circunspecto ancião tinha os ouvidos alerta para tomar parte na conversa; a Ele me dirigi diretamente, elevando o tom de voz:

– Prega-se contra tantos vícios e, no entanto, que eu saiba, nenhum pregador tomou como tema o mau humor.

– Isso é para os pregadores das cidades – respondeu-me Ele -, os campônios não conhecem o mau humor. Não obstante, isso pode ser útil neste momento, quando menos para dar uma lição à esposa do pastor e ao senhor bailio

Todos desataram a rir, e o pastor também riu com todas as forças, até ser acometido de um acesso de tosse, que interrompeu por algum tempo a nossa palestra. Em seguida, o rapaz tomou a palavra para dizer:

– Vocês acham que o mau humor é um vício; parece-me um tanto exagerado.

– Absolutamente – repliquei – pois é justo que se dê esse nome a uma coisa que nos torna nocivos a nós próprios e ao próximo. Não basta a impossibilidade de uma criatura ser feliz? E ainda é preciso estragar o prazer que outros podem achar em si mesmos? Apontei-me um homem que, estando de mau humor, tenha a coragem de ocultá-lo, de sofrer sozinho, sem perturbar a alegria dos que o cercam? Mas o mau humor não seria antes uma irritação íntima devida ao sentimento da nossa própria insuficiência, um descontentamento em relação a nos mesmos, ao qual se junta sempre a inveja espicaçando uma vaidade idiota? Quando vemos algumas pessoas felizes, sem que para isso tenhamos concorrido, essa felicidade nos é insuportável.

Nem com que emoção eu falava, Carlota olhou-me, sorriu. Uma lágrima que eu percebi nos olhos de Frederica animou-me a prosseguir:

– Infeliz daquele que usa do seu poder sobre um coração para abafar as ingênuas alegrias que nele nascem espontaneamente! Todas as dádivas, todas as gentilezas deste mundo não compensam um só dos instantes em que possamos ser felizes por nós mesmos, se esses instantes forem envenenados pelo despeito de um tirano ciumento.

Meu coração transbordou naquele momento, tantas eram as lembranças do passado que me oprimiam a alma, de sorte que as lágrimas me vieram aos olhos:

– Ali! se disséssemos a nós mesmos, cada dia: “Tu só podes fazer uma coisa àqueles a quem amas: deixar-lhes as alegrias que possuem e aumentar a sua felicidade participando dessas mesmas alegrias! Pudesses tu proporcionar uma só gota de bálsamo à alma torturada pela paixão, roída pela tristeza no mais íntimo de si mesma, quando a enfermidade sem esperança abater com os seus terrores aquela a quem minaste a vida ainda florescente; quando a vires exausta, os olhos sem brilho voltados para o céu, o suor da morte manando da sua fronte lívida; quando estiveres de pé diante desse leito, como um condenado, certo de que tudo quanto fizeres é inútil; quando, com o coração mordido pela angustia, quiseres tudo sacrificar para dar a essa criatura agonizante uma parcela de conforto, uma centelha de coragem!.

Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, Carta do dia 1 de julho