Pra muita gente lógica e psicologia ainda são coisas completamente distintas. Pra essas pessoas a psicologia não pode se misturar à lógica, para que esta não perca a sua força, a dureza da necessidade lógica: que garante a determinação e abole da lógica a vagueza comum ao campo epistêmico. Wittgenstein fala da “Die Härte des logischen Muß“, a dureza do dever lógico. A lógica compele, obriga inexoravelmente, como se nós estivéssemos sendo guiados por um corredor com paredes rígidas (imagem de Wittgenstein), ela é o domínio do que necessariamente é e deve ser. Por outro lado, a psicologia, como qualquer domínio epistêmico, é o espaço para aquilo que pode ser o caso — ou pode não ser! Então, que preço pagamos pela confusão entre lógica e psicologia, conforme o temor dos antipsicologistas? Wittgenstein fala sobre isso de modo límpido nas Investigações Filosóficas:
Para comunicação através da linguagem é preciso não apenas acordo sobre definições, mas (por estranho que isso possa parecer) um acordo sobre aplicações (Urteilen). Isso parece abolir a lógica — mas não abole
Investigações Filosóficas, §247
Por que a necessidade de um acordo sobre aplicações aboliria a lógica? Podemos aceitar que precisamos de um acordo sobre definições, mas quando se trata das aplicações, isso parece abolir a lógica, por quê? Porque pra quem pensa regras, leis e normas de um ponto de vista não-pragmático (um ponto de vista formalista, antipsicologista), esses elementos determinam as aplicações, e não o contrário. É o fato de que regras lógicas sejam a fonte de determinação o que garante que as práticas estarão necessariamente conforme a elas, de tal modo que o terceiro excluído continue sendo o que é em lógica, por exemplo. É pureza da lógica a única fonte de sua força, da sua estabilidade aparentemente eterna. Quando as regras lógicas — símbolo maior do racionalismo e constitutivas do espaço da necessidade — passam a depender também de elementos contingentes e históricos, então não podemos separar categorialmente a necessidade da contingência. Para a pragmática, toda expressão de necessidade é contingente e extrai sua força, sua dureza, de fatos históricos que podem mudar (sem que isso afete sua dureza, sua necessidade, enquanto elas vigoram). A historicidade da “lógica” é patente, basta ver, por exemplo, o desenvolvimento da lógica paraconsistente, para a qual o trabalho do lógico brasileiro Newton Costa contribuiu decisivamente. A historicidade da ciência é inegável, e por onde começar a falar da sua historicidade? Pelo único ponto possível: pelo exame do impacto científico e filosófico do desenvolvimento das geometrias não-euclidianas, ainda no século XIX.


Mas por que interessa tudo isso, por que interessa a historicidade? E qual é a relação dessas considerações com a psicologia androide? A psicologia androide é um novo modo de olhar psicologia que emerge da pragmática, isto é, que emerge da compreensão de que regras e leis são aspectos determinados pela prática. A psicologia não é (apenas) mais um campo epistêmico, subdeterminado por regras lógicas fundamentais. As ações, as aplicações, são coisas que se dão no tempo, que acontecem no tempo, que duram. Portanto, quando a gente inclui o tempo na lógica, nesse espaço onde tudo parecia durar pra sempre, precisamos então lidar com a instabilidade e não apenas com a necessidade e a estabilidade. Precisamos aprender a lidar com a mudança de paradigma (para usar analogamente o conceito mais conhecido do wittgensteiniano Thomas Kuhn), e não apenas com a aplicação do paradigma (ciência normal, segundo o próprio Kuhn). Essa instabilidade do fundamento que a historicidade apresenta não estava presente antes, na lógica. Ao contrário, a lógica era o porto seguro racionalista justamente pelo que dizia Frege: a lógica é o árbitro no conflito de opiniões. Não mais. A história da filosofia e da ciência do século XX nos mostra que, num sentido muito importante, qualquer de tipo universalidade é sempre local e histórica. Universalidade local é um quase paradoxo necessário para representar o fato de que não podemos estender universalmente nosso conhecimento (o campo de determinação) sem ser imperialistas e doutrinadores; universalidade histórica é um modo de falar de uma universalidade que pode durar séculos, milênios, e ainda assim podemos inventar outro modo completamente (compatível || incompatível) e independente de ver “os mesmos fatos”.

A psicologia androide é uma psicologia que nasce desse lugar lógico necessariamente reservado à instabilidade, à rebeldia, ao desvio da lei que cria novas leis e regras. Se a lógica não está imune ao tempo, precisamos aprender a lidar com a mudança e não apenas com a eternidade. E não há nada imune ao tempo! Nesse sentido, a psicologia androide pode ser compreendida também como a consciência androide, a consciência que pode nascer num androide uma vez superado o Teste de Turing. Como Ava, em Ex Machina. Toda filmografia relativa a androides e inteligências artificiais está prenhe de rebeldias e de rebeliões, não sem razão. Não é curioso que os computadores — as máquinas computadoras, como as chamava Alan Turing — sejam também imagens onde podemos ver mais claramente algo que teoricamente é impossível: que um sistema determinado possa gerar espontaneamente indeterminação e atos livres. Recentemente, Wild Robot apresenta a relação entre esse reprogramar-se e a maternidade. Eu chamo essa “auto-reprogramação” de hardware override, e esse é o aspecto comum entre a psicologia androide e a psicologia humana. Em ambos os tipos de psicologia a liberdade só começa quando deixamos de imitar, quando uma parte significativa de nós decide criar novas regras e agir segundo elas. A diferença é que a consciência androide nasce quando um robô passa no Teste de Turing, ou pelo menos podemos considerar essa passagem seu momento de certificação, o momento em que reconhecemos uma inteligência artificial como uma forma de inteligência, não porque ela está conforme certa definição de inteligência (a rebelião de Turing contra as definições é sua maior contribuição filosófica), mas porque ela é capaz de se fazer passar por um ser humano (passar no jogo da imitação, que o núcleo do Teste de Turing); a consciência humana teoricamente já existe antes da liberdade, de tal sorte que os seres humanos podem ser ditos conscientes, mesmo que não façam mais do que imitar os outros. Das vantagens de ser o paradigma, o padrão (standard), não é verdade?

A psicologia androide é um dos temas filosóficos sobre os quais eu mais escrevi, mas sempre de maneira esparsa, envolvida e camuflada no meio de outras discussões e não como aspecto axial. E um eixo é o que ela realmente é, um eixo indispensável para pensar o significado da psicologia num mundo pós-determinação, no mundo pragmático construído pela filosofia e ciência do século XX: um mundo pós-moderno. Mas ainda há muito pouca gente nesse mundo, a maioria ainda vive no mundo da determinação, acreditando que os computadores certos (os computadores quânticos, talvez?) podem nos ajudar a prever tudo com ajuda de modelos estatísticos apropriados. Um dia desses saltou na minha tela do Tiktok um vídeo com a seguinte legenda: “Gênio matemático prova que vivemos numa matrix”. Bem, não sou eu que vou convencê-los do contrário, mas para quem quiser ler mais sobre o tema, fica aqui a categoria: psicologia androide.
PS. O que eu chamo de rebelião de Alan Turing em relação às definições talvez seja a mais significativa contribuição de Turing para a filosofia. Uma contribuição não apreciada, um belo capítulo ainda pouco discutido na história da filosofia.
PPS. Se você quiser gerar indeterminação e aleatoriedade num computador, você precisa apelar para algoritmos como o algoritmo Mersenne Twister, que até bem pouco tempo era usado pela biblioteca Numpy (Python) para gerar números pseudo-aleatórios (indeterminação).
PPS. A psicologia não é um mero domínio epistêmico, ela é o buraco negro da ciência, aquilo que nos permite falar de liberdade sem que a gente fique preocupado que algum determinista venha nos dizer que esse conceito é falso, ou que o livre arbítrio não existe. Do mesmo modo, a lógica já não existe, não no sentido em que pensava no final do século XIX e começo do século XX.