O conhecimento verdadeiro ignora os valores, mas, para fundá-lo, é preciso um julgamento, ou melhor, um axioma de valor.
Jacques Monod, O acaso e a necessidade
Um dos legados mais impactantes do pensamento de Wittgenstein é sem dúvida a distinção entre fato e valor, ou melhor, a irredutibilidade do valor ao fato. É certo que o pensamento de Wittgenstein muda e que, no segundo Wittgenstein, os conceitos de fato e de valor não têm uma importância marcante, não são tão centrais quanto no Tractatus Logico-Philosophicus; é certo também que Hillary Putnam tentou armar uma gambiarra para corrigir esse problema, com toda a elegância e inteligência que marcam seu pensamento, mas sem sucesso; por fim, é bem possível que a essa altura do campeonato já existam meia dúzia de filósofos revolucionários que não apenas superaram o problema de Wittgenstein, mas que construíram toda uma filosofia que se estabelece a partir disso, com décadas de intenso debate universitário, artigos e livros publicados, toda uma extensa literatura estabelecida após a superação dessa aparente dificuldade que era a irredutibilidade do valor ao fato.
Eu sei pouco dos rumos que a filosofia universitária tem tomado, embora goste de muita coisa dentro dela, mas duvido que exista uma resposta à irredutibilidade de que fala Wittgenstein. Essa irredutibilidade é um ponto insuperável de uma filosofia superada, e que esse ponto se conserve com firmeza, a despeito do colapso de grande parte à sua volta, mostra o quanto estamos longe de ter uma atitude reflexiva a respeito da ciência. — O que quer dizer e o que implica a irredutibilidade do valor ao fato? A mais forte implicação é a seguinte: o conhecimento não pode determinar o que devemos fazer. Entendo determinar naquele sentido demolido pela segunda fase do pensamento de Wittgenstein, como se o conhecimento pudesse em certo sentido ditar e constranger o que devemos fazer, como devemos agir, o que devemos querer — todo o reino da ação está não apenas inseparavelmente ligada a interesses, mas é determinado por valores. (O que fazemos && o que devemos fazer) está amarrado aos valores. Toda ação mostra os valores que a mobilizam, não é como se o conhecimento pudesse vir depois e restabelecer o que devemos fazer. Essa separação radical entre conhecimento e ética nos lembra o lugar da arbitrariedade, isto é, daquilo que está além da pretensão de determinar, do que não pode ser determinado, daquilo que é emergente e vêm com a inteligência. É difícil aceitar o lugar da instabilidade, da rebeldia, da radicalidade, do acaso, de tudo que ameaça uma estabilidade e ordem (previsível) que buscamos como se nossa vida dependesse disso. Bem, mas assim o tema se encaminha a outros temas igualmente complexos, e é melhor deixar essa conversa para outra ocasião.
(Essa discussão é também uma forma de apresentar o velho dilema da filosofia, a relação entre teoria e prática; como aquilo que estabelecemos em teorias que se pretendem verdadeiras se relaciona com nossas ações, com aquilo que fazemos e com a determinação dos fins das ações humanas e com o que fazer?)
Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.
Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus. 7
Como fica a relação entre fato e valor no segundo Wittgenstein, no pensamento que se seguiu ao Tractatus? Ali, fato já não é mais uma peça realista, como no realismo lógico do Tractatus*, não é mais aquela estrutura mínima que arma tudo e na qual está dada a substância do mundo. Fato pro segundo Wittgenstein já está livre de pretensões fundacionais, então já não pode mais cumprir o papel que cumpre numa filosofia preocupada em falar sobre as coisas que tem sentido dizer e num pensamento que acredita que a única função da linguagem é figurar fatos. Tudo que não fosse figuração de fatos era sem sentido no Tractatus, era a pretensão compreensível, mas vã de falar de coisas sobre as quais não deveríamos falar. Sobre aquelas coisas que nós realmente podemos falar, o mundo nos fatos, nós podemos falar claramente, sobre o resto, como o mundo dos valores — o mundo mais importante, Wittgenstein nos lembra incansavelmente — estaríamos condenados a balbuciar e berrar coisas sem sentido, como uma mosca que arremete contra o vidro, tentando escapar de uma garrafa fechada. Sobre o valor, sobre o que importa — e acredite!, o que importa não são os fatos — nós estaríamos condenados a calar, ao silêncio, se entendêssemos que não poderíamos falar sobre elas, porque elas não são fatos. Tudo que não é fato carece de sentido no mundo onde a única função da linguagem é representar fatos, tudo que não é fato carece de sentido no mundo onde tudo que tem sentido tem uma relação fundamental com o verdadeiro, sobre todas as coisas que não são fato nós faríamos melhor se simplesmente não falássemos sobre elas, já que não podemos tratá-las objetivamente — é um dever ético o que se enuncia no final do Tractatus, a ponte para o segundo livro, o mais importante, aquele que nunca foi escrito. Essa talvez seja a mais breve impossível explicação para o aforismo 7 do Tractatus Logico-Philosophicus.
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.
Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 6.52
No pensamento do segundo Wittgenstein o fato já é um artefato relativista, sua correspondência aos nossos conceitos não os justifica, apenas testemunha que nossos conceitos — mesmo os mais gerais, como o de lógica, ou o conceito de regra, lei e norma — estão inseparável e irremediavelmente presos ao tempo, a uma experiência (não pura), e que eles não podem ser formalizados e pois são históricos, estando, portanto, sujeitos à vicissitude como tudo o mais.
O cientificismo é o dogma que organiza a sociedade porque, conscientemente, nos seduz a possibilidade de controle instrumental sobre o mundo, e mesmo os excluídos dos prazeres e confortos do mundo desenvolvido sonham ingenuamente em desfrutar desses privilégios. Inconscientemente, leigos e cientistas supõem igualmente que o conhecimento nos dirá o que fazer porque creem que é assim e sempre tem sido. É verdade que o mundo produtivo, dirigido por políticas econômicas que têm a ciência como braço direito, se orienta por aspectos técnicos, especialmente num mundo ligado à (e dependente da) inovação tecnológica, mas isso não significa senão que a ciência estrutura os marcos tecnológicos e produtivos, não que estipula o que devemos desejar e fazer. A ingenuidade do cientistas — que é especialmente desconcertante, se comparada à dos leigos — se deve à que a ciência já não tenha nenhum vínculo com a filosofia, entendida como signo de um compromisso histórico com a reflexão, compromisso que tem um componente de instabilidade inaceitável para pessoas que alimentam sonhos de abarcar a totalidade e estabelecer determinações absolutas. O efeito cascata criado por este estado de coisas é o seguinte: uma ciência de complexidade crescente, profundamente técnica e inacessível senão às poucas autoridades de um certo campo (nem mesmo campos de pesquisa adjacentes podem contemplar inteiramente o que concerne a um campo específico, dada a complexidade que tem se armado), é respaldada por leigos que pensam que seu dever é apoiar cegamente coisas que não entendem, sob pena de seres confundido com negacionistas. A batalha do bem contra o mal reeditada em outro campo. Uma ciência inquestionada e inquestionável, cega, é instrumento dócil de um complexo sistema político que a subordina a interesses que ela não compreende porque não fazem parte do seu quadro técnico de questões e problemas (daí o lugar dos puzzle solvers) e que, portanto, ela só pode aceitar sem examinar.
A impossibilidade de fundar o valor no fato nos constrange uma vez mais a voltar à política, à dialética (nos lembrará Gérard Lebrun desconfiado), à necessidade de estabelecer mediações e, sobretudo, de aceitar o caráter convencional (na falta de melhor palavra) das nossas construções, e abdicar das ilusões de determinação ainda predominantes no tempo da Tecnosfera e da Tecnocracia.
* Se existe um realismo no Tractatus, não é um realismo de fatos, mas das coisas. Os fatos já estão no nível das contingências, das complexidades articuladas, do que pode ou não ser o caso. As coisas, por outro lado, são a substância do mundo, fixa, imutável e simples.