Não há quem possa negar a capacidade mobilizadora do ódio, especialmente na triste circunstância em que nos encontramos, cercados por bolsonaristas. No entanto, mesmo entre soi-disant cristãos, falar de amor parece ingênuo, pois é como se estivéssemos convidando alguém a tomar parte do universo dos ursinhos carinhosos. A crítica da ingenuidade é parte fundamental das tarefas dos homens (do patriarcado), pois cabe às princesas o sonho e a fantasia (a utopia). Aos homens cabe ter medo, mas como homens não devem ter medo (pois assim reza a cartilha), esse medo é devidamente mascarado de tal modo que a desconfiança e malícia dos espertos são os únicos elementos que se veem da superfície. Por cierto, outra coisa que nos faz lembrar o bolsonarismo é que há de caricato (e nefasto) na identidade masculina.
O amor de Jesus é, ou deveria ser, um instrumento revolucionário, mas foi devidamente esterilizado pela hipocrisia capitalista e transformado num discurso vazio, completamente isolado das práticas e ações. Não por outra razão os evangélicos são apoiadores de primeira hora de Bolsonaro e são comuns imagens patéticas de pastores em comunhão com um defensor da tortura e do estupro. A parte que mais concretamente concerne ao capitalismo na esterilização do amor diz respeito à sua transformação num produto, num modelo que pode ser convertido em imagem/totem a ser vendido no mercado. O que se vende no mercado capitalista não são apenas produtos, todos sabem disso, mas também ideias, paradigmas, modos de ser e até de amar. Tudo que é replicável, reprodutível, repetível está à venda. Embora o prazer seja o principal produto do mercado subjetivo capitalista, no mercado intersubjetivo o amor reina. O amor romântico é vendido como experiência partilhada de bem-estar, alegria e felicidade, experiência perfeitamente ajustável ao padrão instagramável de visibilidade. Exposto e vendido como produto, nesse amor se repetem padrões fabricados ou absorvidos pelo mercado com a finalidade de fazer com que qualquer pessoa possa reconhecê-lo como inegável manifestação de sucesso, êxito e realização — de tudo que é pública e consensualmente desejável. No mercado, onde estão todos competindo para serem melhores que os outros, a realização do amor romântico é uma meta das mais valiosas, pois dá prestígio e respeitabilidade a quem a alcança, lhe dá poder simbólico.
A expansão dos serviços que a internet a um só tempo escoa e estimula faz com que o papel das empresas como agentes publicitários seja suplementados pelas próprias pessoas. A capacidade de persuasão (quase coerção) que antes parecia restrita às empresas capazes de bancar gordos orçamentos publicitários agora está também ramificado e expandido no trabalho do influencer, que é uma espécie de terceirização da publicidade. E a vontade de influenciar vai diluindo no nosso sangue mais um pouco do veneno da vaidade capitalista, até que pareça seguro afirmar, e que não nos reste dúvida, de que já nenhuma dimensão da vida humana que está livre da lógica mercantil capitalista.
Enquanto eu escrevia, ou melhor, enquanto eu buscava o artigo de Pierre Dardot e Christian Laval (o artigo citado no link anterior), achei por completo acaso um artigo não lido de Edward Bernays chamado The Engineering of Consent, no meu tablet, onde eu lia os artigos pro doutorado. Vai aqui o trecho inicial sem tradução, por pura preguiça (tá aqui uma tradução boa feita por algoritmos):
Freedom of speech and its democratic corollary, a free press, have tacitly expanded our Bill of Rights to include the right of persuasion. This development was an inevitable result of the expansion of the media of free speech and persuasion, defined in other articles in this volume. All these media provide open doors to the public mind. Any one of us through these media may influence the attitudes and actions of our fellow citizens. The tremendous expansion of communications in the United States has given this Nation the world’s most penetrating and effective apparatus for the transmission of ideas.
Edward bernays, The Engineering of Consent (grifo meu)
Edward Bernays foi o personagem sobre quem a BBC fez o documentário The century of Self. Coincidência? Sinais?
Tudo isso me lembra o Cântico Negro, de José Régio, esse com uma vibe anti-influencer:
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
José Régio, Cântico negro
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
O amor, eu já disse aqui uma vez, é uma experiência real e print('singular ' * 10000)
de conexão entre seres humanos. O amor romântico em si não tem nada de censurável, nem mesmo sua artificialidade pode ser condenada, o problema é seu agenciamento pelo mercado capitalista, é a sua transformação em algo não singular, mas repetível — e numa meta almejada por um público em torno do qual distintos mercados florescem, como, por exemplo, o mercado turístico.
Para encaixá-lo no modelo de reprodução capitalista, a simplificação aplaina e transforma o amor em algo insosso. As arestas são mascaradas, porque não são comercializáveis. Talvez poucos o comprassem se soubessem dos custos implicados, se conhecessem suas feições reais. Quem não conhece tais feições pode contemplá-las como a arte as apresenta, por exemplo, nessa preciosa cena de Gênio Indomável, ou como elemento fundamental de A chegada. Aliás, A chegada é um filme nietzscheano, ele encena a forma mais bonita do amor, o Amor Fati, o amar todas as coisas como se elas fossem necessárias, o dizer sim! — se transformar em alguém capaz de dizer sim, um Jasagender.
O amor revela o melhor de nós, mas também nos expõe e nos abre à possibilidade de ser vulnerados. E assim o medo predomina, silencioso e ubíquo, mascarado pela exibição contínua da hostilidade (projeção teatral de uma coragem ausente). Sentimos vergonha do medo que sentimos, da ameaça real e concreta que o ser humano representa para outro ser humano (homo homini lupus) e assim nos envergonhamos também de acreditar em outra coisa, pois isso poderia parecer fraqueza. E o maquiamento (edição) das aparências, central para uma sociedade orientada ao espetáculo e dependente do fomento do egoísmo, cala ainda mais fundo a ânsia de manifestar o amor, pois quem teme a vulnerabilidade do amor teme também parecer ridículo aos olhos dos outros. Nesse cenário, a coragem e a abertura necessárias para assumir os riscos de amar e de acreditar no amor alcançam níveis irreais e tornam quase proibitiva sua experiência e sua expressão.
O medo que atravessa a nossa sociedade, como um fantasma, irreal e indizível, não pode ser combatido instrumentalmente, com ferramentas forjadas em bases epistêmicas, pois como eu insisto em dizer todo o medo está sempre justificado. Só a promessa de algo profundamente desejável pode nos fazer encarar os espinhos e os fantasmas que cercam o amor, só a experiência concreta e singular do amor nos faz acreditar naquilo que disso pode vir a ser. A experiência real da conexão entre seres humanos é o único elemento que pode dissipar a bruma de desconfiança que nos cerca.
Eu diria que, numa sociedade cada vez mais hedonista e autocentrada, o prazer passa a ser rei também no mercado intersubjetivo. A fragilidade de casamentos atualmente seria um exemplo disso.
O reinado do prazer é realmente incrível, Rafael. Primeiro, porque sendo desejável e repetível, é essencialmente comercial. E, principalmente, porque sem dificuldades se faz confundir prazer e felicidade.
Uma coisa: como você vê essa relação entre prazer, hedonismo e a fragilidade dos casamentos? Você acha que eles veem o casamento com lentes idealizadas de quem compra um produto e espera satisfação?