Fraternidade de Caim

Ainda nos resta muito tempo antes que possamos dizer que vencemos o fascismo e tudo que ele representa. Vencer o fascismo significa superar as condições que o fazem medrar, que o alimentam e o fazem crescer dentro do corpo social. E uma das razões porque é tão difícil extirpar o fascismo se mostra na ética bolsonarista. Os bolsonaristas, como exemplares de um gênero do fascismo, empunham com o orgulho um tipo de sabedoria, aquela que diz que toda desconfiança entre seres humanos está plenamente justificada.

Há um tipo muito comum de ser humano que está sempre acumulando razões para não acreditar nos outros, que faz desse reservatório de desconfiança não um mero conhecimento acumulado por experiência, mas uma ética e uma sabedoria. Uma sabedoria a ser não apenas protegida, mas divulgada e defendida como se estivéssemos sempre diante do perigo iminente de esquecer algo muito importante. É essa ética, essa sabedoria do fascismo aquilo que os bolsonaristas e os fascistas de maneira geral têm de mais forte, porque é profundamente atraente. É a sabedoria do ressentimento, que a maioria de nós está sempre tão disposta a reconhecer, pretensamente por prudência — mas em realidade apenas por medo. O medo e a desconfiança são os alicerces da ética fascista e a base do seu inegável sucesso!

Como responder a isso? Como responder à lembrança e à sugestão de que devemos desconfiar uns dos outros? Não se trata apenas de contrapor casos, de dar motivos para confiar e ilustrar circunstâncias diferentes. O medo está sempre justificado, não há o que possamos fazer, não há como vencê-lo no terreno do discurso e da proposicionalidade.

É surpreendente constatar que no centro de uma das histórias principais da Bíblia esteja um fratricídio, o assassinato de um irmão por outro irmão. A história de Caim e Abel tem algo de profundamente perturbador e, ainda assim, ela está perfeitamente encaixada em nossa vida, de tal sorte que parece perder o status de tabu. É como se fosse o abominável familiar, que nós toleramos por massificação, efeito semelhante o que acontece com a obra de arte, conforme nos conta Walter Benjamin. Mas o que há de tão perturbador na história do assassinato de Abel? Para mim, o mais perturbador é constatar que já no início do livro a própria ideia de fraternidade é lançada por terra, ou danificada, e a força simbólica dos laços de sangue (tão importante para o grupo conservador de onde costumam sair os fascistas) seja em certo sentido posta em questão.

O que nos sobra quando a desconfiança contamina até mesmo os laços de sangue? A história de Caim e Abel é uma versão mais crua e hardcore de Sangue Negro (There will be blood), ou se você quiser, Sangue negro é uma versão suavizada da história de Caim e Abel. O que nos sobra uma vez que a desconfiança contamina os laços de sangue são os outros, os estranhos, os desconhecidos, os estrangeiros, os bárbaros — os Outros, a quem devemos matar por serem radicalmente diferentes de nós.

Parece imprescindível, para escapar ao fascismo, forjar outra ideia de fraternidade, uma ideia que eu chamo de Fraternidade de Caim. A fraternidade de Caim é a ideia de um irmanamento que não é bobo ou ingênuo sobre os perigos representados pelos outros (como conservadores acusam a esquerda), mas que nem por isso deixa que o fel da desconfiança consuma seu coração. É a prática de amar, apesar dos defeitos, apesar de tudo de terrível que podemos ser, e de reconhecer, como Thoreau, que não há nenhum homem pior que ele mesmo, que não há nenhum ser humano pior do que nós mesmos. (É preciso amar Caim e sua força violenta, assassina, destrutiva, reconciliar o amor e a violência que temos em nós.)

Pensando melhor, não é a ideia da fraternidade de Caim que precisamos forjar, mas uma prática, uma ética, um modo de agir natural e espontâneo, só assim podemos reconciliar a bondade com algo que se deixa passar por ingenuidade aos olhos dos que idolatram a desconfiança como forma de sabedoria, só assim poderemos exibir em nossas ações uma confiança que os fascistas dirão cega, uma confiança que os fascistas, escandalizados, alertarão que está em iminência de ser traída — e de ter as falsas razões que a fundamentam reveladas.

No mundo das ideias, na ficção, a fraternidade de Caim já está presente na Casa da Farinha, em Viva o Povo Brasileiro, nessa sabedoria que a fervente e generosa inteligência de João Ubaldo soube realçar. Quem sabe um dia possamos ver isso também na prática, quando soubermos aprender com nós mesmos, com a nossa história e a história dos nossos povos, quando sentirmos que também temos coisas que ensinar aos civilizados, aos superiores, à Metrópole.

Amor é coisa do corpo

Para a minha cheirosa…

O amor é coisa do corpo, lição da filosofia de Carlos Drummond de Andrade. Ou de Manuel Bandeira? Aqueles que se importam com a posse e com a autoria que decidam quem é o autor da lição. Eu prefiro suspender o juízo e apreciá-la como algo de todos; aprendizado oriundo dessa comunidade — manifesta frequentemente em poetas e loucos (morbus sacer) — que é subterrânea e inconscientemente nossa, do conjunto de seres simbólicos (os polvos simbolizam?)

Amor é cheiro, é toque, é voz e pele; amor é cheiro, definitivamente! É lembrança sim — é memória e eudaimonia —, mas no corpo se vive, pois o corpo é a morada do espírito (da memória), de sorte que não há dicotomia. Amor é coisa de pele, e sobre a extensão da pele, essa fronteira entre mim e o mundo, os melhores e mais desejados estímulos bombardeiam freneticamente nosso sentir, o cheiro, o tato, o sabor, a visão.. sem esquecer a audição. Enquanto dura o infinito do gozo o amor é puro corpo, é encontro de corpos.

E mesmo nas relações onde o corpo não é tão central quanto na relação sexual, ainda assim o corpo é importantíssimo e talvez devesse ser resgatado. O carinho não é uma das grandes lições da música de Dominguinhos? O carinho se estende ao amor e à amizade. Há corpo também na amizade, há palavras e símbolos, mas há também afeto que nós animais, nós macacos, sempre comunicamos mais diretamente pelo corpo. O amor não é uma linguagem, não pode ser usado instrumentalmente, para propósitos (fins), é ligação direta — conexão. O que fazemos com isso que, não podendo ser instrumento, ainda assim é imensamente poderoso?

O dualismo de Bandeira e Drummond não é tão surpreendente quanto essa filiação ao corpóreo, pois é como se esperássemos desses senhores respeitosos e ilustres uma inclinação ao espírito (res cogitans), coisa não sujeita à corrupção, que não apodrece, mas é imortal e una. E como se da mortalidade do corpo só pudessem advir coisas inferiores, condenáveis e indesejáveis, não compatíveis com o sublime da poesia e do poético. No entanto, sabiamente eles não apenas preferem o corpo, como também nos ensinam, em seus pensamentos, a ver o que nele há de singular, além das oportunidades que oferece aos espíritos.

E a (desespiritualização && corporificação) do amor lança luz sobre outros fenômenos, por exemplo, sobre o que há de cinzento e irreparavelmente impreciso na distinção (útil) entre amor e sexo. Amor é também mucosa, saliva e suor, e como pode que não haja também amor numa vontade sincera de fazer gozar? Amor é comunicação sem linguagem, conexão fundamental sobre a qual todo o propósito radical de uso da linguagem deveria assentar (o propósito que pretende sugerir novos fundamentos e eixos), sob pena de, de outro modo, encontrar barreiras incontornáveis. Outra lição dessa prolífica escola de pensamento.

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não

Manuel Bandeira, A arte de amar

Manuel Bandeira declama A arte de amar.


Curiosamente, estou lendo um livro, que me foi sugerido por um amigo, que trata justamente do modo como o corpo serve não de instrumento de comunicação, mas como meio de algo mais, de uma conexão que transcende o simbólico. O livro se chama El sabor de un hombre, da escritora croata Slavenka Drakulić. É fascinante!

A amizade nos ensina a sentir o Real e a ser quem somos

Como boa parte dos animais, o ser humano é compelido a imitar desde o princípio da sua vida. Sua capacidade de aprender depende do sucesso em repetir o que fazem os outros seres humanos. A triste realidade é que não há garantia de que a força da imitação será combatida uma vez que ela tenha cumprido seu papel, o ser humano não é obrigado a ser autônomo, a pensar por si mesmo, a emancipar-se das opiniões e ideias dos outros, profundamente enraizadas em nossa cabeça. Parece haver mais razões em contra a emancipação que a favor, a imitação nos aninha no seio de uma comunidade de acordos, de uma tradição que nos conforta e oferece uma sensação de pertencimento sem a qual é difícil viver. O que oferece a autonomia?

Bem, não se trata de um cálculo, de um considerar variáveis e escolher a opção mais vantajosa. O que a autonomia pode oferecer não convence por ser vantajoso, aliás, convencimento não é nem mesmo a palavra adequada, pois seus encantos não são estritamente racionais, têm um caráter mais holístico. O que pouco a pouco pode atrair é o mistério de algo que apenas se deixa vislumbrar, o mistério de quem realmente somos.

A amizade oferece uma das poucas circunstâncias na qual podemos sentir afrouxar-se as demandas por conformidade (normalidade), e é fora dos rigorosos quadros normativos que escutamos a hesitante voz deste outro que nos habita, nós mesmos. Amigos são aquelas pessoas com quem nos sentimos a vontade para ser outra coisa que não a amálgama que a repetição faz de nós, e esse outro não é o produto de um processo instantâneo de conversão, mas sim um paulatino acostumar-se a ser quem se é. Por meio do constante permitir-se ser outra coisa que não um mero imitador é que podemos chegar a ser quem somos. Essa constância, na amizade, acompanha o prazer da companhia, e o encanto de uma descoberta dialógica (e não solitária e solipsista), daí porque Goethe fala do sentimento de expansão e crescimento que amigos nos fazem sentir, como se em sua presença fôssemos maiores do que realmente somos.

Pouco a pouco, se nos habituamos a agir conforme esse novo princípio, a liberdade para ser de outro modo que conquistamos quando estamos perto de pessoas que não se importam que não sejamos meros zeladores do princípio da realidade, passamos a entender o significado da autonomia, e nos aventuramos a descobrir quem somos, ou melhor, a nos permitir ser quem somos. Trata-se de um permitir-se, pois isto que somos não necessariamente se enquadra nas normas e valores vigentes e não é sem resistência que aceitamos esse desafio. Só quando nos sentimos a vontade para nos desarmar, deitar as máscaras, somente nessas circunstâncias, e mesmo assim hesitantemente, podemos sentir quem somos. Eu não disse saber, mas sentir. Saber quem se é é um sentir quem se é — consiste numa experiência que não se limita ao plano cognitivo, epistêmico, é uma experiência ética ressignificadora, pois ao mesmo tempo em que nos damos conta do que podemos ser (posto que a tarefa de saber quem se é não tem fim e se estende por toda a vida) descobrimos o que os outros podem ser para nós. Nem todos podem ser como Zaratustra, que descobre quem é sozinho, no ermo de uma caverna distante; para a maioria de nós são os outros que nos revelam quem nós somos e essa experiência é ao mesmo tempo a descoberta do potencial ético e político da amizade.

Mas o que tudo isso tem a ver com a realidade e o Real? O império das normas, das leis e dos acordos, disso que Freud chama de princípio de realidade, curiosamente nos afasta do Real, no seguinte sentido: as normas automatizam ações e pensamento, criam rotas comuns por meios das quais os outros seres humanos podem ter via de acesso a ideias não necessariamente comuns. O resultado da força do convencional é uma espécie de encenação do Real, o Real é vivido segundo regras e convenções que tentam ajustar tudo a uma experiência social partilhada, por isso a heteronomia e a imitação. E no plano social disso resulta o que Erving Goffman chama de Representação do Eu na vida cotidiana. Assim, a realidade entendida como produto de um modo de organização da experiência é pouco Real, pouco autêntica, na maioria das vezes quase falsa, tantos são os filtros aplicados sobre seu conteúdo original. Na verdade, a distinção entre a realidade como um conteúdo puro e não organizado e a realidade filtrada pelas lentes das convenções é uma abstração, um recurso heurístico para mostrar o efeito da sociabilidade sobre nossa experiência subjetiva, pois nós nunca a experimentamos senão como coisa já organizada e pronta. E as palavras que dão a dimensão desse mascaramento que pode ter lugar pelo predomínio do social na percepção da realidade são fingir e fingimento.

Fingir é ajustar o que se pensa e sente às necessidades do social. Assim, apresentado abstratamente, o princípio da realidade parece razoável e justo, e em certo sentido é. Mas o efeito subjetivo e intersubjetivo desse ajuste é o contato apenas com o que é mediado e uma infamiliaridade com o Real. Não é que a realidade seja Irreal, é que a realidade singulariza o Real para torná-lo não apenas palatável, mas gerenciável, passível de ser operado segundo regras gerais. É como se existisse apenas um modo de ser. A amizade é o primeiro contato verdadeiro com o lado de fora e o impacto desse contato é muito mais profundo do que qualquer experiência que tenhamos no marco estável organizado pelas convenções sociais. E é a força dessa experiência que subverte o sentido da realidade, pois perto da intensidade do que é autêntico mesmo a mais patente verdade perde sua concretude, é como se assim ganhássemos um novo parâmetro, uma nova medida do que é real e verdadeiro, uma medida não epistêmica, não proposicional e não normativa — se é que faz sentido falar de medida nesses termos. Assim como não sabemos quem somos até nos sentirmos livres para agir fora dos marcos convencionais da sociedade, tampouco podemos identificar o que é Real sem antes ter sido afetado por algo real.

A amizade é uma forma de amor, ou melhor, o amor é uma forma de amizade, um subconjunto da amizade (Freud dizia que a amizade era o amor inibido em seus fins) e sua experiência é o melhor guia e o mais confiável mestre na lida com a vida, não apenas desde a perspectiva subjetiva, mas também sob o prisma social. Uma sociedade na qual a amizade seja não um discurso vazio e publicitário, mas um valor presente em cada ação de seus membros, é uma sociedade imune ao fascismo, aberta e capaz de aprender com a diversidade da experiência humana.

O espírito é apenas um

Não tem sentido estender a noção de individualidade ao reino espiritual, o espírito é apenas um. Nossa alma? Nossa alma é a alma do mundo. Talvez quando nos olharmos nos olhos possamos ver algo aí dentro, reconhecer essa coisa. — Nós mesmos? Não, outros como nós. E nos reconhecendo outros talvez possamos lembrar que não devemos temer a nós mesmos. E o feitiço tramado pelo medo se quebrará. Não há argumento contra o medo, e a confiança cega não é a solução, nenhum humanismo nos salvará!, pois não precisamos ser salvos, precisamos apenas encontrar meios de evitar que explorem a nossa desconfiança, aquilo que inibe o amor e estimula o ódio. Porque nada mais humano que desconfiar de um ser humano.

É provável que nunca cheguemos ao estágio em que confiar num ser humano seja sinal de prudência e bom julgamento. Usando uma imagem progressista: nunca chegaremos a ser assim “evoluídos”.

Quando vejo as pessoas que pedem dinheiro no metrô de Madrid, sentindo uma empatia certamente enfermiça, eu penso que o que mais dói nessa condição humilhante é ter que depender de algo tão escasso quanto a bondade humana.

Por que soa ingênuo falar de amor?

Essa imagem é uma comédia!

Não há quem possa negar a capacidade mobilizadora do ódio, especialmente na triste circunstância em que nos encontramos, cercados por bolsonaristas. No entanto, mesmo entre soi-disant cristãos, falar de amor parece ingênuo, pois é como se estivéssemos convidando alguém a tomar parte do universo dos ursinhos carinhosos. A crítica da ingenuidade é parte fundamental das tarefas dos homens (do patriarcado), pois cabe às princesas o sonho e a fantasia (a utopia). Aos homens cabe ter medo, mas como homens não devem ter medo (pois assim reza a cartilha), esse medo é devidamente mascarado de tal modo que a desconfiança e malícia dos espertos são os únicos elementos que se veem da superfície. Por cierto, outra coisa que nos faz lembrar o bolsonarismo é que há de caricato (e nefasto) na identidade masculina.

O amor de Jesus é, ou deveria ser, um instrumento revolucionário, mas foi devidamente esterilizado pela hipocrisia capitalista e transformado num discurso vazio, completamente isolado das práticas e ações. Não por outra razão os evangélicos são apoiadores de primeira hora de Bolsonaro e são comuns imagens patéticas de pastores em comunhão com um defensor da tortura e do estupro. A parte que mais concretamente concerne ao capitalismo na esterilização do amor diz respeito à sua transformação num produto, num modelo que pode ser convertido em imagem/totem a ser vendido no mercado. O que se vende no mercado capitalista não são apenas produtos, todos sabem disso, mas também ideias, paradigmas, modos de ser e até de amar. Tudo que é replicável, reprodutível, repetível está à venda. Embora o prazer seja o principal produto do mercado subjetivo capitalista, no mercado intersubjetivo o amor reina. O amor romântico é vendido como experiência partilhada de bem-estar, alegria e felicidade, experiência perfeitamente ajustável ao padrão instagramável de visibilidade. Exposto e vendido como produto, nesse amor se repetem padrões fabricados ou absorvidos pelo mercado com a finalidade de fazer com que qualquer pessoa possa reconhecê-lo como inegável manifestação de sucesso, êxito e realização — de tudo que é pública e consensualmente desejável. No mercado, onde estão todos competindo para serem melhores que os outros, a realização do amor romântico é uma meta das mais valiosas, pois dá prestígio e respeitabilidade a quem a alcança, lhe dá poder simbólico.


A expansão dos serviços que a internet a um só tempo escoa e estimula faz com que o papel das empresas como agentes publicitários seja suplementados pelas próprias pessoas. A capacidade de persuasão (quase coerção) que antes parecia restrita às empresas capazes de bancar gordos orçamentos publicitários agora está também ramificado e expandido no trabalho do influencer, que é uma espécie de terceirização da publicidade. E a vontade de influenciar vai diluindo no nosso sangue mais um pouco do veneno da vaidade capitalista, até que pareça seguro afirmar, e que não nos reste dúvida, de que já nenhuma dimensão da vida humana que está livre da lógica mercantil capitalista.

Enquanto eu escrevia, ou melhor, enquanto eu buscava o artigo de Pierre Dardot e Christian Laval (o artigo citado no link anterior), achei por completo acaso um artigo não lido de Edward Bernays chamado The Engineering of Consent, no meu tablet, onde eu lia os artigos pro doutorado. Vai aqui o trecho inicial sem tradução, por pura preguiça (tá aqui uma tradução boa feita por algoritmos):

Freedom of speech and its democratic corollary, a free press, have tacitly expanded our Bill of Rights to include the right of persuasion. This development was an inevitable result of the expansion of the media of free speech and persuasion, defined in other articles in this volume. All these media provide open doors to the public mind. Any one of us through these media may influence the attitudes and actions of our fellow citizens. The tremendous expansion of communications in the United States has given this Nation the world’s most penetrating and effective apparatus for the transmission of ideas.

Edward bernays, The Engineering of Consent (grifo meu)

Edward Bernays foi o personagem sobre quem a BBC fez o documentário The century of Self. Coincidência? Sinais?

Tudo isso me lembra o Cântico Negro, de José Régio, esse com uma vibe anti-influencer:

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

José Régio, Cântico negro

O amor, eu já disse aqui uma vez, é uma experiência real e print('singular ' * 10000) de conexão entre seres humanos. O amor romântico em si não tem nada de censurável, nem mesmo sua artificialidade pode ser condenada, o problema é seu agenciamento pelo mercado capitalista, é a sua transformação em algo não singular, mas repetível — e numa meta almejada por um público em torno do qual distintos mercados florescem, como, por exemplo, o mercado turístico.

Para encaixá-lo no modelo de reprodução capitalista, a simplificação aplaina e transforma o amor em algo insosso. As arestas são mascaradas, porque não são comercializáveis. Talvez poucos o comprassem se soubessem dos custos implicados, se conhecessem suas feições reais. Quem não conhece tais feições pode contemplá-las como a arte as apresenta, por exemplo, nessa preciosa cena de Gênio Indomável, ou como elemento fundamental de A chegada. Aliás, A chegada é um filme nietzscheano, ele encena a forma mais bonita do amor, o Amor Fati, o amar todas as coisas como se elas fossem necessárias, o dizer sim! — se transformar em alguém capaz de dizer sim, um Jasagender.

O amor revela o melhor de nós, mas também nos expõe e nos abre à possibilidade de ser vulnerados. E assim o medo predomina, silencioso e ubíquo, mascarado pela exibição contínua da hostilidade (projeção teatral de uma coragem ausente). Sentimos vergonha do medo que sentimos, da ameaça real e concreta que o ser humano representa para outro ser humano (homo homini lupus) e assim nos envergonhamos também de acreditar em outra coisa, pois isso poderia parecer fraqueza. E o maquiamento (edição) das aparências, central para uma sociedade orientada ao espetáculo e dependente do fomento do egoísmo, cala ainda mais fundo a ânsia de manifestar o amor, pois quem teme a vulnerabilidade do amor teme também parecer ridículo aos olhos dos outros. Nesse cenário, a coragem e a abertura necessárias para assumir os riscos de amar e de acreditar no amor alcançam níveis irreais e tornam quase proibitiva sua experiência e sua expressão.

O medo que atravessa a nossa sociedade, como um fantasma, irreal e indizível, não pode ser combatido instrumentalmente, com ferramentas forjadas em bases epistêmicas, pois como eu insisto em dizer todo o medo está sempre justificado. Só a promessa de algo profundamente desejável pode nos fazer encarar os espinhos e os fantasmas que cercam o amor, só a experiência concreta e singular do amor nos faz acreditar naquilo que disso pode vir a ser. A experiência real da conexão entre seres humanos é o único elemento que pode dissipar a bruma de desconfiança que nos cerca.

Recortei esse depoimento duro e precioso sobre diferentes lições do amor do documentário Humans.

Encontrar os outros

Não é preciso estar só para desejar encontrar os outros. Sempre tive bons amigos e amigas e mesmo assim tinha também a vaga aspiração de encontrar pessoas como eu. Que merda é essa, “pessoas como eu”? — Eu não saberia explicar! Não é como se eu tivesse uma lista de critérios, ou como se existisse uma identidade comum que eu pudesse apresentar quando perguntado, era mais como a ideia imprecisa de uma atmosfera que eu reconheceria se a encontrasse. E durante muito tempo acreditei nisso. Quando eu fui pra São Paulo, em 2010, aos 29 anos, já não era jovem o bastante para ser ingênuo e ainda assim ainda acreditava que poderia encontrar essa atmosfera que eu buscava.

É como se, instintivamente, eu aspirasse desde jovem pertencer a uma atmosfera semelhante a de Paris da primeira metade do século XIX, a Paris iluminada pela presença de Alexander von Humboldt. Hoje em dia eu penso que é preciso reconhecer a amizade — as pessoas que encontramos ao largo da vida e com as quais, com sorte, criamos nossa própria atmosfera — mas também constatar que as atmosferas como a de Paris já não existem mais. Somos talvez muito individuais (egocêntricos) para formar algo tão gasoso como uma atmosfera e nossa ciência já não tem mais nada de poético, ela no máximo pode ser robótica. O que eu quero dizer é que talvez seja preciso reconhecer o exílio e abandonar o sonho (ingênuo?) da atmosfera, reconhecer o caráter intransponível daquilo que nos separa. Os encontros são fortuitos e não podem ser provocados, isto é, não podem ser induzidos por ações instrumentais como aquelas de quem domina uma técnica de manipulação de séries causais. No entanto, o exílio pode ser evitado (embora o solipsismo não).

A visão no sentido literal é inegavelmente importante e central, mas a visão no sentido espiritual é ainda mais ampla e irredutível (porque inclui a imaginação). David Shrigley

O caso é que a gente só consegue ver essa atmosfera quando consentimos em agir fora dos trilhos da normalidade e nos permitimos ser estranhos. (Pouca gente é estreita demais para não ser estranha, a maioria está apenas acomodada na estabilidade do normal.) Quando nos permitimos agir assim podemos ver nos outros as nossas próprias estranhezas e passamos a estar mais a vontade entre estranhos. Estar a vontade é tudo! Mas é preciso coragem para estar a vontade num mundo como o nosso, onde ainda há tanto que temer.

Uma seleção de filmes que abordam a estranheza e o anormal de distintas formas.

Talvez essa atmosfera fantasiada não seja nada mais que um ambiente formado pelo predomínio da amizade. Em O sofrimento do jovem Werther, Werther fala saudoso sobre como na presença de uma amiga ele sentia superar-se, “tornando-me tudo aquilo que serei capaz de ser”. Numa entrevista que eu já mencionei aqui, Yamandu Costa fala sobre o que é ser amigo, ele diz: “uma coisa que me chama atenção nos meus amigos é como minha figura melhora quando eu tô com eles”.

Yamandu fala sobre o que é ser amigo aos 7’08”, o vídeo já está no ponto da sua fala.

Há algo na amizade que só se pode mencionar usando os verbos fortalecer, nutrir, e que nos impele em direção a nós mesmos. Algo que nos permite aceitar a transformação — a perda da autonomia — sem que isso nos pareça um ônus, um preço muito caro.

O encontro e a abertura oferecem oportunidade para que venham a tona aspectos desconhecidos de nós mesmos, aspectos que nunca tiveram ocasião de aparecer porque não podem ser adequados ao normal (ao princípio de realidade, poderíamos dizer). A experiência da conexão com os outros talvez se mostre de modo mais tangível no trabalho dos atores, e assim conclui Amy Cuddy numa conversa com Julianne Moore:

— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou.
— Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.

Amy Cuddy, presença

Presença é o nome do estado em que nos encontramos disponíveis e abertos aos outros, sem qualquer sombra de ameaças nem distúrbios. A amizade talvez seja então uma circunstância natural em que nos sentimos presentes, é quando encontramos, por acaso, pessoas que nos fazem presentes, com quem podemos estar sem máscaras e aprender a agir autenticamente. Pessoas com as quais nossas inibições se desarmam, que nos induzem a uma lucidez indescritível (como descrever a lucidez?) e com quem aprendemos verdadeiramente quem nós somos. É como se antes disso não apenas não soubéssemos quem somos, mas não pudéssemos saber. É claro que o acaso é importante já que não podemos induzir instrumentalmente encontros, mas a presença sublinhada por Amy Cuddy também os favorece, pois a presença aguça nossa capacidade de ver manifestações de inteligência.

A ipseidade, a singularidade da nossa própria vida quase nos compele ao exílio, ou pelo menos no meu caso, me empurra em direção à misantropia. Então parece como se fosse necessário um novo olhar, um olhar que fosse capaz de ver o que está cifrado na convencionalidade, sob pena de enxergar nada senão superficialidade por toda parte. Tornar visível o que não se vê, fazer medrar dentro dos outros uma semente que já se encontra lá. Aprender a reconhecer o outro em si e o si no outro, como se ali existissem não dois, mas um, talvez seja a única maneira de deixar o exílio e de dar lugar a uma atmosfera que não pode ser senão a confluência de muitos (brainet).


Uma das coisas mais legais dessa cena pela qual eu sou apaixonado é que ela contém múltiplas camadas. E numa delas Rachel Menken escancara a desconexão de Don Draper, o fato de que ele não pode experimentar a vida senão como um teatro cínico e despojado de verdade onde tudo parece insípido e artificial.

Primeira temporada de Mad Men. A melhor parte é quando ela assume altivamente que é a própria medida do interesse e que diz que não lhe interessa ouvir inconvenientes na vida de Draper.

O perigo é a identidade do exílio!