A humanidade é uma rede peer-to-peer

A tirinha é de 2017, mas continua atual.

Não sou um bom leitor de Frege. Minha leitura de Frege é predominantemente second handed. É uma colcha de retalhos, como o anti-Lula de Laerte, um remendo de leituras mal feitas de boas interpretações de outras mentes (dentre as quais está o próprio Wittgenstein). Sendo assim, considere o que se segue como se fosse ficção, como se fossem os versos de um poeta (sem pretensões epistêmicas).

Não penso que exista uma dimensão de generalidade que possa ser uma ferramenta universal de entendimento, como Frege acreditava (creio eu! vamos..) ao dizer que “a lógica é o árbitro no conflito de opiniões”. Não há universalidade fundante na experiência humana, devemos sempre fazer o esforço de nos conectar.. pois a humanidade é uma rede peer-to-peer (P2P), a conexão entre nós não pode ter intermediário (para que sejamos uma rede forte).

(Isso não significa que eu não entenda e admire a generalidade, o que ela tem de eficiente e, sobretudo, de promissor. Aquilo que ela promete ao nos fazer sonhar que podemos evitar a necessidade de ver qual é o caso, pois o caso já está determinado nessa dimensão de generalidade [como se fosse atual]. Não podemos alcançar uma dimensão de generalidade que nos permita contornar a necessidade de conexões P2P.)

Ilustração de uma rede peer-to-peer

A conexão P2P acentua o ajuste necessário à comunicação, um certo encaixe que não pode ser generalizado ou contornado por meio de generalidades. E é por isso que cada pessoa é um convite ao ajuste, e exige uma nova conexão, concreta, particular e específica. Em tempos de comunicação em massa parece como se em nome da eficiência que buscamos devêssemos aspirar à massificação e à generalidade (“quanto mais pessoas chegarem a mensagem, melhor!”, “quanto mais pessoas ela afetar, melhor”, “quanto mais pessoas sentirem que ela é algo comum, melhor”). Como se tudo pudesse ser definido de cima da baixo, verticalmente, dado o acesso de poucos aos canais de difusão de mensagens, que circulariam de forma centralizada. Eu entendo esse apelo da generalidade e reconheço sua força (seja na ciência, seja na publicidade; não posso negar a importância da publicidade, por exemplo). Por outro lado, essa outra discussão, ou melhor, essa imagem que nos permite pensar a humanidade de outro modo, não como conjunto de pessoas potencialmente receptoras (passivas) e consumidoras de mensagens gerais, massificadas e centralizadas, mas como análoga a uma rede P2P, atrai muito mais a minha atenção e fascina minha imaginação. O que pode significar essa analogia?

Uma rede bittorrent

Sou fã de redes P2P, especialmente da rede Bittorrent. Você pode facilmente entupir a sua rede (tornar o uso da internet impossível pra qualquer outro usuário que está dentro dela usando toda a sua banda) se estiver baixando um arquivo torrent com muitas seeds, com muitos seeders, e sem limites de download e upload. Quanto mais pessoas servindo, mais rápida e poderosa é a rede, mais dados ela consegue transmitir em menos tempo (eu lembro de já ter lido que o tráfego na rede bitorrent correspondia a 1/3 de todo o tráfego da internet; esse tipo de informação pode ficar velha muito rapidamente). E nem importa que existam muitos leechers, se houver muita gente servindo, a rede é forte. Acho que essa analogia tem uma dimensão ética, ou nos faz ver uma dimensão ética, que se apaga na busca pela generalidade e pela massificação. Essa inevitável, incontornável necessidade de aprender a estabelecer conexões P2P — que não podem ser evitadas mediante nenhuma generalidade, que nos força sempre a fazer um ajuste com cada pessoa que encontramos.

Hoje em dia, além dessa metáfora, dessa analogia, há outro tipo de rede tão interessante quanto, as redes blockchain. Embora uma rede blockchain também seja descentralizada, ela parece mais dinâmica, feita para que muito facilmente as informações que trafegam nela possam mudar. (Mas talvez essa seja só uma miragem produzida por minha visão superficial.) Dentro dela circula a mesma informação, os mesmo arquivos, por assim dizer (no caso do bitcoin, a carteira ledger com os dados dos usuários), e essa identidade é o que garante seu caráter descentralizado (que lhe permite prescindir de um servidor que centraliza e armazena as informações nela contidas), enquanto que nas redes P2P convencionais múltiplos arquivos podem ser compartilhados, usuários diferentes servem ou baixam diferentes arquivos.

Em qualquer caso, a pergunta fica: para onde deve ir uma rede descentralizada? Essa pergunta tem sentido? — Depende do tipo de rede! Se a humanidade fosse uma rede, a pergunta teria sentido?

A amizade nos ensina a sentir o Real e a ser quem somos

Como boa parte dos animais, o ser humano é compelido a imitar desde o princípio da sua vida. Sua capacidade de aprender depende do sucesso em repetir o que fazem os outros seres humanos. A triste realidade é que não há garantia de que a força da imitação será combatida uma vez que ela tenha cumprido seu papel, o ser humano não é obrigado a ser autônomo, a pensar por si mesmo, a emancipar-se das opiniões e ideias dos outros, profundamente enraizadas em nossa cabeça. Parece haver mais razões em contra a emancipação que a favor, a imitação nos aninha no seio de uma comunidade de acordos, de uma tradição que nos conforta e oferece uma sensação de pertencimento sem a qual é difícil viver. O que oferece a autonomia?

Bem, não se trata de um cálculo, de um considerar variáveis e escolher a opção mais vantajosa. O que a autonomia pode oferecer não convence por ser vantajoso, aliás, convencimento não é nem mesmo a palavra adequada, pois seus encantos não são estritamente racionais, têm um caráter mais holístico. O que pouco a pouco pode atrair é o mistério de algo que apenas se deixa vislumbrar, o mistério de quem realmente somos.

A amizade oferece uma das poucas circunstâncias na qual podemos sentir afrouxar-se as demandas por conformidade (normalidade), e é fora dos rigorosos quadros normativos que escutamos a hesitante voz deste outro que nos habita, nós mesmos. Amigos são aquelas pessoas com quem nos sentimos a vontade para ser outra coisa que não a amálgama que a repetição faz de nós, e esse outro não é o produto de um processo instantâneo de conversão, mas sim um paulatino acostumar-se a ser quem se é. Por meio do constante permitir-se ser outra coisa que não um mero imitador é que podemos chegar a ser quem somos. Essa constância, na amizade, acompanha o prazer da companhia, e o encanto de uma descoberta dialógica (e não solitária e solipsista), daí porque Goethe fala do sentimento de expansão e crescimento que amigos nos fazem sentir, como se em sua presença fôssemos maiores do que realmente somos.

Pouco a pouco, se nos habituamos a agir conforme esse novo princípio, a liberdade para ser de outro modo que conquistamos quando estamos perto de pessoas que não se importam que não sejamos meros zeladores do princípio da realidade, passamos a entender o significado da autonomia, e nos aventuramos a descobrir quem somos, ou melhor, a nos permitir ser quem somos. Trata-se de um permitir-se, pois isto que somos não necessariamente se enquadra nas normas e valores vigentes e não é sem resistência que aceitamos esse desafio. Só quando nos sentimos a vontade para nos desarmar, deitar as máscaras, somente nessas circunstâncias, e mesmo assim hesitantemente, podemos sentir quem somos. Eu não disse saber, mas sentir. Saber quem se é é um sentir quem se é — consiste numa experiência que não se limita ao plano cognitivo, epistêmico, é uma experiência ética ressignificadora, pois ao mesmo tempo em que nos damos conta do que podemos ser (posto que a tarefa de saber quem se é não tem fim e se estende por toda a vida) descobrimos o que os outros podem ser para nós. Nem todos podem ser como Zaratustra, que descobre quem é sozinho, no ermo de uma caverna distante; para a maioria de nós são os outros que nos revelam quem nós somos e essa experiência é ao mesmo tempo a descoberta do potencial ético e político da amizade.

Mas o que tudo isso tem a ver com a realidade e o Real? O império das normas, das leis e dos acordos, disso que Freud chama de princípio de realidade, curiosamente nos afasta do Real, no seguinte sentido: as normas automatizam ações e pensamento, criam rotas comuns por meios das quais os outros seres humanos podem ter via de acesso a ideias não necessariamente comuns. O resultado da força do convencional é uma espécie de encenação do Real, o Real é vivido segundo regras e convenções que tentam ajustar tudo a uma experiência social partilhada, por isso a heteronomia e a imitação. E no plano social disso resulta o que Erving Goffman chama de Representação do Eu na vida cotidiana. Assim, a realidade entendida como produto de um modo de organização da experiência é pouco Real, pouco autêntica, na maioria das vezes quase falsa, tantos são os filtros aplicados sobre seu conteúdo original. Na verdade, a distinção entre a realidade como um conteúdo puro e não organizado e a realidade filtrada pelas lentes das convenções é uma abstração, um recurso heurístico para mostrar o efeito da sociabilidade sobre nossa experiência subjetiva, pois nós nunca a experimentamos senão como coisa já organizada e pronta. E as palavras que dão a dimensão desse mascaramento que pode ter lugar pelo predomínio do social na percepção da realidade são fingir e fingimento.

Fingir é ajustar o que se pensa e sente às necessidades do social. Assim, apresentado abstratamente, o princípio da realidade parece razoável e justo, e em certo sentido é. Mas o efeito subjetivo e intersubjetivo desse ajuste é o contato apenas com o que é mediado e uma infamiliaridade com o Real. Não é que a realidade seja Irreal, é que a realidade singulariza o Real para torná-lo não apenas palatável, mas gerenciável, passível de ser operado segundo regras gerais. É como se existisse apenas um modo de ser. A amizade é o primeiro contato verdadeiro com o lado de fora e o impacto desse contato é muito mais profundo do que qualquer experiência que tenhamos no marco estável organizado pelas convenções sociais. E é a força dessa experiência que subverte o sentido da realidade, pois perto da intensidade do que é autêntico mesmo a mais patente verdade perde sua concretude, é como se assim ganhássemos um novo parâmetro, uma nova medida do que é real e verdadeiro, uma medida não epistêmica, não proposicional e não normativa — se é que faz sentido falar de medida nesses termos. Assim como não sabemos quem somos até nos sentirmos livres para agir fora dos marcos convencionais da sociedade, tampouco podemos identificar o que é Real sem antes ter sido afetado por algo real.

A amizade é uma forma de amor, ou melhor, o amor é uma forma de amizade, um subconjunto da amizade (Freud dizia que a amizade era o amor inibido em seus fins) e sua experiência é o melhor guia e o mais confiável mestre na lida com a vida, não apenas desde a perspectiva subjetiva, mas também sob o prisma social. Uma sociedade na qual a amizade seja não um discurso vazio e publicitário, mas um valor presente em cada ação de seus membros, é uma sociedade imune ao fascismo, aberta e capaz de aprender com a diversidade da experiência humana.

Promessas da cidade: Madrid

Em 2013, poucos dias depois de haver chegado em Madrid, vi uma imagem que ficou na minha cabeça: uma senhora sentada em sua cadeira motorizada, lendo um livro na rua, embaixo da marquise de um prédio na Calle Luchana. Essa imagem mostra de modo claro a importância da rua para os espanhóis e particularmente para os madrilenhos. Por isso a pandemia foi um tremendo choque para a sociedade espanhola, porque além do macabro e do letal da enfermidade, a livre circulação de pessoas foi impedida, e impediram-se os encontros. A sociedade espanhola, em sua pluralidade, é uma sociedade voltada aos encontros, e manifesta o seu melhor no esforço contínuo para tentar urdir uma trama simbólica e cultural que enlace os seres humanos e que faça com que nossas dores e medos sejam elementos que nos conectem. É fundamental que uma sociedade saiba estimular a sociabilidade, não de modo artificial e mecânico, mas de modo passional. Nada além da paixão pode gerar a necessidade que esperamos das normas (e no final das contas, das instituições).

Botellón na praça Dos de mayo

A pandemia impediu abraços e mesmo simples toques de mão se transformaram em possibilidades ameaçadoras, ensombrecidas pela perspectiva da contaminação. Talvez os espanhóis não sejam tão ligados ao toque quanto podem ser os brasileiros, mas a falta do contato também se faz sentir. E de todas as manifestações sociais que testemunham essa orientação aos encontros, nenhuma é mais emblemática que o botellón. O botellón é um encontro entre pessoas, geralmente jovens, que se reúnem em espaços públicos para beber e conversar. Eles se sentam nos bancos, no chão, onde for possível. O botellón é estigmatizado porque é barulhento, invariavelmente sujo, não consome nos bares locais (vive basicamente da informalidade de vendedores ambulantes), ele incomoda de muitas formas. Eu acrescentaria às críticas a queixa de que como fenômeno social ele é efêmero. No entanto, minha crítica talvez seja excessivamente materialista, preocupada em produzir efeitos identificáveis que nos levem ao “progresso”, ou seja, preocupada com o caráter político que supostamente deveria subsistir na base de todo encontro social. Alguma coisa fica dos encontros humanos? Algo que dura mais que o efêmero e superficial que neles se manifestam? É certo que não podemos controlar este resíduo (se é que ele existe) como quem controla uma relação de causa e efeito, como quem ajusta a dose de morfina de um paciente que sofre com dores terríveis — mas isso não é tão ruim quanto parece. A sociabilidade concebida como uma engenharia não enche meus olhos, muito pelo contrário. Assim, essas reuniões improvisadas, ainda que não contribuam objetivamente para nada que possamos identificar, são manifestações de um certo impulso hacia los Otros que me parece profundamente enternecedor. Não quero desfilar minhas críticas aos botellones, quero vê-los apenas como expressão do impulso culturalmente estabelecido e naturalmente internalizado de estar junto aos outros, de sentir-se bem e à vontade ao lado de seres humanos desconhecidos.

Registro meu da praça Dos de Mayo em abril de 2019.

Boa parte dos grandes pensadores, se não têm eles mesmos uma teoria da civilização, pelo menos já escreveram sobre sociabilidade e insociabilidade, sobre os impulsos opostos que atraem ou repelem os seres humanos uns aos outros. As promessas da cidade são em si mesmas um tipo de resposta ao desafio da sociabilidade, e parte de sua tecnologia, pois no extenso ambiente urbano a impessoalidade torna o trato mais agradável entre pessoas que não são mais que meros passageiros em relação aos outros. É mais fácil tolerar pessoas com quem não somos obrigados a conviver, que não conhecem nossas vidas e cujas vidas não conhecemos. Por contraste, numa cidade pequena, onde todos se conhecem, perdemos o anonimato das grandes cidades, pois todas as vidas ali parecem escrutinadas por um olhar público a um só tempo injusto e atento (a fofoca como uso do julgamento, certamente deve existir uma sociologia da fofoca). O rock star é um paradigma (um arquétipo, para usar uma categoria junguiana) daquilo que muitos buscam ser, talvez o modelo mais aspirado nas grandes cidades, pois há aí um desejo forte e comum que torna verdadeira a profecia de Andy Warhol sobre os 15 minutos de fama. E ainda assim, grande parte da contribuição das cidades (das cidades entendidas como tecnologia do social) consiste precisamente na abertura à possibilidade do anonimato e da impessoalidade, na falta de um olhar alheio atento, no passar despercebido, na liberdade de poder ser autêntico, livre. É na impessoalidade da cidade que o estranho pode se desenvolver, que os gozos diferentes sentem-se livres para gozar e que a singularidade pode encontrar espaço para medrar. O anonimato da cidade atenua o peso da constatação desconcertante que Sartre registra em Entre quatro paredes: “O inferno são os outros”. 

Após a pandemia a prefeitura de Madrid lançou uma campanha contra os botellones.


Meu temor, eu já disse, é que o botellón não seja mais que uma efemeridade, um evento que tem lugar e deixa de existir sem deixar rastros, como se nunca tivesse acontecido. Já minha esperança, meu delírio e minha ingenuidade é que o botellón como manifestação circunstancial e difusa do social seja uma das tantas oportunidades indeterminadas de construir, nas cidades modernas e globalizadas, um novo olhar, atento e justo. Um olhar que rompa a impessoalidade do urbano, essa distância que parece condição necessária da convivencialidade, e se aproxime do outro novamente não com o olhar injusto do fofoqueiro caricato das zonas rurais, mas que traga consigo a perspectiva marcada pelo entendimento da variabilidade e do significado global da espécie humana. Nesse mundo dos sonhos que me inspira a tecnologia das cidades, o olhar e o juízo humano acolhem sem se projetar no teatro publicitário (sem estar no teatro da filantropia, para lembrar de Thoreau) e entendem o diferente porque deixam que esse contato com o outro nos transforme, transforme as lentes com as quais vemos o mundo. É nas cidades, na proximidade impessoal das relações urbanas, onde tudo pode ser reconstruído.


É curioso constatar um interesse de estar próximo aos outros que não é precisamente um interesse por alguém em particular, mas um impulso inconsciente e culturalmente estabelecido de estar reunido. É nesse sentido que a cidade, cuja impessoalidade talvez seja o maior atrativo, pode resgatar ou fortalecer laços sociais esgarçados pelo imperativo do egoísmo e da competição.

Mesmo que eu já tenha morado numa cidade pequena no interior da Bahia, a primeira vez que me dei conta dos efeitos da impessoalidade dos grandes centros urbanos foi quando viajamos para um pueblo do interior da Espanha e eu então notei que aí as pessoas pareciam conhecer umas às outras. Pensei: “qual é o efeito para a sociabilidade desse conhecimento mútuo? quais são os efeitos éticos e políticos desse estar a par da vida dos outros?”

Por que soa ingênuo falar de amor?

Essa imagem é uma comédia!

Não há quem possa negar a capacidade mobilizadora do ódio, especialmente na triste circunstância em que nos encontramos, cercados por bolsonaristas. No entanto, mesmo entre soi-disant cristãos, falar de amor parece ingênuo, pois é como se estivéssemos convidando alguém a tomar parte do universo dos ursinhos carinhosos. A crítica da ingenuidade é parte fundamental das tarefas dos homens (do patriarcado), pois cabe às princesas o sonho e a fantasia (a utopia). Aos homens cabe ter medo, mas como homens não devem ter medo (pois assim reza a cartilha), esse medo é devidamente mascarado de tal modo que a desconfiança e malícia dos espertos são os únicos elementos que se veem da superfície. Por cierto, outra coisa que nos faz lembrar o bolsonarismo é que há de caricato (e nefasto) na identidade masculina.

O amor de Jesus é, ou deveria ser, um instrumento revolucionário, mas foi devidamente esterilizado pela hipocrisia capitalista e transformado num discurso vazio, completamente isolado das práticas e ações. Não por outra razão os evangélicos são apoiadores de primeira hora de Bolsonaro e são comuns imagens patéticas de pastores em comunhão com um defensor da tortura e do estupro. A parte que mais concretamente concerne ao capitalismo na esterilização do amor diz respeito à sua transformação num produto, num modelo que pode ser convertido em imagem/totem a ser vendido no mercado. O que se vende no mercado capitalista não são apenas produtos, todos sabem disso, mas também ideias, paradigmas, modos de ser e até de amar. Tudo que é replicável, reprodutível, repetível está à venda. Embora o prazer seja o principal produto do mercado subjetivo capitalista, no mercado intersubjetivo o amor reina. O amor romântico é vendido como experiência partilhada de bem-estar, alegria e felicidade, experiência perfeitamente ajustável ao padrão instagramável de visibilidade. Exposto e vendido como produto, nesse amor se repetem padrões fabricados ou absorvidos pelo mercado com a finalidade de fazer com que qualquer pessoa possa reconhecê-lo como inegável manifestação de sucesso, êxito e realização — de tudo que é pública e consensualmente desejável. No mercado, onde estão todos competindo para serem melhores que os outros, a realização do amor romântico é uma meta das mais valiosas, pois dá prestígio e respeitabilidade a quem a alcança, lhe dá poder simbólico.


A expansão dos serviços que a internet a um só tempo escoa e estimula faz com que o papel das empresas como agentes publicitários seja suplementados pelas próprias pessoas. A capacidade de persuasão (quase coerção) que antes parecia restrita às empresas capazes de bancar gordos orçamentos publicitários agora está também ramificado e expandido no trabalho do influencer, que é uma espécie de terceirização da publicidade. E a vontade de influenciar vai diluindo no nosso sangue mais um pouco do veneno da vaidade capitalista, até que pareça seguro afirmar, e que não nos reste dúvida, de que já nenhuma dimensão da vida humana que está livre da lógica mercantil capitalista.

Enquanto eu escrevia, ou melhor, enquanto eu buscava o artigo de Pierre Dardot e Christian Laval (o artigo citado no link anterior), achei por completo acaso um artigo não lido de Edward Bernays chamado The Engineering of Consent, no meu tablet, onde eu lia os artigos pro doutorado. Vai aqui o trecho inicial sem tradução, por pura preguiça (tá aqui uma tradução boa feita por algoritmos):

Freedom of speech and its democratic corollary, a free press, have tacitly expanded our Bill of Rights to include the right of persuasion. This development was an inevitable result of the expansion of the media of free speech and persuasion, defined in other articles in this volume. All these media provide open doors to the public mind. Any one of us through these media may influence the attitudes and actions of our fellow citizens. The tremendous expansion of communications in the United States has given this Nation the world’s most penetrating and effective apparatus for the transmission of ideas.

Edward bernays, The Engineering of Consent (grifo meu)

Edward Bernays foi o personagem sobre quem a BBC fez o documentário The century of Self. Coincidência? Sinais?

Tudo isso me lembra o Cântico Negro, de José Régio, esse com uma vibe anti-influencer:

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

José Régio, Cântico negro

O amor, eu já disse aqui uma vez, é uma experiência real e print('singular ' * 10000) de conexão entre seres humanos. O amor romântico em si não tem nada de censurável, nem mesmo sua artificialidade pode ser condenada, o problema é seu agenciamento pelo mercado capitalista, é a sua transformação em algo não singular, mas repetível — e numa meta almejada por um público em torno do qual distintos mercados florescem, como, por exemplo, o mercado turístico.

Para encaixá-lo no modelo de reprodução capitalista, a simplificação aplaina e transforma o amor em algo insosso. As arestas são mascaradas, porque não são comercializáveis. Talvez poucos o comprassem se soubessem dos custos implicados, se conhecessem suas feições reais. Quem não conhece tais feições pode contemplá-las como a arte as apresenta, por exemplo, nessa preciosa cena de Gênio Indomável, ou como elemento fundamental de A chegada. Aliás, A chegada é um filme nietzscheano, ele encena a forma mais bonita do amor, o Amor Fati, o amar todas as coisas como se elas fossem necessárias, o dizer sim! — se transformar em alguém capaz de dizer sim, um Jasagender.

O amor revela o melhor de nós, mas também nos expõe e nos abre à possibilidade de ser vulnerados. E assim o medo predomina, silencioso e ubíquo, mascarado pela exibição contínua da hostilidade (projeção teatral de uma coragem ausente). Sentimos vergonha do medo que sentimos, da ameaça real e concreta que o ser humano representa para outro ser humano (homo homini lupus) e assim nos envergonhamos também de acreditar em outra coisa, pois isso poderia parecer fraqueza. E o maquiamento (edição) das aparências, central para uma sociedade orientada ao espetáculo e dependente do fomento do egoísmo, cala ainda mais fundo a ânsia de manifestar o amor, pois quem teme a vulnerabilidade do amor teme também parecer ridículo aos olhos dos outros. Nesse cenário, a coragem e a abertura necessárias para assumir os riscos de amar e de acreditar no amor alcançam níveis irreais e tornam quase proibitiva sua experiência e sua expressão.

O medo que atravessa a nossa sociedade, como um fantasma, irreal e indizível, não pode ser combatido instrumentalmente, com ferramentas forjadas em bases epistêmicas, pois como eu insisto em dizer todo o medo está sempre justificado. Só a promessa de algo profundamente desejável pode nos fazer encarar os espinhos e os fantasmas que cercam o amor, só a experiência concreta e singular do amor nos faz acreditar naquilo que disso pode vir a ser. A experiência real da conexão entre seres humanos é o único elemento que pode dissipar a bruma de desconfiança que nos cerca.

Recortei esse depoimento duro e precioso sobre diferentes lições do amor do documentário Humans.

Amor, jogos e linguagem

Que fique claro que esse texto não é uma crítica a ninguém, tampouco uma doutrina sobre amor e relacionamentos. É apenas a expressão de minhas opiniões e idéias sobre tais temas e, naturalmente, essas idéias podem coexistir pacificamente com diversas outras. A possibilidade de coexistência, depende, como tantas outras coisas, do diálogo. A única força que pode oprimi-la é o silêncio, e a indisposição para conversas francas.

Escolher a própria máscara é o primeiro gesto humano e solitário

Clarice Lispector

Alguns amigos me tomam por romântico. Talvez eu o seja. O que eles não sabem é o alcance do meu romantismo. Eu acredito que qualquer imbróglio amoroso pode ser resolvido pela disposição honestas das partes para o diálogo. Tudo pode ser minuciosamente formulado em expressões lingüísticas compreensíveis. Sou mesmo partidário do adágio feminino: “vamos discutir a relação”. É evidente que essa expressão ganhou fama por sua natureza pejorativa, mas, apesar dos abusos que ensejaram a má reputação, ainda resta um quinhão de sabedoria nessa sentença. O diálogo não é instrumento do sucesso, o que se garante ao praticá-lo é comunicação honesta, prática, eficiente, não a dissolução dos problemas e o retorno imediato ao estágio anterior de paz. Às vezes ele torna mais clara a incompatibilidade entre duas pessoas; contudo, quase sempre é melhor a certeza da inadequação do que a garantia fundada em desencontros, em ilusões engendradas por desentendimentos que se depositam tediosamente, sem se fazer sentir, no espaço cotidiano de uma vida comum.

Permitam-me explicar a relação entre a epígrafe e essa concepção de relacionamento segundo a qual o diálogo tem papel tão importante. Incontáveis teóricos, escritores, intelectuais, emprestaram suas forças à tentativa de esclarecer o vínculo e as exigências impostas pela relação entre o indivíduo e a sociedade, ou a comunidade. Não sem alguma controvérsia poderíamos identificar um elemento comum a muitas dessas tentativas: a superposição de algumas premências da comunidade sobre o indivíduo. Em nome do bem comum abdicamos, ou melhor, polimos as arestas que tornam o trato social áspero, rude, e vestimos máscaras. Bem, o que acontece é que por essa razão podemos falar de atores sociais (conforme Erving Goffman), ou de máscaras da civilização (conforme Jean Strarobinski). Para o bem da comunidade nos comportamos de maneira relativamente regular e, quando agitados por interesses particulares, atuamos segundo padrões igualmente regulares através do quais podemos ter dos outros o que queremos. A literatura de Clarice Lispector pode, com alguns passos, extrapolar o limite de qualquer análise sociológica semelhante, mas no caso da frase em epígrafe, ela serve magnificamente para ilustrar o que se quer dizer quando se trata desses temas. Não sentimos tantas vezes que mesmo os desvios de conduta parecem orientados? Parecem seguir uma norma? Os rebeldes não aparentam ser tão “enlatados” quantos os “normais”? Ora, mas se talvez ainda não esteja clara a ligação entre a frase e os relacionamentos, perdoem-me. Na minha opinião o amor é pleno despojamento dessas exigências. Perto de quem amamos, sentimos a liberdade primeva anterior a todas as máscaras e naquele instante prosaico em que estão abraçados, deitados, compartilhando qualquer trivialidade, os amantes fruem de uma intimidade sem par e este nexo é a mais poderosa experiência do amor. Eis o primeiro forte traço do meu romantismo.

Não sem preço essa abertura e liberdade se instalam. Freud, em O mal-estar da civilização, observou que o amor é uma via certeira para felicidade e por isso fonte segura de sofrimento. Quem já experimentou o amor pode testemunhar a verdade dessa afirmação. Assim identificamos o segundo traço do meu romantismo: a crença de que os instantes que o amor nos oferece quase sempre valem as dores que porventura ele cause. Esta herança é tributária a influência de Vinicius de Moraes na minha formação sentimental e ela se exprime por completo nos versos de um samba de Vinicius:

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

Como dizia o poeta

Desse modo vocês têm uma demarcação frutífera das fronteiras do que eu compreendo por amor.

Voltemos então aos aspectos práticos das relações, tendo em mente o que eu julguei ser importante. Tratemos, pois, dos jogos. Já enfatizei a importância do diálogo para resolução de problemas. Porém, no domínio da linguagem nem toda expressão se ajusta à idéia de que ambas as partes têm direito à palavra e deveriam estar abertas para ouvir o que cada uma tem a dizer, com total disposição para acatar o argumento do outro, quando fosse necessário. As palavras podem ser empregadas para fazer prevalecer uma posição sobre a outra, a serviço da conveniência de uma das partes. Quando duas pessoas que se amam propõem formas diversas para lidar com uma situação (um problema, uma adversidade qualquer), o que está em causa não é quem é melhor (mais inteligente, esperto, dinâmico, etc.), ou quem lida melhor com uma circunstância, mas qual é o caminho mais eficiente para se ver livre do problema que obstrui a relação. Quando a unidade entre duas pessoas, característica do amor, se converte em associação entre duas pessoas, estamos novamente no terreno das máscaras, onde cada gesto é calculado não mais em função do que é comum, mas do particular, num jogo plenamente identificável, com traços e semelhanças que podem, inclusive, ser ensinados. A autonomia, autenticidade daquele instante anterior no qual as máscaras haviam sido depostas, cede lugar à heteronomia dos jogos, dos instrumentos através dos quais manipulamos (consciente ou inconscientemente, diga-se de passagem) os outros. Aqui estamos na área fronteiriça do amor, dos relacionamentos, onde tudo que é valioso cai por terra, torna-se trivial e prosaico. Quando o bem de um é mais importante que o bem de dois, não há mais espaço para o amor.

Gostaria ainda de me estender um pouco mais sobre manipulação, jogos, mas ando sinceramente fatigado por tudo isso. Essa agenda de debate já figurou nos últimos dias por tempo demais, por isso peço perdão aos meus amigos e argumentadores-combatentes. Talvez eu retome o tema mais adiante, noutro dia, quem sabe. Acrescento apenas mais algumas palavras de Vinicius, agora partilhadas pelo mestre Tom:

O amor é a coisa mais triste quando se desfaz

O amor em paz

PS. Essa letra, aliás, faz parte do repertório da minha constituição sentimental. Ela expressa integralmente algo tão significativo pra mim quanto “Como dizia o poeta”, só que num tom mais cadenciado e melancólico, ao meu estilo.