Encontrar os outros

E

Não é preciso estar só para desejar encontrar os outros. Sempre tive bons amigos e amigas e mesmo assim tinha também a vaga aspiração de encontrar pessoas como eu. Que merda é essa, “pessoas como eu”? — Eu não saberia explicar! Não é como se eu tivesse uma lista de critérios, ou como se existisse uma identidade comum que eu pudesse apresentar quando perguntado, era mais como a ideia imprecisa de uma atmosfera que eu reconheceria se a encontrasse. E durante muito tempo acreditei nisso. Quando eu fui pra São Paulo, em 2010, aos 29 anos, já não era jovem o bastante para ser ingênuo e ainda assim ainda acreditava que poderia encontrar essa atmosfera que eu buscava.

É como se, instintivamente, eu aspirasse desde jovem pertencer a uma atmosfera semelhante a de Paris da primeira metade do século XIX, a Paris iluminada pela presença de Alexander von Humboldt. Hoje em dia eu penso que é preciso reconhecer a amizade — as pessoas que encontramos ao largo da vida e com as quais, com sorte, criamos nossa própria atmosfera — mas também constatar que as atmosferas como a de Paris já não existem mais. Somos talvez muito individuais (egocêntricos) para formar algo tão gasoso como uma atmosfera e nossa ciência já não tem mais nada de poético, ela no máximo pode ser robótica. O que eu quero dizer é que talvez seja preciso reconhecer o exílio e abandonar o sonho (ingênuo?) da atmosfera, reconhecer o caráter intransponível daquilo que nos separa. Os encontros são fortuitos e não podem ser provocados, isto é, não podem ser induzidos por ações instrumentais como aquelas de quem domina uma técnica de manipulação de séries causais. No entanto, o exílio pode ser evitado (embora o solipsismo não).

A visão no sentido literal é inegavelmente importante e central, mas a visão no sentido espiritual é ainda mais ampla e irredutível (porque inclui a imaginação). David Shrigley

O caso é que a gente só consegue ver essa atmosfera quando consentimos em agir fora dos trilhos da normalidade e nos permitimos ser estranhos. (Pouca gente é estreita demais para não ser estranha, a maioria está apenas acomodada na estabilidade do normal.) Quando nos permitimos agir assim podemos ver nos outros as nossas próprias estranhezas e passamos a estar mais à vontade entre estranhos. Estar à vontade é tudo! Mas é preciso coragem para estar à vontade num mundo como o nosso, onde ainda há tanto que temer.

Uma seleção de filmes que abordam a estranheza e o anormal de distintas formas.

Talvez essa atmosfera fantasiada não seja nada mais que um ambiente formado pelo predomínio da amizade. Em O sofrimento do jovem Werther, Werther fala saudoso sobre como na presença de uma amiga ele sentia superar-se, “tornando-me tudo aquilo que serei capaz de ser”. Numa entrevista que eu já mencionei aqui, Yamandu Costa fala sobre o que é ser amigo, ele diz: “uma coisa que me chama atenção nos meus amigos é como minha figura melhora quando eu tô com eles”.

Yamandu fala sobre o que é ser amigo aos 7’08”, o vídeo já está no ponto da sua fala.

Há algo na amizade que só se pode mencionar usando os verbos fortalecer, nutrir, e que nos impele em direção a nós mesmos. Algo que nos permite aceitar a transformação — a perda da autonomia — sem que isso nos pareça um ônus, um preço muito caro.

O encontro e a abertura oferecem oportunidade para que venham a tona aspectos desconhecidos de nós mesmos, aspectos que nunca tiveram ocasião de aparecer porque não podem ser adequados ao normal (ao princípio de realidade, poderíamos dizer). A experiência da conexão com os outros talvez se mostre de modo mais tangível no trabalho dos atores, e assim conclui Amy Cuddy numa conversa com Julianne Moore:

— Parece que quando você se torna presente, permite que os outros estejam presentes. A presença não torna você dominante no sentido alfa. Na verdade, permite que você ouça as outras pessoas. E que elas se sintam ouvidas e se tornem presentes. Você pode ajudar as pessoas a se sentirem mais poderosas, ainda que não consiga lhes dar poder formal. Ela fez uma pausa e seu rosto se iluminou.
— Isso! E quando isso acontece, quando sua presença consegue evocar a presença delas, você eleva tudo – concluiu.

Amy Cuddy, presença

Presença é o nome do estado em que nos encontramos disponíveis e abertos aos outros, sem qualquer sombra de ameaças nem distúrbios. A amizade talvez seja então uma circunstância natural em que nos sentimos presentes, é quando encontramos, por acaso, pessoas que nos fazem presentes, com quem podemos estar sem máscaras e aprender a agir autenticamente. Pessoas com as quais nossas inibições se desarmam, que nos induzem a uma lucidez indescritível (como descrever a lucidez?) e com quem aprendemos verdadeiramente quem nós somos. É como se antes disso não apenas não soubéssemos quem somos, mas não pudéssemos saber. É claro que o acaso é importante já que não podemos induzir instrumentalmente encontros, mas a presença sublinhada por Amy Cuddy também os favorece, pois a presença aguça nossa capacidade de ver manifestações de inteligência.

A ipseidade, a singularidade da nossa própria vida quase nos compele ao exílio, ou pelo menos no meu caso, me empurra em direção à misantropia. Então parece como se fosse necessário um novo olhar, um olhar que fosse capaz de ver o que está cifrado na convencionalidade, sob pena de enxergar nada senão superficialidade por toda parte. Tornar visível o que não se vê, fazer medrar dentro dos outros uma semente que já se encontra lá. Aprender a reconhecer o outro em si e o si no outro, como se ali existissem não dois, mas um, talvez seja a única maneira de deixar o exílio e de dar lugar a uma atmosfera que não pode ser senão a confluência de muitos (brainet).


Uma das coisas mais legais dessa cena pela qual eu sou apaixonado é que ela contém múltiplas camadas. E numa delas Rachel Menken escancara a desconexão de Don Draper, o fato de que ele não pode experimentar a vida senão como um teatro cínico e despojado de verdade onde tudo parece insípido e artificial.

Primeira temporada de Mad Men. A melhor parte é quando ela assume altivamente que é a própria medida do interesse e que diz que não lhe interessa ouvir inconvenientes na vida de Draper.

O perigo é a identidade do exílio!

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