Democracia exige pluralidade de ideias. Exige argumento, exige debate, mas exige sobretudo vontade — algo que, na sua melhor expressão, produz generosidade (como nos lembrava Nietzsche). Exige não apenas produção, mas também circulação de ideias. Portanto, nada mais danoso à democracia do que a intimidação. Aliás, esse é o sentido da ideia e da luta pela liberdade de expressão. Que ela tenha um aspecto turvo em alguns pontos, sobre se devemos permitir que circulem certos tipos de discurso, não tira a luminosidade da proposta: deixemos que as pessoas produzam e circulem ideias a fim de que as outras possam repensar sua própria experiência (individual, coletiva, social, sexual etc.) à luz do que acharem conveniente, e a gente discute depois o que fazer sobre nossos acordos.
Acontece que esses pontos turvos não são desimportantes, porque não poucas vezes a liberdade foi usada para ferir, controlar, escravizar — a liberdade produziu vítimas (o que me lembra Camus: “Mas os campos de escravos sob a flâmula da liberdade, os massacres justificados pelo amor ao homem pelo desejo de super-humanidade anuviam, em certo sentido, o julgamento. No momento em que o crime se enfeita com os despojos da inocência, por uma curiosa inversão peculiar ao nosso tempo, a própria inocência é intimada a justificar-se” — sempre atual). Surgiram então vozes que muito justamente reivindicavam a presença no debate público. Presença importantíssima, uma vez reconhecido que grupos inteiros da sociedade continuam excluídos ou sub-representados na composição de suas vozes. E continuam oprimidos. No entanto, é temerário, embora muito comum, crer que a opressão que ainda persiste será derrotada por uma ocupação topológica do espaço público, por uma espécie de conquista de território ocupado. E aí entra a intimidação. Pois o medo de produzir vítimas (ou o cuidado para não permitir isso) deu lugar ao poder vigilante que intimida o opressor [1]. E o caráter turvo de todo o cenário se complexificou com a reação que algumas pessoas tiveram ao se sentirem ameaças pela presença dessas novas vozes. Elas reagiram empregando os estereótipos geralmente utilizados para controlar essas vozes. O resultado foi aquela velha fórmula: “não sou X, mas …”. O espaço público entendido territorialmente ficou assim ocupado de forma significativa não só pelas novas vozes, instaladas precária e recentemente neste espaço, mas também por antigas vozes ressentidas que denunciam o que enxergam como uma ameaça. E a classe heterogênea de pessoas que não fazem parte dos dois grupos se viu entre um fogo cruzado [1]. No entanto, as pessoas que não se sentem ameaçadas podem ter críticas a fazer à prática ou à teoria que orienta essas novas vozes, podem ter diferenças [1]. Aliás, chamo de novas vozes até pra dar uma dimensão da pluralidade interna dos próprios movimentos, pra que não seja necessário instanciar o caso. No marco democrático da liberdade de expressão, uma crítica pode ser uma ocasião para refletirmos sobre nossas próprias práticas e teorias. Ou pode ser apenas um mal-entendido, pode ser muitas coisas. Entretanto, pra que possamos avaliar o que as pessoas dizem, elas tem que estar a vontade para falar. Um mau professor não é apenas um professor que não sabe que não é um depósito de conhecimento a ser despejado sobre os alunos, é também aquele que não cria as condições necessárias para o questionamento, para a reflexão — e para a expressão. O professor, penso eu, deve criar o ambiente necessário para que a liberdade da sala da aula prevaleça sobre a reação natural do aluno de se intimidar diante da autoridade do professor. Só assim podemos sentir o efeito real da liberdade de pensamento, seja na educação, seja na política.
A intimidação nasce da autoridade semelhante a do professor em sala de aula. Mas ela é até mais intimidadora. Porque a autoridade do professor é essencialmente epistêmica, isto é, relativa ao conhecimento. A autoridade que se mobiliza como meio de intimidação é moral. Não há nada mais intimidador, para quem compreende a dimensão danosa da liberdade, do que ser acusado de ser opressor. Por questão de justiça é preciso destacar que apenas uma parte das novas vozes usa a tática da intimidação, mas os danos são reais — e em especial junto às pessoas que certamente apoiam suas ideias. Os verdadeiros alvos dessas críticas não se preocupam com elas, porque eles nem reconhecem a “autoridade” dessas vozes. Eles continuam a pronunciar o “não sou X, mas …” porque eles não admitem que sejam X. A luta fica assim engessada entre alguém que não admite reconhecer-se como X, tenha dito ou feito o que for, e outro que vê em todo o fazer e dizer alheio um potencial dano e um potencial opressor (e também porque já compreendeu a dinâmica de poder embutida na capacidade de apontar opressores). Sendo assim, a intimidação já é um reconhecimento da alteridade, já é um “claro que não posso fazer parte dessa voz, claro que essa voz tem uma autoridade”. É certo que também um professor tem uma autoridade, mas a função mesma do professor é subordinar a autoridade àquilo que é o mais importante: o aprendizado. Do mesmo modo, na democracia, a autoridade das novas vozes é inegável. Mas ela deve estar subordinada à nossa crença mais fundamental no papel da produção e circulação da mais rica diversidade de ideias. E esta autoridade não pode nem deve ser instrumentalizada em nome da constituição de poderes de execução e legislação de tribunais morais. Não deve constranger o exercício da liberdade de pensamento — manipulando arbitrariamente o campo do repreensível e do censurável [2].
Podemos acreditar que essa intimidação beneficia alguém, na medida em que evitaria novos oprimidos e novos danos, mas a única vítima nesse caso é a democracia. Até porque, vigilância (e justiça) é algo diferente de intimidação.
[1] O caráter turvo da questão repousa justamente sobre o fato de que se pode questionar seja o pertencimento da pessoa que faz uma crítica ao grupo dos “não ameaçados”, seja a autoridade de quem expõe uma crítica — supondo ou definindo critérios para aferir essa autoridade. E os abusos que disso resultam dependem da capacidade e da autoridade dos que podem dizer quem é o opressor. E nesse pântano no qual garantias argumentativas funcionam como axiomas, o curto-circuito vira a própria regra de funcionamento do discurso na medida em que favorece a criação do poder que quase arbitrariamente faz os críticos transitarem do grupo de pessoas “não ameaçadas que tem uma crítica” ao grupo das “pessoas ameaçadas” que dissimulam sua ameaça. E elas então passam ao mesmo grupo das pessoas que dizem “não sou X, mas …”. Só que são acusadas de mascarar o caráter opressivo das suas palavras por meio de uma sofisticação que os que dizem simplesmente “não sou X, mas …” não empregam. Assim nós entramos no redemoinho das intenções — e dos tribunais que se constituem para julgá-las. A estratégia da denúncia de intenções pode ser resumida assim: ela consiste na acusação de que o outro esconde seus desejos e interesses. Daí a necessidade de fazê-los aparecer na esfera pública na forma de denúncia, de acusação. O desejo e o interesse para quem os sentem são coisas dadas, mas para os outros são sempre expressões, daí o caráter pantanoso da discussão. O desejo e o interesse nem sempre se manifestam com a objetividade de um argumento. O que não significa que não se possa discutir intenções, mas não me parece razoável fazer dessa estratégia uma forma privilegiada de argumentação, porque ela depende essencialmente de um tribunal moral. O tribunal naturalmente não se limita a julgar os casos em que a expressão das intenções é clara, ele também se incumbe da responsabilidade de definir os critérios das expressões e interesses, portanto, ele se constitui também como poder de falar do desejo e do interesse alheio. [2] Claro que ninguém acredita estar manipulando arbitrariamente os limites desses campos, todo mundo se crê justificado em afirmar o que quer que seja e em acusar qualquer um. E é a partir dessa tensão que se engendra o poder que nós devemos discutir no sentido de evitar o redemoinho das intenções, um caminho que não costuma nos levar a acordos. Há uma tensão aí que não apenas não precisa ser resolvida, mas que não pode ser resolvida. E não à toa Márcia Tiburi escreveu um livro sobre um caso limite que não poucas vezes é tratado como regra: Como conversar com um fascista.
PS. Ainda há muito a ser dito sobre o tema, mas por ora fico por aqui, para não me estender em demasiado.
PPS. Eu criei esse blog como um exercício de expressão, desde então são quase 400 posts. Agora decidi que ele deve se tornar um exercício sistemático de expressão, embora ainda relax, de modo que tentarei escrever pelo menos um post por semana, preferencialmente às quartas. O que não significa que não possa publicar também nos outros dias.