Há coisas que nós sabemos, mas que só reconhecemos completamente quando falamos ou escrevemos sobre elas. Talvez porque as tenhamos sempre diante dos nossos olhos. Precisamos externalizá-las, torná-las objetos exteriores que podem ser manipulados com o olhar e o pensamento — algo independente de nós. Foi o que aconteceu com minha misantropia.
Nada mais familiar do que meu ódio pela humanidade, nada mais insistente do que a tendência a notar o pior nas pessoas e constatar a artificialidade de suas palavras e ações. O teatro das ações humanas inevitavelmente trai a leviandade com que as pessoas julgam a inteligência umas das outras e a desfaçatez com que creem poder dissimular suas intenções e desejos. Tudo isso era algo tão presente em mim que eu mal podia notar, era a própria moldura do meu campo de visão. Mais uma vez, foi Daniel Day-Lewis quem me fez ver o quanto essas lentes são capazes de envenenar.
A misantropia de Daniel Plainview e sua cega confiança na família, nos laços de sangue.
Antes disso, no entanto, uma espécie de antídoto já havia sido inoculado em minhas veias. Foi o que impediu que meu ódio me consumisse. E esse antídoto conta algo sobre mim tanto quanto minha misantropia.
Quando eu tinha pouco menos de 20 anos li um livro que, se não me falha a memória, era um caderno (ou cadernos compilados) de Che Guevara editado para publicação. Com o passar dos anos a memória dos livros que lemos desvanece, mas alguma coisa às vezes fica. Eu já mencionei aquilo que ficou em mim da leitura dos cadernos de Che, uma frase, enunciada quase com vergonha, que dizia algo mais ou menos assim:
Ainda que possa parecer piegas devo dizer que o verdadeiro revolucionário é movido por um grande sentimento de amor.
Há muitas crenças e ideias que eu não partilho com Che, inclusive a crença na revolução, mas a maioria das pessoas não conhece nada de sua vida e de suas ideias. Che sofreu com a arma mais nociva do capitalismo, a banalização. O capitalismo consegue transformar qualquer coisa significativa em algo banal pela mera assimilação e repetição (Marcuse insistia sobre esse aspecto). Neste caso, massificação da sua imagem. A mais mínima profundidade é aplainada pela sua redução a um mero imago, um ícone, um totem que circula sem intermediários nem reflexão, convidando as pessoas a imediatamente tomar partido das identidades que apresenta veladamente, como se tratasse da escolha de um time de futebol. Não é a toa que, sem que ninguém se desse por isso, a publicidade assumiu o lugar da Razão no século passado.
Nossas diferenças são menos importantes do que nossos acordos, aquela confissão quase envergonhada disse algo sobre mim e foi a partir disso que comecei a me identificar com a esquerda.
Um guerrilheiro que falava de amor me espantou porque eu simplesmente nunca havia pensado que alguém podia guerrear porque ama, porque foi levado pelo amor. Que o amor pudesse ser a força motriz de uma guerra. Nunca havia pensado por essa perspectiva e não entendia o que isso significava. Guerra para mim era ódio, vontade de eliminar o diferente, todas essas coisas que eu conhecia bem dentro de mim. O amor tinha que ser a paz. Che me fez ver o amor não como mera platitude, uma pasta amorfa e insípida de sentimentalismo barato que nos conecta através de uma rede de coisas vulgares e banais, ele me fez ver o amor como uma força nobre, poderosa, que poderia ser investida em atos e palavras plenos do melhor de nossa inteligência. Isso e meu sentimentalismo bobo e piegas contribuíram para que um contrapeso importante se opusesse a minha misantropia. Não foi pouca coisa, tendo em vista que também tendo à amargura e ao ressentimento. A construção quase inconsciente (em background) de uma imagem respeitável do amor — oposta à figura banalizada do amor romântico — foi importante para conter os danos em minha alma de algo tão imensamente danoso como o ódio. Quem não sabia, hoje sabe o que o ódio pode fazer com a mentalidade das pessoas observando a extrema direita e os bolsonaristas roots.
Em Diários de Motocicleta, a atuação de Gabriel Garcia Bernal reflete com fidelidade o espírito das palavras de Che Guevera.
O meu sentimentalismo piegas e até o desbotado amor romântico vendido nos modelos publicitários dessa sociedade que tem sempre um modelo que oferecer aos que desejam (quem não deseja?) abrigam verdades e meias verdades importantes, que não devem ser descartadas apressadamente.
Permitam-me até o embaraço de defender o amor romântico, a mais capitalista das representações, que adoça nossa vida e estraga nosso paladar. Embora Romeu e Julieta se multiplique como uma praga, repetindo um paradigma da força do amor contra o poder irreversível da morte, há experiências singulares do amor que não são reprodutíveis, porque não são repetem, não podemos vendê-las como modelos que as pessoas podem seguir, dada a singularidade da existência dessas pessoas reais. Eu penso, por exemplo, no amor de André Gorz, esse amor apresentado (e não representado) nas suas cartas a sua mulher, Dorine. Uma singular experiência do amor, que expõem as potencialidades indeterminadas implicadas na conexão real entre dois seres humanos. Até Feynman, ao seu jeito, parece testemunhar em favor da influência dessa conexão ao falar da sua primeira mulher, Arline, em What do you care what other people think?.
Eu gosto especialmente dessa primeira história contada em Human, sobre o impacto do amor na vida de um criminoso. O vídeo já está embutido de modo a começar nela.
PS. E é conveniente lembrar o caráter inseparável do amor e da amizade — mas como representar que sejam coisas diferentes e, ao mesmo tempo, inseparáveis?
Ao longo do tempo a injustiça contra a qual luta a esquerda se sedimenta nas próprias estruturas institucionais da sociedade e dá lugar, por exemplo, ao que se conhece como racismo institucional. Mas a institucionalização da sociedade é um fenômeno recente, de tal sorte que é possível reconhecer que a própria cultura (para usar um termo mais geral) reflete os vícios das práticas sociais, daí porque a palavra “patriarcado” por sua vez ilustra satisfatoriamente a sedimentação cultural que espelha o lugar privilegiado dos homens na sociedade.
Reconhecer esse engessamento institucional ou cultural deveria atenuar a avaliação dos indivíduos que perpetuam a injustiça, já que suas ações são em parte determinadas pela força reguladora e formatadora da cultura e das instituições, mas não é o caso. Embora a esquerda alardeie o profundo enraizamento da injustiça e a necessidade de mudança estrutural, ela não deixa de acusar e denunciar com ênfase crescente as pessoas submetidas à força reguladora das estruturas sociais. É certo que reconhecer essa força não significa anular a liberdade das pessoas (e, portanto, seu quinhão de responsabilidade), mas se somos formatados por elementos exteriores nossas ações não deveriam ser avaliadas como se tivéssemos simplesmente escolhido deliberadamente agir de certa forma. A possibilidade de emancipar-se de um certo modelo de ação e pensamento é um dos mais difíceis objetivos da educação (ou melhor, de uma certa ideia educação). Na contramão da tendência a atenuar o juízo e a (rea)agir conforme o reconhecimento dessa dificuldade, a esquerda tem se mostrado cada mais fascinada pelo poder de denunciar e apontar o dedo (responsabilizar).
Em face da injustiça dos tribunais, da ineficiência de toda a extensão do aparato normativo (legal e moral), a justeza das causas autoriza que sejam erguidos tribunais paralelos e não institucionais; se a justiça (institucional) não pode ser justa porque ela inevitavelmente absorve e reflete a injustiça da sociedade, então é possível tentar reparar essa injustiça no braço, na marra. Parece razoável, porque mesmo que estejamos de acordo com as vias e processos institucionais de mudança, nós sabemos que esses processos são morosos e a vida das pessoas é coisa real e imediata, não dá pra esperar uma transformação enquanto elas enfrentam dificuldades concretas e não poucas vezes dolorosas. O problema é que esses tribunais erguidos a todo instante para reparar injustiças não contempladas pelas nossas ineficientes instâncias institucionais passam sem muita dificuldade da justiça à vingança. Em outras palavras, muitos dos juízes (militantes) encarregados de julgar mal disfarçam o pouco compromisso com a justiça, a vontade de meramente retribuir a injustiça, de inverter o sinal do juízo. No entanto, no contexto da esquerda, essa ânsia costuma passar despercebida porque a legitimidade das causas que a movem parece justificá-la, embora não justifique. Talvez o maior sintoma dessa tendência seja o lacre, a vontade lacrar. Para mim, esse é um inegável indício de corrupção do poder. Ninguém está livre da vontade de lacrar, pois o lacre é nada mais que a manifestação do desejo sádico de humilhar, rebaixar e apequenar o que julgamos que não deveria existir — mas parece necessário olhar esse desejo com honestidade, porque ele é uma expressão de poder (e de arbitrariedade). A esquerda parece fingir que esse desejo não existe, enquanto o canaliza abertamente em direção aos seus “inimigos”. O intuito é claro, reprimir. “Você pode até ter pensamentos preconceituosos ou machistas, mas não deve exprimi-los, externá-los, pois se você exprimi-los eu estou autorizado não apenas a julgá-lo duramente (como se você não fosse o produto de uma cultura) como a despejar sobre você tudo me parecer conveniente para inibir seu comportamento opressor”. Não me parece difícil ver que essa estratégia não dá certo, ainda que, ao contrapor-se a um comportamento indefensável, ela pareça plenamente justificada. Agora, vejam bem, não se trata de sugerir a passividade diante dos muitos absurdos que acontecem diariamente, trata-se apenas de sublinhar que a medida da reação já é em si mesma um indicativo de algo que acontece na psicologia desses que são os agentes dessa justiça não-institucional.
Não é de hoje que as pessoas alertam para os problemas derivados da insistência no politicamente correto. É uma questão de décadas e talvez os efeitos disso tenham se feito sentir de maneira mais clara após a eleição de Trump e Bolsonaro. O efeito principal é uma antipatia pelas bandeiras e slogan geralmente associados a uma identidade, antipatia convertida em rejeição instrumentalizada por líderes da extrema direita. Entretanto, a esquerda segue fascinada por essa estratégia. Embora eu tenha pouca simpatia pelas posições políticas de Antonio Risério, seu livro sobre o movimento negro é um documento imprescindível para compreender — a partir da história americana e do seu contraste à nossa própria — a gênese da estratégia de ação política que está por trás do identitarismo que nós importamos. Apesar do próprio Risério não gostar da ideia, é inevitável não pensar nas ideias fora do lugar. Não resta dúvida que a estratégia de unificar por meio da identidade trouxe vitórias significativas nos EUA, mas isso não significa que ela deve ser transformada em dogma e tampouco que funciona em qualquer contexto e circunstância. Ainda que o colonialismo seja um denominador comum — para usar o movimento negro como um exemplo de uma das tantas lutas da esquerda —, as circunstâncias de cada país são muito particulares e, ainda que possamos aprender e aproveitar a experiência de outros povos, deveríamos estimular a criação de nossas próprias respostas. Em realidade nós criamos nossas próprias respostas, como não cansa de nos lembrar Antonio Simas.
Além desse traço antipático, acusador e justiceiro (em alguns momentos linchador), o que mais me incomoda na questionável importação do modelo de ação política norte-americano é a confiança que ele deposita na repressão e na intimidação dos opressores e a estreiteza de sua concepção de poder. É certo que quem não sofre com a opressão não pode entendê-la da mesma forma. Não é preciso Nietzsche para compreender essa relatividade. Uma pessoa branca que entra numa loja de departamentos dificilmente se sentirá observada e o fato de nunca sentir isso faz com que nunca possa internalizar a indignação, a impotência e a raiva de se sentirgratuitamente objeto de desconfiança. Mas ainda que a falta desse entendimento possa induzir as pessoas a menosprezar o que há de opressor no peso de certas ações ou palavras, não é possível transformar essa situação simplesmente reprimindo e inibindo o comportamento dos outros. Assim como o desejo das sexualidades periféricas (para usar a expressão de Foucault) não pode ser remoldado pelo adestramento — pela surra que Bolsonaro queria dar nas crianças afeminadas — tampouco se pode adestrar as pessoas a entender o sentido do sofrimento e da injustiça pela simples imposição de um padrão de comportamento. Talvez alguém não se importe com isso e diga: “não quero mudar ninguém, quero apenas evitar que os mais vulneráveis sejam atingidos pela insensibilidade das ações e palavras dessas pessoas, não me importa se elas irão mudar ou não”. Esse é um pensamento perigoso, porque não poucas vezes ele reflete um ressentimento que não é capaz de calcular o que poderia ser melhor para o próprio grupo que se está defendendo — nem de articular essa indiferença ao reconhecimento do engessamento (institucional ou cultural) da injustiça. Não que exista uma receita que determine o que é melhor para cada grupo, mas quando nosso juízo sobre os efeitos de certas ações está turvado por sentimentos e intenções que não estão claras para nós mesmos é difícil fazer uma avaliação apropriada do que quer que seja.
A intimidação e a repressão são fatores que podem facilmente ser instrumentalizados, como sabemos desde sempre. Não é preciso nem mesmo prestar atenção aos recentes acontecimentos políticos no mundo, pois a repressão é parte da própria história da sexualidade, a história da repressão do desejo e de seus efeitos. Ou pelo menos assim grande parte dos discursos sobre a sexualidade a apresentam. Foucault parte dessa ideia de repressão para analisar a eficiência dos novos modelos de poder (criticando Freud, Reich, entre outros). Ele diz: se esse novo poder foi eficiente, não é porque interditou e reprimiu práticas e discursos, ao contrário, seu sucesso se deve ao fato de ter feito falar. Estimulou-se um discurso que foi cuidadosamente analisado, classificado, para poder gestionar e disciplinar as práticas. O que tudo isso nos conta é que a repressão tem poder limitado e que há formas mais eficiente se não de dominar, pois não é esse o caso, de conquistar e de atrair. É verdade que com frequência falta abertura naqueles que são os principais alvos da “repressão do bem” da esquerda, mas a crença cega na intimidação torna difícil desenvolver alternativas a essa estratégia e alimenta o narcisismo de pequenas diferenças. Enfim, a indução e o estímulo são muito mais interessantes como estratégia de mobilização (e também de controle, como nos mostra Foucault) do que a repressão e a intimidação que tem circulado abertamente.
Um pedaço de “Diários de motocicleta” em que Che fala da raça mestiça da América do Sul
Não sei qual é a resposta ao desafio de conquistar mentes fechadas às ideias da esquerda, mas como confesso adepto do piegas lembro de uma frase de Che Guevara, lida quando eu era adolescente, que ficou na minha cabeça. Ele dizia algo assim: “Ainda que possa parecer piegas devo dizer que o verdadeiro revolucionário é movido por um grande sentimento de amor”. A cultura do ódio se alimenta do ceticismo em relação ao amor e isso não é pouca coisa. Mas ainda assim há outros sentimentos que podem ser mobilizados para conectar, para amolecer, para sensibilizar. A alegria, por exemplo. Apesar da imensa reserva de ódio, nós temos uma cultura onde também há canais e ramificações que deixam entrar a alegria. O mais difícil é investir e imaginar formas alternativas de discurso, de ação, que possam substituir o segregador apelo a identidades por algo que estimule as pessoas a agir de outro modo em relação às diferenças. Alternativas que sejam capazes de neutralizar o apelo sedutor de converter certos grupos e identidades em inimigos contra os quais as pessoas são mobilizadas e ao redor dos quais se fortalece uma identidade (geralmente nacionalista). Quando esse apelo for neutralizado teremos dado um grande passo para convencer as pessoas que a esquerda busca algo que também lhes interessa. Caso não consigamos encontrar essa estratégia, a segregação legitimada vai continuar a levar água pro moinho daqueles que querem perpetuar a luta do bem contra o mal, ou qualquer outra forma em que esse binarismo se expresse, pra delírio de pastores ansiosos para dizer onde as pessoas devem ver o mal e o perigo e em explorar o desamparo de gente cada vez mais dissociada de laços comunitários que antes soubemos criar.
Esse é o primeiro de uma série de posts reunindo críticas à esquerda. E o primeiro tema da série não podia ser outro senão o poder — embora em realidade o poder seja o fio que costura e atravessa todos os temas.
Uma das contribuições mais fascinantes de Foucault à filosofia é o seu modo de conceber o poder. Tenho em vista especialmente a Vontade de saber, primeiro volume da sua História da Sexualidade, ao qual eu não me canso de voltar. O mais importante aspecto dessa concepção é a crítica dirigida aquela que talvez seja a única concepção de poder existente, a que todo mundo conhece e usa, o modelo binário. O modelo binário apresenta duas posições numa relação de poder: a do opressor e a do oprimido. É um paradigma altamente explicativo, como a própria dicotonomia entre bem e mal. Com ele você pode organizar o mundo muito claramente, se posicionar em relação a ele, agir e reagir. Segundo esse paradigma, toda relação de poder se apresenta como um certo disnível de forças que constitui o quadro no qual o oprimido se encontra submetido ao arbítrio do opressor.
Foucault não nega esse modo de representar o poder, sua posição é muito mais cuidadosa e sofisticada que um simples desejo de falsificar. O que ele nos diz é que a relação de poder é mais complexa que isso. O poder se constitui em todos os lugares — e mais do que isso, ele se mantém não apenas pela força e arbítrio do opressor. É aí que as coisas começam a ficar incômodas.
Foucault diz: e se pensarmos o poder como uma espiral? E se não houver apenas dois polos de força lutando entre si, como num cabo de guerra, mas uma [mesma] força que vai e vem conjuntamente e que se reforça nesse movimento contínuo? Só quando algo mais concreto se apresenta é possível entender o que significa essa imagem e o que ela pode acrescentar de novo. Foucault diz, o oprimido também tem prazer em resistir. E ainda: a resistência gera poder. Assim, o rebelde também tem interesse na manutenção da ordem contra a qual luta. Uma vez desfeita a ordem opressiva (o modelo da sexualidade repressiva é o exemplo privilegiado), o rebelde perde também seu poder (e seu status) nessa configuração de forças — o poder de resistir e tudo que isso envolve, o que não é pouca coisa.
Aí então se vê que a força vetorial do modelo binário, que lança o arbítrio e o poder do opressor contra o oprimido, não representa bem tudo que está em jogo nessa dinâmica, em especial a capilaridade da dinâmica do poder. Não é como se o oprimido fosse um sujeito alheio e indiferente ao poder e prazer instaurados pela dinâmica de resistência. Se você perde de vista esse fator, se você deixar de notá-lo, não saberá quais são as regras que governam a experiência do poder em suas múltiplas expressões. Por consequência, você não poderá ser um agente eficiente na luta pelo poder, porque está vendo menos fatores determinantes do que [existem]. Desculpem pelo vocabulário determinista e realista, mas eficiência causal implica controle e influência sobre fatores determinantes (mesmo que estes sejam intencionais). Se você não quer ter controle sobre os fatores que determinam o poder ou se você acha que há formas não-causais de controle e eficiência, bem, boa sorte, eu simpatizo com a sua posição mas é sempre difícil argumentar nesse sentido numa sociedade cientificista.
Assim, é claro que um dos mais centrais problemas da esquerda é não ser capaz de enxergar a corrupção da sua própria alma, isto é, a fascinação que o poder/prazer de resistir gera naqueles que o exercem. Por consequência, ela não pode ver tampouco como isso dá lugar aos tribunais e à intimidação que parecem a regra da ação política da esquerda, fazendo com que uma agenda tão nobre* quanto a sua seja preterida em favor de coisas tão hostis, toscas, violentas e rasteiras quanto as ideias de gente como Bolsonaro ou Trump. O afastamento das pessoas que não se sentem unidas por um laço de identidade é uma consequência natural da cegueira para o uso e o abuso do poder dentro da esquerda. (Unidade entre os iguais é certamente importante, mas é ainda muito, muito pouco.) Tenho a impressão — e talvez seja uma grande ingenuidade da minha parte — que pra que as pessoas se sintam inclinadas a escolher tudo que representa Trump e Bolsonaro é preciso que algo não esteja funcionando bem no maquinário das nossas ideias e práticas.
* Não deixo de sentir um incômodo ao apresentar assim, tão romanticamente, a agenda da esquerda. É porque eu tenho um certo otimismo antropológico (anti-hobbeseano) de que as pessoas sempre preferirão a fraternidade (o amor) ao ódio (e ao medo), desde que a gente construa as condições adequadas para isso. Pois é muito mais fácil cultivar o medo que o amor, e muito mais fácil encontrar inimigos que amigos, mas o amor ainda assim é uma força poderosa quando bem utilizada. Mas é isso, desculpa a pieguice.
Oh Sunday, Monday, autumn pass by me And people hurry on so peacefully A group approaches a policeman He seems so pleased to please them It’s good at least to live and I agree He seems so pleased at least And it’s so good to live in peace and Sunday, Monday, years and I agree
A falta dessa paz que Caetano canta tem nos escravizado, tem nos mantido reféns dos restauradores da ordem. Eu sempre me surpreendo com o modo como as pessoas em Madrid, no centro ou nas periferias, vão pela rua num nível de distração que a maioria dos brasileiros não costuma ter. Às vezes, enquanto estou caminhando pela calçada, uma pessoa se aproxima e começar andar atrás de mim, no mesmo passo. Eu imediatamente dou um passo pro lado e me viro. É um reflexo. Vejo espantado — e eu reparo sempre que isso acontece — as pessoas abrindo a porta de casa sem estarem atentas a quem se aproxima. É preciso ter dentro de si uma segurança que não parece tão comum no Brasil, algo que se entranha forte em nossa alma, como se entranha o medo. Mas pode ser que eu esteja enganado. Mesmo no centro de Salvador — Campo Grande, Garcia, Largo 2 de Julho, Relógio de São Pedro, Pelourinho — onde há faixas da cidade em que vivem muitas pessoas ricas, a sensação de segurança é baixa. A gente sabe que os mais ricos geralmente são bem servidos de segurança. A Avenida Paulista, e a região do centro de São Paulo, é uma outra história. Consolação, Bela Vista, Rua Augusta e até a Frei Caneca, são lugares que você pode sentir o tipo de tranquilidade comum aqui em Madrid (e na London de Caetano, imagino)…
(A menos que você seja gay. Neste caso você corre o risco de encontrar alguém como Bolsonaro, alguém que acredita seriamente que batendo numa criança ela “se corrige” e deixa de ser gay. Se este for o infortunado caso a pessoa toma um corretivo pra deixar de ser gay. Não precisa ser gênio pra saber que a violência não inibe o desejo, mas apenas induz a restrição do comportamento — ainda que seja precisamente isso o que muitos querem. Se um homem que gosta de mulheres levasse um choque [qualquer coisa que fosse o equivalante automatizado da violência] toda vez que olhasse para uma mulher na rua ou em qualquer parte, ele logo poderia se sentir inibido a olhar para mulheres [manifestação comportamental do desejo] mas de forma alguma perderia o desejo. O mais provável é que esse pobre diabo entrasse em depressão e morresse, mas ele nunca viraria gay. Assim me parece: ninguém perde o desejo que tem e ninguém escolhe o desejo tem, o desejo se aceita ou se inibe suas manifestações. Quem acha que pode forçar as pessoas a desejarem segundo o que lhe parece correto só pode ser um idiota que nunca prestou atenção ao seu próprio desejo.)
… e essa tranquilidade faz falta. As pessoas desejam estar em paz, andar pelas ruas sem preocupações. E então quando elas se perguntam: “Certo, essa falta de paz e tranquilidade resulta da criminalidade e da violência, como fazemos para acabar com isso?”, duas costumam ser as respostas: educação e punição. A educação é em realidade somente um atestado de boas intenções. Um discurso que todo mundo repete mas que ninguém pratica, um discurso, aliás, próprio à tão característica hipocrisia brasileira e tão falso como uma nota de 3. Muitos dos que pedem burocraticamente educação são os primeiros a chamar de vagabundos os professores que exigem melhores salários e condições de trabalho. E que apanham por isso. Na certa, são pessoas da turma dos que acham que educar é vocação e que por isso os professores não precisam receber bons salários. Conveniente! Um comprimisso com a educação que não se manifesta em nenhuma ação concreta que produza melhores condições para que as pessoas se sintam estimuladas a trabalhar na área. Professor tem que ser um mártir que aceita de saída que vai sofrer pelo resto da vida. A outra solução para a violência todo mundo já sabe, a punição. A justiça vigilante, não apenas dos policiais, mas dos cidadãos de bem armados e atentos para exterminar a criminalidade em toda ocasião em que ela surgir (segundo seu juízo).
O cidadão de bem, por Laerte
E pra legitimar a vontade de ser justiceiro que enfeitiça os homens que se sentem guerreiros na luta do bem contra o mal é preciso um sistema político que normalize essa atitude, um sistema policialesco no qual a paz viria, vejam só, da eterna intimidação dos homens de bem. Intimidação é a palavra. Da eterna ameaça da violência por parte dos vigilantes, dos guerreiros armados. Essa paz que supostamente viria da guerra ou da constante vigilância armada é bem diferente da paz nas ruas de Madrid e das cidades europeias. Quem não sabe a diferença entre a intimidação e paz nunca conheceu esta última e suspeito que, secretamemte, quer apenas uma desculpa para intimidar. A paz na Europa é o resultado da preocupação histórica e política em diminuir a desigualdade, uma preocupação que não existe entre nós (curiosamente, nem mesmo como discurso hipócrita, como no caso da educação).
Aos que acreditam no poder sanador da violência/vigilância nunca lhes ocorre pensar que a falta de paz e segurança nas nossas cidades tem relação com a profunda desigualdade dentro da sociedade brasileira. Nunca lhes ocorre que a violência possa ter relação com aquilo que Elton Medeiros cantou numa de suas músicas:
Uns com tanto Outros tantos com algum Mas a maioria sem nenhum
E não é sem razão que não lhes ocorre pensar isso. Quem admite que a desigualdade tem estreita relação com a violência se vê forçado a refletir sobre essa ela e, consequentemente, atuar para mitigá-la. E para esse problema não há soluções tão fáceis como simplesmente aumentar o número de vigilantes e punidores nas ruas. A única solução possível, que é imensamente complexa, requer que se encontre meios de distribuir a riqueza e de diminuir a desigualdade. Mas a quem interessa diminuir a desigualdade no Brasil?
A verdade é que se a sociedade brasileira se transforma, certas pessoas perdem o privilégio, perdem o status que tem dentro dela. Perdem a falsa respeitabilidade de que disfrutam nesse sistema. E a expansão dessa respeitabilidade é um obstáculo à manutenção da nossa escravidão pelo medo e pela pobreza. Para conservar essa ordem existe uma receita de escravidão, uma receita que nos induz, de tempos em tempos, a recorrer às figuras de ordem, como em 64 e como agora. A receita consiste em manter altos os níveis de desigualdade e, sempre que surgir uma crise — e elas sempre surgirão —, vender como solução para os problemas derivados dessa desigualdade a figura de uma autoridade que contornará o medo reinante com soluções paternalistas não negociadas, impostas. Nenhum pai autoritário negocia com o filho, ele apenas ordena e o intimida a fazer o que é supostamente necessário. Essa receita autoritária, ao invés de nos redimir do caos, nos aprisiona nesse ciclo do qual não podemos sair, porque ela não é verdadeiramente uma solução, mas apenas um teatro feito para dissimular a perpetuação das condições iniciais. E porque as pessoas estão aprisionadas pelo medo, desencantadas com o fracasso das soluções políticas negociadas após as primeiras intervenções das forças da ordem, elas aceitam qualquer atalho, qualquer caminho rápido que pareça restituir o que elas em realidade nunca tiveram. Marcos Nobre fala sobre algo assim num dos seus últimos artigos na Piauí. E para sair desse ciclo de medo só cultivando uma das virtudes mais difíceis de se alcançar, a coragem. Para uma sociedade forjada na escravidão é muito difícil encontrar a coragem necessária para se emancipar das forças paternalistas da autoridade e da ordem. O Brasil foi construído a revelia das obras da escravidão, desconsiderando as marcas que esse sombrio legado deixou na alma das pessoas e em seu modo de ver o mundo.
Em seu livro sobre o movimento negro, Antonio Risério fala das marcas hediondas que a escravidão deixou na sociedade americana. O passing (as white) talvez seja uma das mais dolorosas de constatar, porque ela tem como símbolo maior Michael Jackson. No Brasil essas marcas não são menos profundas, embora a cultura negra não tenha sido dizimada como foi nos Estados Unidos, conforme conta Riserio. No entanto, nós internalizamos o modelo de ordem social baseado na força e no desrespeito entre as pessoas, o modelo colonial da violência e da arbitrariedade. E sempre que topamos com uma situação em que o medo e a insegurança crescem, onde a desordem parece imperar, nós não nos perguntamos seriamente pelas causas dessa desordem e buscamos soluções, mas pedimos uma intervenção autoritária, pedimos que seja restituído o mesmo modelo que nos trouxe até aqui. A receita da escravidão é o medo, cuidadosamente vigiado para que nunca deixe circular entre nós, quer seja por meio do crime, quer seja por meio da intimidação de uma ordem autoritária — pondo em marcha um circuito difícil de escapar.
Mais uma preciosidade de Laerte
Enquanto não formos capazes de fazer as pessoas entenderem de modo simples a contribuição decisiva da pobreza e da desigualdade para a violência, enquanto a luta do bem contra o mal prevalecer como única referência por meio da qual se explica a criminalidade, seremos reféns do conto de fadas salvacionista dos restauradores da ordem. Seremos escravos dessa receita de escravidão. Nada, senão o engajamento político, pode nos dirigir a soluções reais para os nossos problemas — sejam eles a criminalidade ou a corrupção — e não restam dúvidas de que há muitas pessoas interessadas em preservar esse ciclo de medo e de restauração da ordem, em nos manter cativos dessa dinâmica inescapável. Os interessados são aqueles que tem a perder com a redução da desigualdade, seja em termos financeiros, seja em termos de status. É uma luta difícil, mas necessária, e exige que a esquerda, principalmente, saia da sua bolha e volte a ser capaz de falar com as pessoas, com o povo.
Cheguei na Espanha em 2013, pouco antes de Podemos nascer. Como alguns amigos já me haviam apresentado Pablo Iglesias, Juan Monedero, La Tuerka, Fort Apache, o nascimento do partido não foi para mim algo surpreendente. Acompanho o partido desde então, como filiado, e o que apresento aqui não é mais do que a expressão de uma perspectiva formada a partir dessa proximidade circunstancial. Se a caracterizo como perspectiva é porque quero enfatizar que ela é antes de mais nada um sentido, um certo modo de apresentar tudo que tem passado por aqui. Isto é, embora para mim todo esse relato seja verdadeiro, minha intenção não é vender sua verdade mas apresentar seu sentido. Cada um é livre para acreditar ou não nele, mas só depois de entender o sentido de algo podemos aceitar ou não sua verdade. A ideia não é reconstituir a história do partido (aqui você encontra uma boa narrativa sobre a história do partido, num aúdio em espanhol), mas indicar a partir de certos pontos o que me leva a pensar que, com todas as dificuldades, Podemos é de longe a experiência política mais interessante nas grandes democracias ocidentais, uma experiência que deveríamos olhar com cuidado, especialmente tendo em vista os problemas da esquerda no Brasil, o tema de antipolítica e as dificuldades da representação política em todo mundo.
Nem todo mundo leva a sério uma certa crítica à representação e aos modelos de representação, mas o fato é que Podemos tem conseguido estabelecer algumas novidades nesse terreno: a filiação e as votações do partido são todas feitas em plataforma online. O partido definiu assembleias regulares (a cada três anos) onde são discutidos seus rumos e diretrizes. A última assembleia, que aconteceu em fevereiro, ficou conhecida como Vista Alegre II. Tudo foi definido por voto: o modo como eram apresentados os documentos, a separação entre documentos (projetos) e candidaturas, etc. Há muitas oportunidades em que os os filiados podem apresentar projetos e ideias relativas às mais variadas áreas e submetê-los à votação. Além disso, podem decidir também sobre as ações do partido e de seus representantes. No dia 12 de junho, por exemplo, eu votei em favor de uma moção de censura à corrupção sistemática que há meses figura no noticiário espanhol, envolvendo políticos do PP. A plataforma onde todas as votações tem lugar é bem desenvolvida, tudo acontece em ambiente criptografado, com todas as medidas de segurança típicas de processos de confirmação via web. Podemos enxergou e apostou nas vias tecnológicas como instrumentos para aprofundar e facilitar as decisões, e isso me parece algo inédito no mundo. Quando é necessário promover ações, organizar eventos, a comunicação entre os filiados se dá via Telegram (mas o Whatsapp tem ganhado espaço nos últimos meses), o que dinamiza todo o processo já que hoje em dia quase todo mundo tem e utiliza muito o smartphone, especialmente aplicativos de mensagems — o Telegram é mais polivalente que o Whatsapp e cai como uma luva. Eu acho que as novas tecnologias podem ser ferramentas importantes na transformação do processo político, numa redefinição da relação entre representantes e representados.
Embora o partido manifeste o desejo de tornar mais horizontal toda sua estrutura, as pessoas que desde o início estiveram à frente de Podemos sabem como funciona a lógica política-eleitoral. A experiência política de parte dos seus fundadores tem seu valor. Secretário Geral do Partido, Pablo Iglesias reconhece que a figura (a imagem) de uma liderança não é algo prescindível se o propósito é ocupar espaços políticos e institucionais em todo âmbito nacional. As posições diretivas do partido não podem ter um papel meramente funcional, de coadjuvantes em relação à força instituinte do povo. A ideia é ótima, claro, mas assim eles só pregariam aos convertidos — a Espanha e os espanhóis são uma classe muito heterogênea, como não poderia deixar de ser. Muitas figuras dentro do partido tem disputado papéis de maior destaque e tem ganhado visibilidade por suas propostas, ideias e discursos. Embora a disputa tenha naturalmente se concentrado em torno de Pablo Iglesias e Iñigo Érrejon, há uma pluralidade de vozes e perspectivas que não se reduzem aos acordos comuns adotados conforme decisões definidas em votação. Isso abre espaço para que imprensa, sempre interessada em promover sua própria agenda, tente influenciar as narrativas em torno das disputas internas, e às vezes consiga acirrar tensões e provocar algumas faíscas. Às vezes essas tensões conseguem ser manejadas, às vezes provocam algum dano.
Um partido político está sempre exposto ao risco de tornar-se uma força hegemônica que meramente administra a manutenção do poder. Podemos sabe disso. Sabe não apenas porque a Espanha presenciou a conversão do PSOE numa força política orientada ao centro e aos pactos de manutenção do status quo em nome do possível; mas também porque as experiências da esquerda na América Latina ensinaram valiosas lições que se somaram àquelas aprendidas na própria Espanha. Além disso, o pensamento de Gramsci tem uma marca muito forte dentro do partido, em Iglesias, Érrejon e Monedero. Érrejon escreveu com Chantal Mouffe um livro (Construir pueblo) que é a expressão de algumas das ideias forjadas nesse caldo das experiências sul-americanas e ibéricas. (Recentemente o El País chamou um especialista em Gramsci pra dar aquela carteirada ao melhor estilo “o pai de Gramsci” sobre os abusos na leitura de Gramsci por parte de Podemos e especialmente de Érrejon; ficou meio ridículo, mas é parte do jogo.) As referencias e ideias que orientam a prática e o direcionamento de Podemos são os mais variados e refletem a complexidade e pecularidade da própria história da Espanha. Laclau e Chantal Mouffe são referências importantes, que já se identifica num certo modo de pensar o populismo, no populismo de esquerda. Mas acho que em realidade as referências são menos importantes do que uma permeabilidade entre elas. Há uma certa abertura, um respeito e mesmo um comércio entre perspectivas as mais diversas, e isso permite que as ideias se arejem, se contaminem e às vezes se apresentem como se estivessem no cenário de outras aparentemente incompatíveis. Por exemplo, o anarquismo é muito respeitado na Espanha. E respeito é a palavra chave. Quando não se respeita uma ideia ela é excluída do horizonte de possibilidades, deixa de ser até mesmo um inimigo a que se deve combater, um adversário com que dialogar, um aspecto que considerar. Nenhum anarquista verá Podemos e sua vocação institucional com bons olhos, o que é natural, mas Podemos tem muitas raízes (uma das mais forte é a da Izquierda Anticapitalista), de tal sorte que se vê nele adaptações de ideias de inspiração anarquista, municipalista, e de tendências de toda sorte. Tudo isso num novo marco, talvez conceitualmente incompatível com as referências originais, mas pra mim o que importa é esse ambiente de abertura, conversa, diálogo e respeito. (Conheci Carlos Taibo, anarquista e ferrenho defensor do decrescimento, numa indicação de Monedero no La Tuerka). Numa entrevista recente do novo Secretario General de Podemos em Madrid, Ramón Espinar, fica evidente algumas coisas para as quais estou apontando muito abstratamente. Ele diz:
Vamos a hacer una apuesta por un partido-movimiento. Y eso significa que hay que empezar a hacer un trabajo con los círculos, con los militantes, desde ya, de planificación en cada barrio y en cada pueblo, de qué van a hacer esos círculos, de cómo van a impactar en la vida de su barrio y de su pueblo, en función de las necesidades.
Eu já havia identificado em uma fala de Pablo Iglesias, que agora eu não me lembro onde está, a expressão dessa tendência a transformar Podemos em um “partido-movimento” — talvez ela esteja nessa boa entrevista com Chantal Mouffe ou nessa outra com o próprio Monedero. Isto é, a tendência a fortalecer a base civil de sustentação do partido, sem perder sua força institucional. Claro que essa inclinação não se encaixa com a tendência natural de certos modelos (em particular a social-democracia) de fortalecer ou de preocupar-se exclusivamente com o fortalecimento institucional. É claro também que essa preocupação em fortalecer os Círculos de Podemos (que é como são chamados os pequenos grupos espalhados pelas cidades onde as pessoas se encontram para discutir em grande parte problemas locais, mas fazendo assim uma interface com os níveis menos locais de ação política) sem perder de vista a representação institucional no Parlamento nacional e no Parlamento Europeu é algo muito próprio e peculiar. É um esforço para responder aos desafios da representatividade no século XXI, tentando superar o hiato da representatividade fortalecendo a capilaridade das relações entre associações civis (os Círculos) e os seus representantes institucionais. Natural que existam falhas e pontos criticáveis, mas acho que esse esforço expressa uma compreensão mais exequível de como pode se dar uma transição de uma sociedade inteiramente orientada a instituições a outra menos centralizada, mais local, onde as decisões políticas não estão tão distantes daqueles que efetivamente vão sentir seus efeitos. Minha maior dificuldade teórica com perspectivas políticas mais radicais é a falta de um modelo de transição que não suponha tacitamente uma conscientização massiva e abrupta como catalisador das transformações necessárias à materialização das ideias. A transformação de um forma de vida não pode deixar de contar com agentes e meios institucionais, se quer triunfar sobre a publicidade e o medo que atrapalham qualquer proposta de mudança radical.
A tendência a trazer a política de volta a la calle é em realidade um reflexo de certas características da sociedade espanhola. A força e articulação de certos movimentos e associações civis formaram uma das plataformas que tornou possível Podemos, pois num espaço relativamente pequeno, os fundadores do partido puderam viajar o país para conversar sobre a ideia que eles tinham em mente com diversos grupos, dos mais variadores tipos (sindicatos, associações de moradores, coletivos, etc). — Por isso é difícil imaginar que algo semelhante aconteça no Brasil, ainda que tivéssemos associações civis igualmente fortes e articuladas (o Vamos tem tentado articular algo parecido no Brasil e eu saúdo esse esforço). Posso oferecer um exemplo concreto de como essas coisas têm se tornado algo real. No bairro em que eu moro há a Asamblea Popular de Malasaña e o Grupo 15M, coletivos que organizam atividades e eventos culturais, promovem ajuda mútua entre os moradores, promovem um espaço de cultivo comum e mercado agroecológico, coletam e distribuem alimentos para pessoas sem recursos, ajudam imigrantes sem documentos a conseguir assistência médica, entre outras coisas. A ideia é discutir e resolver problemas entre os moradores, estimulando o encontro e o debate entre as pessoas. Da última vez que estive no mercado agroecológico na Calle Antonio Grillo, por exemplo, eles estavam coletando assinaturas (seria preciso 150 mil assinaturas) para apresentar um projeto popular que legislaria sobre o prazo de ocupação de residências não habitadas. No último dia 2 de maio (data festiva em Madrid por razões históricas) a Asamblea organizou uma festa auto-gestionada no bairro com uma ampla programação e enorme sucesso. Enfim, nada disso tem necessariamente a ver com Podemos, é apenas um modo de ilustrar o sentido a que se direciona essa tentativa de aproximar a política institucional às questões e necessidades das pessoas nas ruas. A ideia visa descentralizar os núcleos de decisão e deliberação política ao tempo que estimula e integra as pessoas (ordinariamente distantes) à política e à sua dinâmica. Esse propósito tem uma enorme importância tendo em vista a forte tendência antipolítica que tem se manifestado em muitos países, especialmente em virtude da incapacidade do centrismo e da terceira via em responder aos anseios paradoxais de grande parte da população em todo mundo: as pessoas querem mudanças sem que nada mude; ou então querem mudanças desde que quem mude seja o Outro, esse Outro que nós (covardemente) responsabilizamos simbolicamente por tudo que não vai conforme nosso desejo e cuja dinâmica de culpabilização termina por converter demagogos como Donald Trump em presidentes.
Agora, os desafios eleitorais de Podemos, aqueles que dizem respeito à parte mais concreta e pragmática da política institucional, tem a ver com o modo como partido se encaixa (ou é encaixado) nas categorias pré-fabricadas com que a imprensa e a “opinião pública” apresentam o universo político. Um aspecto que permite fazer ver as dificuldades que o partido enfrenta é a sua relação com a social democracia. A relação de Podemos com a social democracia reflete, por um lado, seus compromissos políticos e, por outro, o modelo econômico que lastreará as ações políticas do partido. As declarações públicas de Iglesias sempre deixaram claro que a social democracia não era a meta do partido, mas que não lhe parecia possível promover uma transformação social sem resgatar aspectos da social democracia perdidos na avalanche neoliberal que atingiu a Espanha. Mas a percepção do posicionamento de Podemos se reduziu a duas perspectiva antagônicas esgrimidas pela imprensa, de acordo com a conveniência: ou o acusam de promover ideias e políticas radicais que levariam a Espanha para longe do marco social democrático da Europa (em direção à posição venezuelana, para utilizar a sempre poderosa arma política do medo, usada diariamente na imprensa espanhola) ou então banalizam suas propostas dizendo tratar-se apenas de uma social democracia com tons distintos, sem caracterizar nada de novo. É claro que a urgência em encaixar Podemos numa categoria responde à necessidade de definir melhores estratégias discursivas de enfrentamento. Ao invés de rotulá-lo apressadamente, é preferível entendê-lo a partir de suas práticas, ações, ideias e então, quando e se for conveniente, adotar um termo geral. É certo que Podemos se orienta a partir de algumas avaliações centrais. Por exemplo, a extrema direita na Europa se fortalece e se expande usando um populismo cujo efeito só se tornou preocupante porque a terceira via é o projeto fracassado mais bem sucedido no mundo. Temer encontrou recentemente com Rajoy para aprender como implantar no Brasil o modelo espanhol responsável por ligeiros incrementos estatísticos (suficientes para fins eleitorais) mas de enorme custo social (o desemprego melhorou, mas os salários diminuiram significativamente e a dívida pública é a maior da história, apesar dos cortes). A extrema direita vê que o povo está ansioso por mudanças que o acanhamento das políticas conciliatórias da Europa não pode entregar. Um caminho à esquerda parece impensável não apenas porque verdadeiramente falta um projeto, mas também porque a população está (pelo menos na Espanha) anestiasada pelo medo de tornar-se alguns dos paradigmáticos casos de fracassos de políticas de esquerda que todo o dia reaparecem nos noticiários. A alternativa então parece ser: continuar apostando nos mesmos, a despeito do fato de eles não poderem promover as transformações sociais ansiadas, ou votar em opções fora do eixo, anti-sistema. Não foi diante dessa escolha que Trump conseguiu se eleger? Esse novo eixo dá lugar também ao “populismo de esquerda” ao qual se refere algumas vezes certas figuras de Podemos e que inspira o medo cuidadosamente planejado de muitos. O que se representa nessa ideia é a crença, plasmada no projeto econômico do partido, elaborado por Vicenç Navarro y Juan Torres López, de que é possível fazer frente à crise sem comprometer o estado de bem estar social. Não são poucas as discussões que acontecem aqui em Madrid nas quais as ideias de Podemos se entrecruzam com as Yanis Varoufakis. Alguns desses encontros acontecem sob a legenda de um movimento chamado Plan B Europa. Eu acho que Varoufakis representa bem esse movimento ao qual Podemos em certa medida está aderido, e a proposta do movimento é convencer os europeus de que é há uma alternativa ao receituário da austeridade, de que há uma alternativa à submissão aos tecnocratas da Comissão Europeia que tem custado a soberia de muitos países europeus. Enfim, não é uma tarefa fácil nem simples, mas nesses termos dá pra entender que a complexidade da perspectiva de Podemos não se reduz às caricaturas utilizadas para representá-lo. (E não custa lembrar que esse projeto econômico alternativo tem apoio de figuras como Joseph Stiglitz e Paul Krugman.)
Bem, escrevi menos que necessário e mais do que devia, mas acho que está razoavelmente representado tudo o que me parece interessante em Podemos, segundo minha experiência e minha relação com o partidos nesses 3 anos. Dizer que algo pode ser críticado não é uma crítica, é um lugar comum que se aplica a qualquer coisa. Podemos tem falhas e questões que precisa resolver, além de talvez não encaixar no ideario de muitos que se dizem de esquerda, mas o fato é que o modo como o partido tem tornado concretas suas ideias e a maneira como tem inspirado ideias a partir de suas práticas correspondem a uma experiência muito particular no mundo inteiro. Uma experiência que convém prestar atenção antes mesmo de descartá-la, para entender em que medida, se for conveniente, ela pode ser adaptada aos mais variados contextos. É realmente difícil enxergar algo semelhante acontecendo no Brasil, por muitas razões, mas convém ao menos ter presente alguns desses aspectos, considerando a terra arrasada em que nós encontramos hoje. Especialmente porque ainda não conseguimos nos emancipar da tendência a enxergar a política anglosaxônica como o único modelo e referência para nossas reflexões. Em meu blog eu me permito ser dogmático a ponto de afirmar que atualmente esses modelos tem muito pouca coisa a ensinar ao Brasil e ao mundo — ainda que Mangabeira Unger pense diferente.
PS. Esqueci de falar de um aspecto sumamente importante: Podemos se financia com ajuda de seus filiados. Micro-crédito, crownfunding, venda de produtos, doações regulares, são os meios de ajudar o partido a se manter financeiramente. Tem até um Portal de Transparencia onde dá conta de como foi aplicado o dinheiro do partido.
(…) Este marco de convivencia, en el libro de (José María) Lassalle, habría volado por los aires fruto de una “crisis” sin nombres ni apellidos, sin decisiones concretas con ganadores y perdedores de las mismas. Un fenómeno al margen de la política, sobre el que no cabe hacerse preguntas políticas ni, por tanto, pensar alternativas, igual que sucede, por ejemplo, ante un huracán.
PPPS. Não discuto a questão independentista, importantíssima na política espanhola, porque minha preocupação é destacar aspectos mais “universais” da experiência de Podemos, em prejuízo de suas aspectos mais locais, ligados à particularidade da história da Espanha.
Lula após o depoimento em Curitiba. Foto: Ricardo Stuckert
Seria bom que a esquerda tivesse uma alternativa que não fosse contar com a candidatura messiânica de Lula? Seria. Agora, como isso vai se dar? Tem gente de esquerda que, tendo em conta essa necessidade, tem visto com bons olhos a possível candidatura de Ciro Gomes. Tem gente que, mais à esquerda, foge de Ciro como o diabo foge da cruz. Saber o que não se deve fazer nem sempre nos ajuda a determinar como nós devemos agir. Na prática a teoria é outra.
O que parece é que tem muita gente disposta a admitir que a imprensa seja o catalisador dessa mudança necessária à esquerda e eu não consigo aceitar essa ideia. Vejamos as circunstâncias. São cinco os processos que pesam contra Lula. Certamente tem alguém melhor informado do que eu sobre os detalhes de cada processo, mas me parece que falta materialidade em todos eles. E o caso do triplex é exemplar. O monitor do debate político rastreou as notícias mais compartilhadas no dia do depoimento de Lula. Dentre elas estava uma matéria do site Spotniks que, como todos sabem, não esconde suas inclinações políticas. O título da matéria é: Se você ainda acha que não há provas contra Lula na Lava Jato, precisa ler esse texto. O texto joga com a ambiguidade da palavra prova (que tem um uso técnico no Direito e um uso cotidiano), não há nenhuma intenção de fazer uma avaliação técnica sobre o que se apresenta como “prova” e sobre como as coisas que estão ali alegadas podem verdadeiramente corresponder a provas. Li também um post de um blog da Gazeta do Povo que trazia uma confusão similar, o título do post era: Lula em Curitiba: dez pontos para você não cair na histeria (de nenhum dos dois lados), e lá dentro havia uma afirmação que também partia de uma perspectiva igualmente equivocada:
Pode muito bem acontecer de Lula ser culpado e de não haver provas suficientes para que ele seja condenado ou preso. Isso faz parte do regime democrático e querer que alguém vá preso se não houver culpa ou se não houver provas é o mesmo que defender um Estado de exceção.
Não, “não pode acontecer”. Ou você aceita os critérios da justiça, os seus ritos e processos — o que não significa que você precisa concordar com eles, já que “em nome da justiça” tem-se atropelado o processo penal — ou tudo que lhe sobra é um juízo moral sobre a culpabilidade. Ou seja, não há possibilidade de que exista um culpado se não há provas suficientes. Acho que se está formando um ambiente favorável à aplicação de um Domínio do Fato 2.0. O primeiro caso de aplicação também foi conveniente, já que parecia impensável que nenhum político fosse responsabilizado pelo escândalo do Mensalão. Mas acho que essa conveniência está se mostrando algo arbitrária.
Não se trata de defender Lula, que fique claro. As pessoas tendem a prestar atenção só no que lhes interessa. Trata-se apenas de analisar as circunstâncias num contexto mais amplo e à parte a narrativa que a imprensa tem adotado em uníssono. Por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Gilmar Mendes andaram defendendo a distinção entre caixa dois e corrupção. O motivo provável, livrar a barra de Aécio Neves. Logo depois do depoimento de Lula, onde até pedras puderam notar a tendenciosidade de quem deveria meramente julgar, o enfoque e a estratégia da imprensa mudou. (Lula saiu de lá fortalecido simbolicamente, a despeito dos links que circularam na internet, já que é evidente para qualquer pessoa atenta que Moro não tem presença e que não é um sujeito muito inteligente: uso sempre como parâmetro para ilustrar isso o encontro de Moro e Gilmar Mendes no Congresso; digam o que quiserem de Gilmar Mendes, mas ele é inteligente e sabe como falar e atuar, Moro diante dele parece uma criança perdida e balbuciante.) A despeito da capa deplorável da Veja e dos “coincidentes” enfoques das manchetes, a estratégia passou a ser explorar as delações dos marqueteiro do PT e de sua mulher. Eu acho que a delação premiada é um instrumento inadequado e perigoso, que tende a minar o próprio procedimento penal, mas vamos supor que há muitas verdades nessas declarações. Onde é que fica Lula na comparação com Michel Temer e seus ministros, Aécio Neves, José Serra, Geraldo “Santinho” Alckmin e outros? Como é que Lula se encaixa naquela distinção insistente e convenientemente sublinhada por Gilmar Mendes e FHC? Se a distinção serve pra alguma coisa, é difícil explicar a enorme atenção concedida a Lula pela imprensa, senão pelo propósito de desidratar sua possível candidatura em 2018.
Lula e a imprensa nem sempre estiveram em lados opostos. Todo mundo sabe que os interesses dos governos do PT e os da imprensa coincidiram não poucas vezes. E os petistas souberam se valer dessa força e desse apoio. A crítica à imparcialidade e à seletividade da imprensa, preocupada não em relatar fatos mas em mascarar opiniões com uma camada fina de verniz que mal disfarçava suas intenções, se reduziu à mera caricatura produzida pela pequena parte da imprensa adestrada e financiada pelos governos petistas. Se reduziu a caricatura sintetizada na palavra PIG (Partido da Imprensa Golpista). Mas isso não significa que a questão tenha deixado de existir. O caso é que quase impossível levantar um debate sobre o papel da imprensa na constituição do clima e das ideias que tem circulado no país sem se contaminar com as cores dessas caricaturizações, sem que alguém te tome como um crítico entusiasta do PIG. Assim o debate foi inteiramente escanteado.
E assim também nós chegamos a este cenário no qual a esquerda parece constrangida a renovar-se e a imprensa — em alguma medida, pro bem ou pro mal — parece ter um papel nessa renovação, já que pode frustrar os planos dos que (erroneamente, sob a perspectiva que eu estou apresentando) creem no plano salvacionista de Lula 2018. A gente fecha os olhos pro papel da imprensa na confecção das narrativas que tem circulado no país e assim em breve teremos um cenário no qual Lula não está, porque a pressão popular vai tornar impossível um outro veredito — talvez pensem (secretamente) alguns. Não se trata tampouco, diga-se de passagem, de constrager quem quer que seja a posicionar-se numa luta binária entre uma certa esquerda e a imprensa. Trata-se apenas de pensar se a necessidade de uma transformação e mudança no campo da esquerda deve contar com essa ajudinha. Se há algo de incompatível entre transformar as ideias e práticas de esquerda e exigir um jornalismo de qualidade, denunciar os abusos políticos e ideológicos de quem vive apontando ideologias em todo lugar. Não é segredo o apoio explícito do governo Dilma à atuação das polícias nas manifestações que tem lugar no país desde 2013, apoio que produziu entre muitas coisas a prisão de Rafael Braga. Esse é um dos pontos em que os governos petistas e a imprensa coincidiram alegremente. O caso é saber se esse lamentável acordo de interesses deve nos levar a pensar a relação da imprensa com o PT, agora, como uma espécie de justiça moral bem representada na expressão: bem feito! Isso parece traduzir mais ressentimento do que uma sólida proposta de transformação.
Não estou certo de que a imprensa tenha a força que supomos, ou de que algum dia tenha tido. Hoje em dia o Whatsapp e o Facebook parecem mais decisivos do que qualquer outra fonte de informação, e a eleição americana em alguma medida mostrou isso. Mas é certo que a imprensa continua investindo pesado para que sua agenda seja bem vista e há muitos números para aferir isso: a reforma da previdência é um bom índice. E ainda que a imprensa não seja tão poderosa quanto pensa que é, o Jornal Nacional ainda tem um forte alcance. Sua visilidade ainda causa estragos. E aquilo que o jornal elege como objeto privilegiado de crítica tem impacto nacional.
Lula tem que ser julgado com imparcialidade e ser condenado ou absolvido de acordo com as provas apresentadas, independente do imenso clamor alimentado por uma imprensa que mal esconde seu entusiasmo por projetos e agendas que não passam pela legitimidade da vontade popular (a única fonte de poder legítimo em uma democracia). Do mesmo modo, a transformação da esquerda tem que ser espontânea, do contrário não terá força para conseguir absolutamente nada. Essa transformação tem que ser conquistada, não dá pra escolher contra quem jogar. Se ela depender de que a (irônica) justiça cósmica puna Lula e o PT por terem se aproximado de tão execráveis aliados, ela já nasce abortada.