Esquerda: Institucionalização e o prazer de apontar o dedo

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Esse é o segundo post da série de críticas à esquerda. O primeiro post foi Espirais de poder e prazer.

Ao longo do tempo a injustiça contra a qual luta a esquerda se sedimenta nas próprias estruturas institucionais da sociedade e dá lugar, por exemplo, ao que se conhece como racismo institucional. Mas a institucionalização da sociedade é um fenômeno recente, de tal sorte que é possível reconhecer que a própria cultura (para usar um termo mais geral) reflete os vícios das práticas sociais, daí porque a palavra “patriarcado” por sua vez ilustra satisfatoriamente a sedimentação cultural que espelha o lugar privilegiado dos homens na sociedade.

Reconhecer esse engessamento institucional ou cultural deveria atenuar a avaliação dos indivíduos que perpetuam a injustiça, já que suas ações são em parte determinadas pela força reguladora e formatadora da cultura e das instituições, mas não é o caso. Embora a esquerda alardeie o profundo enraizamento da injustiça e a necessidade de mudança estrutural, ela não deixa de acusar e denunciar com ênfase crescente as pessoas submetidas à força reguladora das estruturas sociais. É certo que reconhecer essa força não significa anular a liberdade das pessoas (e, portanto, seu quinhão de responsabilidade), mas se somos formatados por elementos exteriores nossas ações não deveriam ser avaliadas como se tivéssemos simplesmente escolhido deliberadamente agir de certa forma. A possibilidade de emancipar-se de um certo modelo de ação e pensamento é um dos mais difíceis objetivos da educação (ou melhor, de uma certa ideia educação). Na contramão da tendência a atenuar o juízo e a (rea)agir conforme o reconhecimento dessa dificuldade, a esquerda tem se mostrado cada mais fascinada pelo poder de denunciar e apontar o dedo (responsabilizar).

Em face da injustiça dos tribunais, da ineficiência de toda a extensão do aparato normativo (legal e moral), a justeza das causas autoriza que sejam erguidos tribunais paralelos e não institucionais; se a justiça (institucional) não pode ser justa porque ela inevitavelmente absorve e reflete a injustiça da sociedade, então é possível tentar reparar essa injustiça no braço, na marra. Parece razoável, porque mesmo que estejamos de acordo com as vias e processos institucionais de mudança, nós sabemos que esses processos são morosos e a vida das pessoas é coisa real e imediata, não dá pra esperar uma transformação enquanto elas enfrentam dificuldades concretas e não poucas vezes dolorosas. O problema é que esses tribunais erguidos a todo instante para reparar injustiças não contempladas pelas nossas ineficientes instâncias institucionais passam sem muita dificuldade da justiça à vingança. Em outras palavras, muitos dos juízes (militantes) encarregados de julgar mal disfarçam o pouco compromisso com a justiça, a vontade de meramente retribuir a injustiça, de inverter o sinal do juízo. No entanto, no contexto da esquerda, essa ânsia costuma passar despercebida porque a legitimidade das causas que a movem parece justificá-la, embora não justifique. Talvez o maior sintoma dessa tendência seja o lacre, a vontade lacrar. Para mim, esse é um inegável indício de corrupção do poder. Ninguém está livre da vontade de lacrar, pois o lacre é nada mais que a manifestação do desejo sádico de humilhar, rebaixar e apequenar o que julgamos que não deveria existir — mas parece necessário olhar esse desejo com honestidade, porque ele é uma expressão de poder (e de arbitrariedade). A esquerda parece fingir que esse desejo não existe, enquanto o canaliza abertamente em direção aos seus “inimigos”. O intuito é claro, reprimirVocê pode até ter pensamentos preconceituosos ou machistas, mas não deve exprimi-los, externá-los, pois se você exprimi-los eu estou autorizado não apenas a julgá-lo duramente (como se você não fosse o produto de uma cultura) como a despejar sobre você tudo me parecer conveniente para inibir seu comportamento opressor. Não me parece difícil ver que essa estratégia não dá certo, ainda que, ao contrapor-se a um comportamento indefensável, ela pareça plenamente justificada. Agora, vejam bem, não se trata de sugerir a passividade diante dos muitos absurdos que acontecem diariamente, trata-se apenas de sublinhar que a medida da reação já é em si mesma um indicativo de algo que acontece na psicologia desses que são os agentes dessa justiça não-institucional.

Não é de hoje que as pessoas alertam para os problemas derivados da insistência no politicamente correto. É uma questão de décadas e talvez os efeitos disso tenham se feito sentir de maneira mais clara após a eleição de Trump e Bolsonaro. O efeito principal é uma antipatia pelas bandeiras e slogan geralmente associados a uma identidade, antipatia convertida em rejeição instrumentalizada por líderes da extrema direita. Entretanto, a esquerda segue fascinada por essa estratégia. Embora eu tenha pouca simpatia pelas posições políticas de Antonio Risério, seu livro sobre o movimento negro é um documento imprescindível para compreender — a partir da história americana e do seu contraste à nossa própria — a gênese da estratégia de ação política que está por trás do identitarismo que nós importamos. Apesar do próprio Risério não gostar da ideia, é inevitável não pensar nas ideias fora do lugar. Não resta dúvida que a estratégia de unificar por meio da identidade trouxe vitórias significativas nos EUA, mas isso não significa que ela deve ser transformada em dogma e tampouco que funciona em qualquer contexto e circunstância. Ainda que o colonialismo seja um denominador comum — para usar o movimento negro como um exemplo de uma das tantas lutas da esquerda —, as circunstâncias de cada país são muito particulares e, ainda que possamos aprender e aproveitar a experiência de outros povos, deveríamos estimular a criação de nossas próprias respostas. Em realidade nós criamos nossas próprias respostas, como não cansa de nos lembrar Antonio Simas.

Além desse traço antipático, acusador e justiceiro (em alguns momentos linchador), o que mais me incomoda na questionável importação do modelo de ação política norte-americano é a confiança que ele deposita na repressão e na intimidação dos opressores e a estreiteza de sua concepção de poder. É certo que quem não sofre com a opressão não pode entendê-la da mesma forma. Não é preciso Nietzsche para compreender essa relatividade. Uma pessoa branca que entra numa loja de departamentos dificilmente se sentirá observada e o fato de nunca sentir isso faz com que nunca possa internalizar a indignação, a impotência e a raiva de se sentir gratuitamente objeto de desconfiança. Mas ainda que a falta desse entendimento possa induzir as pessoas a menosprezar o que há de opressor no peso de certas ações ou palavras, não é possível transformar essa situação simplesmente reprimindo e inibindo o comportamento dos outros. Assim como o desejo das sexualidades periféricas (para usar a expressão de Foucault) não pode ser remoldado pelo adestramento — pela surra que Bolsonaro queria dar nas crianças afeminadas — tampouco se pode adestrar as pessoas a entender o sentido do sofrimento e da injustiça pela simples imposição de um padrão de comportamento. Talvez alguém não se importe com isso e diga: “não quero mudar ninguém, quero apenas evitar que os mais vulneráveis sejam atingidos pela insensibilidade das ações e palavras dessas pessoas, não me importa se elas irão mudar ou não”. Esse é um pensamento perigoso, porque não poucas vezes ele reflete um ressentimento que não é capaz de calcular o que poderia ser melhor para o próprio grupo que se está defendendo — nem de articular essa indiferença ao reconhecimento do engessamento (institucional ou cultural) da injustiça. Não que exista uma receita que determine o que é melhor para cada grupo, mas quando nosso juízo sobre os efeitos de certas ações está turvado por sentimentos e intenções que não estão claras para nós mesmos é difícil fazer uma avaliação apropriada do que quer que seja.

A intimidação e a repressão são fatores que podem facilmente ser instrumentalizados, como sabemos desde sempre. Não é preciso nem mesmo prestar atenção aos recentes acontecimentos políticos no mundo, pois a repressão é parte da própria história da sexualidade, a história da repressão do desejo e de seus efeitos. Ou pelo menos assim grande parte dos discursos sobre a sexualidade a apresentam. Foucault parte dessa ideia de repressão para analisar a eficiência dos novos modelos de poder (criticando Freud, Reich, entre outros). Ele diz: se esse novo poder foi eficiente, não é porque interditou e reprimiu práticas e discursos, ao contrário, seu sucesso se deve ao fato de ter feito falar. Estimulou-se um discurso que foi cuidadosamente analisado, classificado, para poder gestionar e disciplinar as práticas. O que tudo isso nos conta é que a repressão tem poder limitado e que há formas mais eficiente se não de dominar, pois não é esse o caso, de conquistar e de atrair. É verdade que com frequência falta abertura naqueles que são os principais alvos da “repressão do bem” da esquerda, mas a crença cega na intimidação torna difícil desenvolver alternativas a essa estratégia e alimenta o narcisismo de pequenas diferenças. Enfim, a indução e o estímulo são muito mais interessantes como estratégia de mobilização (e também de controle, como nos mostra Foucault) do que a repressão e a intimidação que tem circulado abertamente.

Um pedaço de “Diários de motocicleta” em que Che fala da raça mestiça da América do Sul

Não sei qual é a resposta ao desafio de conquistar mentes fechadas às ideias da esquerda, mas como confesso adepto do piegas lembro de uma frase de Che Guevara, lida quando eu era adolescente, que ficou na minha cabeça. Ele dizia algo assim: “Ainda que possa parecer piegas devo dizer que o verdadeiro revolucionário é movido por um grande sentimento de amor”. A cultura do ódio se alimenta do ceticismo em relação ao amor e isso não é pouca coisa. Mas ainda assim há outros sentimentos que podem ser mobilizados para conectar, para amolecer, para sensibilizar. A alegria, por exemplo. Apesar da imensa reserva de ódio, nós temos uma cultura onde também há canais e ramificações que deixam entrar a alegria. O mais difícil é investir e imaginar formas alternativas de discurso, de ação, que possam substituir o segregador apelo a identidades por algo que estimule as pessoas a agir de outro modo em relação às diferenças. Alternativas que sejam capazes de neutralizar o apelo sedutor de converter certos grupos e identidades em inimigos contra os quais as pessoas são mobilizadas e ao redor dos quais se fortalece uma identidade (geralmente nacionalista). Quando esse apelo for neutralizado teremos dado um grande passo para convencer as pessoas que a esquerda busca algo que também lhes interessa. Caso não consigamos encontrar essa estratégia, a segregação legitimada vai continuar a levar água pro moinho daqueles que querem perpetuar a luta do bem contra o mal, ou qualquer outra forma em que esse binarismo se expresse, pra delírio de pastores ansiosos para dizer onde as pessoas devem ver o mal e o perigo e em explorar o desamparo de gente cada vez mais dissociada de laços comunitários que antes soubemos criar.

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Por Leonardo Bernardes

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