Esquerda: Espirais de poder e prazer

E

Esse é o primeiro de uma série de posts reunindo críticas à esquerda. E o primeiro tema da série não podia ser outro senão o poder — embora em realidade o poder seja o fio que costura e atravessa todos os temas.

Uma das contribuições mais fascinantes de Foucault à filosofia é o seu modo de conceber o poder. Tenho em vista especialmente a Vontade de saber, primeiro volume da sua História da Sexualidade, ao qual eu não me canso de voltar. O mais importante aspecto dessa concepção é a crítica dirigida aquela que talvez seja a única concepção de poder existente, a que todo mundo conhece e usa, o modelo binário. O modelo binário apresenta duas posições numa relação de poder: a do opressor e a do oprimido. É um paradigma altamente explicativo, como a própria dicotonomia entre bem e mal. Com ele você pode organizar o mundo muito claramente, se posicionar em relação a ele, agir e reagir. Segundo esse paradigma, toda relação de poder se apresenta como um certo disnível de forças que constitui o quadro no qual o oprimido se encontra submetido ao arbítrio do opressor.

Foucault não nega esse modo de representar o poder, sua posição é muito mais cuidadosa e sofisticada que um simples desejo de falsificar. O que ele nos diz é que a relação de poder é mais complexa que isso. O poder se constitui em todos os lugares — e mais do que isso, ele se mantém não apenas pela força e arbítrio do opressor. É aí que as coisas começam a ficar incômodas.

Foucault diz: e se pensarmos o poder como uma espiral? E se não houver apenas dois polos de força lutando entre si, como num cabo de guerra, mas uma [mesma] força que vai e vem conjuntamente e que se reforça nesse movimento contínuo? Só quando algo mais concreto se apresenta é possível entender o que significa essa imagem e o que ela pode acrescentar de novo. Foucault diz, o oprimido também tem prazer em resistir. E ainda: a resistência gera poder. Assim, o rebelde também tem interesse na manutenção da ordem contra a qual luta. Uma vez desfeita a ordem opressiva (o modelo da sexualidade repressiva é o exemplo privilegiado), o rebelde perde também seu poder (e seu status) nessa configuração de forças — o poder de resistir e tudo que isso envolve, o que não é pouca coisa.

Aí então se vê que a força vetorial do modelo binário, que lança o arbítrio e o poder do opressor contra o oprimido, não representa bem tudo que está em jogo nessa dinâmica, em especial a capilaridade da dinâmica do poder. Não é como se o oprimido fosse um sujeito alheio e indiferente ao poder e prazer instaurados pela dinâmica de resistência. Se você perde de vista esse fator, se você deixar de notá-lo, não saberá quais são as regras que governam a experiência do poder em suas múltiplas expressões. Por consequência, você não poderá ser um agente eficiente na luta pelo poder, porque está vendo menos fatores determinantes do que [existem]. Desculpem pelo vocabulário determinista e realista, mas eficiência causal implica controle e influência sobre fatores determinantes (mesmo que estes sejam intencionais). Se você não quer ter controle sobre os fatores que determinam o poder ou se você acha que há formas não-causais de controle e eficiência, bem, boa sorte, eu simpatizo com a sua posição mas é sempre difícil argumentar nesse sentido numa sociedade cientificista.

Assim, é claro que um dos mais centrais problemas da esquerda é não ser capaz de enxergar a corrupção da sua própria alma, isto é, a fascinação que o poder/prazer de resistir gera naqueles que o exercem. Por consequência, ela não pode ver tampouco como isso dá lugar aos tribunais e à intimidação que parecem a regra da ação política da esquerda, fazendo com que uma agenda tão nobre* quanto a sua seja preterida em favor de coisas tão hostis, toscas, violentas e rasteiras quanto as ideias de gente como Bolsonaro ou Trump. O afastamento das pessoas que não se sentem unidas por um laço de identidade é uma consequência natural da cegueira para o uso e o abuso do poder dentro da esquerda. (Unidade entre os iguais é certamente importante, mas é ainda muito, muito pouco.) Tenho a impressão — e talvez seja uma grande ingenuidade da minha parte — que pra que as pessoas se sintam inclinadas a escolher tudo que representa Trump e Bolsonaro é preciso que algo não esteja funcionando bem no maquinário das nossas ideias e práticas.

*  Não deixo de sentir um incômodo ao apresentar assim, tão romanticamente, a agenda da esquerda. É porque eu tenho um certo otimismo antropológico (anti-hobbeseano) de que as pessoas sempre preferirão a fraternidade (o amor) ao ódio (e ao medo), desde que a gente construa as condições adequadas para isso. Pois é muito mais fácil cultivar o medo que o amor, e muito mais fácil encontrar inimigos que amigos, mas o amor ainda assim é uma força poderosa quando bem utilizada. Mas é isso, desculpa a pieguice.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos