Denunciando intenções

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O nascimento da razão

Quando estão discutindo ou conversando as pessoas tendem a identificar intenções e a usá-las como parte de seu próprio discurso. Por exemplo, a intenção de quem escreve um texto pode ser mobilizada contra o autor. Wittgenstein disse coisas curiosas sobre intenção, dentre elas, que um gato espreitando um pássaro é a expressão natural de intenção. A intenção pode até mesmo ter uma expressão natural. Isso não significa que essa intenção não possa ser objeto de disputa e controvérsia. Portanto, parece ainda menos aconselhável que ela seja empregada como uma espécie de evidência em estratégias argumentativas. E esse é um caso comum.

Poderíamos estar de acordo que todo texto expressa uma intenção, mas isso não quer dizer que a intenção cumpra uma função argumentativa no texto. Sempre que identificamos uma intenção com a qual não concordamos, nos apressamos em denunciá-la. Assim o cenário é: uma intenção não apresentada no texto é utilizada para refutar ou objetar o argumento ao qual supostamente ela se liga. O sujeito que assim se vale das intenções em geral constrói seu argumento em função da necessidade dar força à sua denúncia, isto significa que o argumento inicial ao qual à intenção supostamente está ligada é não raras vezes completamente elidido. Ora, a elisão do argumento é uma das características marcantes das falácias não-formais. Vejamos uma das mais características, a falácia ad hominem.

Nos tempos bicudos em que vivemos, imagine um deputado do PT que tivesse feito um forte e articulado discurso contra o Estatuto da Família. Agora imagine que alguém escreve um texto chamando-o de petralha e alegando que o propósito do seu discurso é solapar a base moral da sociedade brasileira, a família (heteronormativamente constituída). O que foi feito neste caso? Os eventuais argumentos apresentados pelo deputado foram solenemente ignorados e a resposta a eles, que deveria ser argumentativa, torna-se falaciosa, pois elude aquilo a que deveria responder: suas ideias e argumentos. Mas claro que se você desqualifica alguém e sugere que as suas intenções são tais e tais, seus interlocutores podem eventualmente estar de acordo contigo ou pode ter a mesma relação de repulsa em relação à intenção denunciada. Isso significa que esse discurso, embora falacioso, pode ser eficiente. Se o discurso falacioso não fosse eficiente, ele teria simplesmente deixado de existir. No entanto, ele frequentemente causa os efeitos esperados. O que me parece preocupante, no que diz respeito às intenções, é que este tipo de estratégia não esteja restrita a classe daqueles que escrevem com a boca amarga de fel. Podemos encontrá-la não poucas vezes no discurso de pessoas bem qualificada, de discurso articulado e, porque não dizer, na expressão gente bem intencionada.

Há muitos contextos em que a denúncia de intenções é de fato uma tática válida, bem como há circunstâncias em que o ad hominem é estratégia legítima. (Em contextos jurídicos, a condição de uma pessoa, que deveria ser irrelevante para avaliar a verdade do que ela diz, pode ser determinante para se estabelecer a credibilidade de suas palavras, portanto, o ad hominem pode não ser considerado uma tática inválida). Esses contextos não são o que me preocupam. Preocupante é que nós estejamos não apenas desatentos aos abusos, isto é, aos casos nos quais a denúncia é mera elisão (bem ou mal intencionada) do argumento, mas também profundamente inclinados a empregar, nós mesmos, táticas semelhantes.

Pensar e argumentar são coisas distintas. Podemos ter o mais complexo emaranhado de pensamentos em nossa cabeça, as convicções as mais certas, as mais redentoras, as mais importantes, e sermos incapazes de transformá-las em argumentos. O pensamento não necessariamente está determinado — e na maioria das vezes não está. Daí que a argumentação é o compromisso público do escritor. A linguagem só existe como coisa pública. O emaranhado de ideias que temos em nossas cabeças não tem nenhuma importância pro mundo. Nenhuma. Senão, obviamente, como coisa expressa publicamente. Uma válvula que pode ser girada sem que implique nenhuma mudança na engrenagem da qual faz parte não tem nenhum valor, é como se não existisse, como se não fosse parte do mecanismo. Nós confundimos a importância (privada) dos nossos pensamentos com sua importância pública. A importância pública de um pensamento está na sua capacidade de ser expresso (argumentativamente ou não, pois há pensamentos em filmes, poesias, músicas, encenações, danças, etc.). Insistir no caráter público da linguagem equivale a dizer: toda intersubjetividade só pode ser pública. Há pessoas que nós entendemos sem palavras, apenas por olhares e gestos, mas o texto é o compromisso com uma audiência muito mais ampla do que o punhado de pessoas (se tal) com as quais podemos nos entender sem palavras. E esse é o problema da banalização da denúncia de intenções.

Nós podemos encontrar muitas pessoas que partilham de nossas perspectivas e podemos mobilizá-las de muitas maneiras. E uma dessas maneiras é: indicando aquilo que elas, como nós, rejeitam. Portanto, quando alguém denuncia uma intenção, e mobiliza os outros contra ela, não necessariamente essa pessoa está rejeitando os argumentos aos quais a intenção se liga. Neste caso, tratar-se de anular a proposta do debate, trazendo, como “argumento”, a intenção que anima a proposta.

— Vejam, esse sujeito está querendo destruir a base moral da nossa sociedade, não deem atenção ao que ele diz.

Os argumentos não estão assim rejeitados, eles apenas não foram confrontados. Às vezes essa é uma maneira de enfrentar o que não se entende. Mas é uma maneira desonesta e daninha, mesmo quando usada inadvertidamente, embora eu saiba que muita gente não se dá conta disso. Toda expressão linguística pode ser a causa que leva alguém a aderir a uma perspectiva, importante é que ela seja também uma razão, isto é, que preservemos o espaço público no qual as razões estão disponíveis para serem contestadas ou confirmadas. Enquanto nos atemos às intenções e às afinidades que partilhamos com outras pessoas que podem ver as coisas como nós vemos, oferecemos pouco ou nada ao mundo, e só somos capazes de mobilizar aqueles que já partilham do nosso próprio ponto de vista. (Escrevi sobre tática semelhante quando comentei as estratégias de Diogo Mainardi)

*

Quem argumenta por intenções precisa quase sempre do tribunal de seus pares. E não importa a que tipo de grupo a pessoa pertença: liberais, esquerdistas, fascistas, ateístas, religiosos, etc, etc. É reconfortante argumentar para quem tende a concordar com você. Esses tribunais não estão comprometidos com a verdade (ou mesmo com o sentido), mas apenas com a manutenção e exercício do poder que eles representam. O poder de sentenciar a intenção do outro.

Intenções são elementos importantes em tribunais morais ou jurídicos, mas não em ciência ou filosofia*. O que não significa que eles não sejam usados aí, provavelemente são. Em filosofia deve haver casos em que filósofos supõem intenções de outros pensadores a fim de denunciar uma coisa ou outra, mas mesmo nesse casos a intenção não é senão elemento secundário e acessório. No Direito ou na Moral, ao contrário. Decidir sobre as intenções de alguém é decidir se se deve ou não responsabilizá-lo por algo. Por isso não raras vezes vemos, dentre as pessoas preocupadas em julgar intenções, a formação de grupos de pessoas (podem ser duas ou três pessoas até grupos inteiros) nos quais um certo juízo é comum. Assim elas se fortalecem umas às outras. Mas esse é exatamente o contrário do propósito científico (e retórico, no sentido antigo, quase perdido) de ampliação da auditório (e da anuência a uma tese) e do esforço de argumentar para uma pretensa audiência universal. Julgar intenções é uma prática comum e necessária em parte da nossa vida cotidiana, no entanto, quando se converte num instrumento argumentativo sistemático atrelado a tribunais já constituídos (grupos) pode se tornar a expressão de preguiça intelectual e conformismo (de pertencer a um grupo que apoia certas classes de juízos e ignorar os restantes).

* Eu posso imaginar que intenções sejam importantes em teorias estéticas e coisas do gênero. Mas trata-se de mostrar intenções e não inferi-las. O auditório pretendido é o universal, não um tribunal com poderes condenatórios. A diferença é sútil mas importante.

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