A importância da pedagogia para uma inteligência coletiva
Eu tenho formação para ser professor, em certo sentido esse era o futuro que eu esperava (ou sobre o qual não pensava, melhor dizendo), mas eu sou um professor terrível. E saber ensinar é a maior das dádivas e uma competência difícil de cultivar. Eu sofro do mal de quase todo o sujeito envolvido com IT, eu acho que sei explicar tudo que eu sei fazer. Explicar e ensinar não são tarefas fáceis, como pensam muitos fora das humanidades. É lugar comum elogiar a educação, mas são poucos os que se preocupam com a tarefa de ensinar, com o que significa ser professora, por exemplo. Quando a gente pensa que as coisas são fáceis, nós não as valorizamos. Matemática, física, é o tipo de coisa que para a maioria das pessoas acha difícil, mas e a pedagogia? — Ensinar? Ensinar é fácil!
“A educação é a questão mais importante de uma sociedade” diz alguém querendo se passar por um cidadão bom, preocupado pela sociedade (quantos bolsonaristas vocês conhecem que são assim?). E ainda assim, essa mesma pessoa poderia pensar que a educação é coisa simples, que a vida dos professores é fácil, poderia defender repressão policial em greves e manifestações por melhores salários e condições de trabalho. Falar da importância da educação não significa que você se importa com educação, muito menos que tenha perdido algum tempo da sua vida pensando nisso ou trabalhado com atenção e empenho tentando ensinar qualquer coisa a outros seres humanos. Afirmar a importância da educação é como dizer-se cristão, é algo que se pode dizer sem que isso implique nenhuma prática, nenhum ato ou ação real no mundo em particular, ao contrário, todas as ações e palavras parecem igualmente compatíveis com ser cristão (defender estupro, e.g.) ou ser alguém que se diz preocupado com a educação (defender repressão policial a professores, por exemplo). A hipocrisia é a capacidade que algumas pessoas têm de dizer coisas e agir de uma maneira completamente diferente do que elas dizem.
A importância do ensino e da ideia de educação não é institucional, não se reduz ao processo de emissão e aquisição de títulos e graus de educação e tudo que isso representa para a economia e para a sociedade. O que realmente importa no ensino é esse “olhar para o outro” que é preciso criar se e quando estamos de fato empenhados em transmitir algo a outro ser humano. Não é um simples seguir regras, mas um inventá-las — como nos ensina o filme “The Wild Robot“, ao discutir a maternidade, fantasiando sobre um androide (um ser determinado) que se torna capaz de inventar e criar o significado de ser mãe. (Ainda quero muito escrever sobre o filme!) Enfim, educar não é seguir regras, mas criá-las ao tentar estabelecer uma conexão com outro ser humano, nessa rede peer-to-peer que é a humanidade.
As pessoas que não são meros hipócritas falando o que os outros querem ouvir, as que verdadeiramente se importam com educação, se tornam elas mesmas professores e professoras. Há pessoas que querem ter filhos para poder educar alguém como se deve. É uma tendência pouco consciente, mas muito comum. O significado social da educação humana é o maior possível, porque inteligência só é algo puramente individual no framework conceitual dominante: liberal e individualista. Para os marcos de pensamento da esquerda (não progressista) e para os pensamentos coletivistas que precedem a esquerda, a inteligência é coletiva. Não por outra razão se atribui ao alquimista Isaac Newton a ideia de que a sua revolucionária visão sobre a natureza se deve ao fato de estar nos ombros de gigantes — a gente pode consultar Michael Tomasello sobre isso também. Quanto mais entendemos a importância da colaboração para a inteligência humana, mais difícil é desempenhar o papel de competidor (com IQ alto, maior que o dos outros, portanto superior). Quanto mais entendemos a importância da colaboração para a inteligência humana, mais importância ganha a educação e questão fundamental de “como ensinar”, como elevar os outros e mantê-los todos num mesmo nível (uma sociedade contra a especialização).
Idealmente, uma sociedade que de fato valoriza a educação seria uma sociedade de professores, onde todo mundo conscientemente ensina e quer saber ensinar: todo mundo tem paciência, cuidado e atenção ao que os outros querem aprender. As pessoas nessa sociedade estariam conscientemente dispostas a ensinar o que sabem, e a aprender o que o outros têm a ensinar. E cada um dá o que pode, ensina o que pode: quem ensina a fazer uma empanada gallega é tão indispensável quanto quem ensinar álgebra linear.
Falta muito para que essa sociedade efetivamente exista, mas estamos menos longe do que se poderia imaginar. E para constatar isso basta buscar no Youtube um tutorial sobre qualquer assunto que queiramos aprender. Desde aprender a programar, até aprender a fazer uma empanada gallega. Sempre e cada vez mais encontraremos pessoas ensinando a fazer de tudo na internet. Como eu disse antes, nem todo mundo que sabe fazer sabe também ensinar, às vezes é claro e irritante o menosprezo com que as pessoas que tendem às ciências exatas tratam a ideia e a prática de ensino. Mas mesmo um tutorial mal feito documenta uma das coisas mais lindas que a internet pode nos oferecer, o genuíno impulso de compartilhar, impulso que está em sintonia com essa concepção de inteligência não individual. O impulso de compartilhar é uma pulsão da inteligência coletiva que nos impele a tratar os produtos da inteligência humana não como bens individuais, propriedades que é preciso possuir e guardar para si, mas como dádivas coletivas que é preciso espalhar o máximo possível, para o maior quantidade de gente possível. Daí a vontade de compartilhar, e de ensinar.
Se algum dia nossa vontade de compartilhar se dá conta de que o amor pela pedagogia é um aliado desse impulso da inteligência (coletiva), estaremos ainda mais perto dessa sociedade de professores, que valoriza a educação e que faz do elevar outros seres humanos (e ser elevado por eles, quem quer que sejam eles), a mais desejável de todas as competências, a mais sociável das virtudes.
PS. Essa é a virtude ainda inconsciente da sociedade digital, do software livre e do conhecimento livre, da pirataria, e de tantas outras ideias ainda restringidas ao mundo dos nerds. Parte da ética cosmopolita e relativista.