A graça do Gorila

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Um gorila se equilibrando sobre uma corda

A imagem de um Gorila não me vem à cabeça se eu penso a ideia de graça, mas pode ser que eu seja uma exceção. O que me ocorre são expressões culturais de graça, como uma dançarina, uma bailarina. Não que alguém pense muito em graça, mas pra mim a imagem de uma dançarina seria uma boa representação se eu quisesse ilustrar essa ideia.

E, no entanto, o gorila tem graça, os gorilas são animais verdadeiramente extraordinários e cheios de graça. Carregar todo aquele peso pra cima e pra baixo com tamanha desenvoltura deve exigir um coração forte. Pelo visto não é tão fácil quanto eu pensei achar a foto do coração de um gorila. Mas pelo menos eu fiquei sabendo que o coração dos gorilas é mais ou menos como o nosso. É uma boa notícia porque agora podemos aspirar a ter o coração de um gorila.

Não é fácil ser grande e gracioso. O elefante, a girafa, o urso, o rinoceronte  alguns dos grandes animais que me ocorre lembrar  não são exatamente animais graciosos. Só a baleia conserva uma graça sem igual, mas seu meio é outro. Quando as baleias encalham seus orgãos internos são esmagados pelo peso do seu próprio corpo. O meio aéreo é duro, exige uma força descomunal para manter o equilíbrio, e uma vitalidade transbordante, especialmente quando se pesa mais de 150 kg. O que não significa que não seja preciso uma força colossal para fazer tudo que as baleias fazem e com a imensa sensibilidade que elas demonstram em relação ao seu entorno.

Uma propulsão como essa é uma amostra impressionante de força e uma experiência que pouca gente teve a oportunidade de presenciar. E difícil de esquecer. A força dos animais, sua graça e sua presença são aspectos que nós, gente urbana, experimentamos apenas por meio da pálida representação dos filmes e documentários. Se vivêssemos constantemente na presença da força dos animais teríamos outra relação com a natureza e o meio natural. Mas o que fizemos foi nos fechar em nossa cultura humana, restringimos os animais ao desrespeitoso papel de companhia doméstica ou de simples matéria de consumo, além de mercantilizar as interações com os animais selvagens (Baudrillard tem um comentário sobre os simulacros dos zoológicos, salvo engano). Ninguém aprende com quem não pode respeitar. A suposta superioridade humana sobre os outros animais nos fechou a tudo que poderíamos aprender com eles. E não é a toa que o racismo e o elitismo tem em comum o fato de sempre elegerem animais como representação do que eles abominam: eles abominam tudo aquilo que não consideram a representação do evoluído e civilizado, portanto, tudo que julgam primitivo e inferior. Mas eu nunca soube de um racista ou de um elitista que não fosse alguém essencialmente pequeno. Alguém cuja presença em nenhuma circunstância da vida chegou a ser graciosa. Como um… (e a vontade de usar um animal como uma representação do que eu quero dizer), nada que se compare à majestade de certos animais.

A dança é um dos momentos em que nós, os desajeitados e indefesos humanos, podemos também participar da graça (para explorar a polisemia da palavra). Participar da força do mundo. Há muitos exemplos da graciosidade da dança, mas como eu gosto do cinema, minha sugestão é um pedaço do filme Suspiria. Nunca assisti o filme original de Dario Argento, mas a versão de 2018 de Luca Guadagnino, com Tilda Swinton e Dakota Johnson, me tem cativo. É um filme profundamente sensual e místico. Eu gosto de muitas cenas desse filme, a que selecionei abaixo interessa justo porque tangencia a ideia de equilíbrio e a sua estreita relação com a dança. O caráter holístico da dança, seu entrelaçamento aos múltiplos fatores que se conectam ao meio (a presença dos outros dançarinos, a força da gravidade, etc.), se apresenta em dois momentos nessa cena: discursivamente, na fala da bruxa maravilhosamente interpretada por Tilda Swinton e performaticamente, no modo como a dançarina interpretada por Dakota Johnson justifica sua preferência performática exibindo a naturalidade dos seus movimentos como se eles fossem necessários e não meras opções. Embora o discurso da personagem de Tilda seja uma moderada repressão à impetuosidade da preferência da dançarina, nem mesmo ela deixa de se surpreender com a sua força natural e espontânea. Aqui, como em muitas cenas do filme, é como se a dançarina estivesse encarnado uma força que se manifesta no seu corpo. Como se estivesse conectada à imensa rede de forças cósmicas e seus gestos não fossem mais que expressões naturais e incortonáveis da manifestação dessas forças.

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