O caráter não-científico do inconsciente

O

O pobre Freud matava e morria pelo científico. Até hoje, a crítica à cientificidade da psicanálise dói fundo, porque nada é mais importante para um pensamento do que ser científico. Depois que Natalia Pasternak publicou um livro em que desanca a psicanálise, o debate se reacendeu mais uma vez. Acho o debate sobre a cientificidade da psicanálise um tema dos mais chatos que existe, e totalmente anos 90, quando Alan Sokal publicou o polêmico livro Imposturas intelectuais. Supostamente, foram postos em xeque ali o pensamento de Lacan (a psicanálise em geral) e mesmo mesmo o de Bergson, entre outros. Deus me livre de ter minhas ideias confundidas com as dos divulgadores científicos (não importa se o divulgador é Natalia Pasternak, Carlos Orsi ou Neil deGrasse Tyson) ou dos denunciadores de pseudociências, mas eu vou me arriscar num terreno perigosamente próximo a tudo isso.

Se em 2024 alguém ainda acha que o estatuto de ciência de psicanálise precisa ser questionado, eu me permito acreditar que hoje poucas coisas são mais importantes do que cortar as asas de toda forma de cientificismo. A tecnosfera precisa ser detida, mas só podemos destruir como criadores. Portanto, meu ponto de vista já se situa nesse lugar onde ter um estatuto científico não é grande coisa. Eu já estou velho demais para ser jovem místico, mas meu pensamento é certamente subsumido pela categoria do jovem místico — como a Dominguinho e Wittgenstein, me interessa muito mais o que carece de explicação, e ética que criamos ante esta comum circunstância. Deixemos isso de lado por ora.

Dominguinhos, gênio da raça.

Não importa o estatuto científico da psicanálise e mesmo se a tratássemos como pseudo-ciência isso não a desabonaria. Mas discutir o estatuto científico da ideia de inconsciente pode ser interessante para fazer ver coisas importantes, para além da verdade. O inconsciente não é um fato, alguém pode até dizer que ele se reflete em fatos, e eu não vou negar isso, mas não pode dizer que ele pode ser constatado e verificado empiricamente (como quem constata, sei lá, um bosón de Higgs ou uma onda gravitacional). Aliás, em certo sentido a consciência não é fato tampouco, é preciso lembrar desse detalhe, e isso significa dizer que eu sou animista ou dualista, acredito em matéria, mas também no espírito. Existe a extensão (res extensa), mas também o espírito (res cogitans). ((Existir é um conceito problemático, eu sei.)) Os cientistas vão tentar de toda maneira falsear a minha proposição, mostrar como a consciência é um conjunto de sistemas envolvidos na materialidade do cérebro (fisicalismo). Eu não nego essa ideia, só não acho que a consciência se reduza a essa materialidade. Mas não é isso que eu quero discutir tampouco.

O que me interessa é sublinhar que o valor do conceito de inconsciente se deve justamente ao que ele tem de organizador, mais do que por sua pretensa objetividade. E que deveríamos lembrar, na circunstância da cega adesão à ciência em que nos encontramos, que o mundo não se reduz a uma coleção de fatos, e muito menos a linguagem. E a melhor maneira de mostrar como a linguagem é mais complexa que a pretensão de objetividade é citando uma longa nota de rodapé de Bento Prado Jr, que se encontra no artigo Hume, Freud, Skinner. Isso mesmo, uma nota de rodapé! Ela se estende por 4 páginas. Nessa nota Bento usa uma distinção de Kant para falar de Freud. O contexto é o seguinte, Bento sublinha a admiração de Skinner pelo “estatuto epistemológico da teoria do aparelho psicológico” de Freud. Ele escreve:

Na sua bela rudeza teórica, tão americana, o texto de Skinner (mesmo se não faz justiça à escrita laboriosa de Freud) estabelece uma nuance importante e maneja mais delicadamente a navalha acima referida. Amputemos a teoria do aparelho psíquico, já que esta não pode aspirar a qualquer forma de cientificidade e o resto — o Freud inteiro — permanece de pé, ao contrário do que sugere a perspectiva integrista de Taylor. Mas o próprio Freud — como já sugerimos* — não dizia outra coisa, ao descrever o estatuto epistemológico da teoria do aparelho psicológico! Naquela ocasião sublinhávamos, em nossa análise do último capítulo da Interpretação dos Sonhos, como era a prática da interpretação que fundava a “teoria” do aparelho — e não vice-versa —, dando à teoria, explicitamente, uma natureza mais “metafórica” do que propriamente científica.

Convém realçar que a ciência pura também se funda numa prática, e não numa normatividade abstrata e descarnada, num conjunto de regras e normas. O século XX é da pragmática, mas ainda não descobrimos isso — como não descobrimos ainda o que é viver num mundo quântico, pois o quântico põe em apuros o realismo (científico ou filosófico). O século XX nos ensinou essa lição, e eu deixo aqui como dogma essa constatação. Mas bem, o que importa é que a partir desse comentário Bento interpreta as mudanças no pensamento de Freud usando a distinção kantiana entre constituição e regulação como modo de esclarecer o estatuto teórico e científico da psicologia freudiana. É nada menos que brilhante a simplicidade e a clareza com que algo tão complicado é apresentado. Ele começa falando do uso constitutivo de um conceito:

Diz-se de um uso constitutivo do conceito, quando ele atinge uma determinação positiva da experiência que lhe dá a característica de objeto, no elemento da universalidade.

As chaves aqui são positividade e universalidade de um objeto que se constitui por meio de uma ciência, assim se funda a possibilidade do conhecimento (de qualquer objecto). Depois ele passa à ideia de regulação.

A idéia de regulação implica na significação de uma orientação justa do pensamento, que não chega todavia a configurar um conhecimento, no sentido forte da palavra — como plena determinação de um objeto. A idéia de finalidade, por exemplo, no campo dos fenômenos da vida, é para Kant, reguladora nesse sentido: ela é dotada de significação e de uma certa eficácia, mas não consiste em conhecimento propriamente dito e não constitui uma objetividade ao lado da objetividade irrecusável da física e da mecãnica. O que a idéia de regulação torna possivel é a idéia de uma compreensão da experiência que não se traduz em conhecimento efetivo, que não determina qualquer forma de objetividade.

Brilhante! Entra aí a ideia de finalidade, de teleologia, como exemplo de um uso conceitual importante, que não se reduz à mera questão da objetividade. Não por acaso, “materialistas” importantes como Daniel Dennett falam de competência sem compreensão. Como cupins podem criar ninhos que parecem catedrais, sem que haja nenhuma força articuladora, nenhuma consciência e nenhum dimensão intencional que dirija seu trabalho. É sumamente importante, para os críticos do animismo e do mentalismo, reduzir o campo do intencional às coordenadas de algum espaço lógico-normativo cujas regras ainda não foram dominadas (conhecidas).

Uma visão da linguagem e da intencionalidade diferente do fisicalismo dos materialistas leva a pretensão de determinar da ciência pra bancarrota, porque ela diria: “a vontade é irredutível” a qualquer objetividade. Em certo sentido, não é isso que Peter Strawson está discutindo quando fala de liberdade? Uma vez abandonado o propósito de provar que o mundo se reduz a causas e efeitos, estamos livres para usar os conceitos de maneira criativa, como Freud fez, ainda que mesmo assim a gente anseie pela chancela científica. Só compreendendo a necessidade de usos conceituais não meramente constitutivos podemos aprender a reincorporar a política, a arte, como elementos simbólicos articulados aos usos da linguagem que consideramos imprescindíveis. Só assim podemos compreender em que medida precisamos não apenas de ferramentas objetivas, mas de recursos simbólicos não objetivos que instauram visões de mundo e fazem ver (criam) fatos e sentidos antes invisíveis. Quando acontecer de abandonarmos a pretensão determinística dominante na ciência (a indeterminação no seio da ciência do século XX é o caminho), a linguagem será então não um mero argumento, cálculo e engenharia, nem instrumento e tecnologia, mas (o feitiço || o encanto) com as quais construiremos entre nós uma confluência — essa coisa que mais parece uma consciência coletiva ou uma psicologia de massas.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos