Ainda nos resta muito tempo antes que possamos dizer que vencemos o fascismo e tudo que ele representa. Vencer o fascismo significa superar as condições que o fazem medrar, que o alimentam e o fazem crescer dentro do corpo social. E uma das razões por que é tão difícil extirpar o fascismo se mostra na ética bolsonarista. Os bolsonaristas, como exemplares de um gênero do fascismo, empunham com o orgulho um tipo de sabedoria, aquela que diz que toda a desconfiança entre seres humanos está plenamente justificada.
Há um tipo muito comum de ser humano que está sempre reunindo razões para não acreditar nos outros, que faz desse reservatório de desconfiança não um mero conhecimento acumulado por experiência, mas uma ética e uma sabedoria. Uma sabedoria a ser não apenas protegida, mas divulgada e defendida como se estivéssemos sempre diante do perigo iminente de esquecer algo muito importante. É essa ética, essa sabedoria do fascismo aquilo que os bolsonaristas e os fascistas de maneira geral têm de mais forte, porque é profundamente atraente. É a sabedoria do ressentimento, que a maioria de nós está sempre tão disposta a reconhecer, pretensamente por prudência — mas em realidade apenas por medo. O medo e a desconfiança são os alicerces da ética fascista e a base do seu inegável sucesso!
Como responder a isso? Como responder à lembrança e à sugestão de que devemos desconfiar uns dos outros? Não se trata apenas de contrapor casos, de dar motivos para confiar e ilustrar circunstâncias diferentes. O medo está sempre justificado, não há o que possamos fazer, não há como vencê-lo no terreno do discurso e da proposicionalidade.
É surpreendente constatar que no centro de uma das histórias principais da Bíblia esteja um fratricídio, o assassinato de um irmão por outro irmão. A história de Caim e Abel tem algo de profundamente perturbador e, ainda assim, ela está perfeitamente encaixada na nossa vida, de tal sorte que parece perder o status de tabu. É como se fosse o abominável familiar, que nós toleramos por massificação, efeito semelhante o que acontece com a obra de arte, conforme nos conta Walter Benjamin. Mas o que há de tão perturbador na história do assassinato de Abel? Para mim, o mais perturbador é constatar que já no início do livro a própria ideia de fraternidade é lançada por terra, ou danificada, e a força simbólica dos laços de sangue (tão importante para o grupo conservador de onde costumam sair os fascistas) seja em certo sentido posta em questão.
O que nos sobra quando a desconfiança contamina até mesmo os laços de sangue? A história de Caim e Abel é uma versão mais crua e hardcore de Sangue Negro (There will be blood), ou se você quiser, Sangue negro é uma versão suavizada da história de Caim e Abel. O que nos sobra uma vez que a desconfiança contamina os laços de sangue são os outros, os estranhos, os desconhecidos, os estrangeiros, os bárbaros — os Outros, a quem devemos matar por serem radicalmente diferentes de nós.
Parece imprescindível, para escapar ao fascismo, forjar outra ideia de fraternidade, uma ideia que eu chamo de Fraternidade de Caim. A fraternidade de Caim é a ideia de um irmanamento que não é bobo ou ingênuo sobre os perigos representados pelos outros (como conservadores acusam a esquerda), mas que nem por isso deixa que o fel da desconfiança consuma seu coração. É a prática de amar, apesar dos defeitos, apesar de tudo de terrível que podemos ser, e de reconhecer, como Thoreau, que não há nenhum homem pior que ele mesmo, que não há nenhum ser humano pior do que nós mesmos. (É preciso amar Caim e sua força violenta, assassina, destrutiva, reconciliar o amor e a violência que temos em nós.)
Pensando melhor, não é a ideia da fraternidade de Caim que precisamos forjar, mas uma prática, uma ética, um modo de agir natural e espontâneo, só assim podemos reconciliar a bondade com algo que se deixa passar por ingenuidade aos olhos dos que idolatram a desconfiança como forma de sabedoria, só assim poderemos exibir em nossas ações uma confiança que os fascistas dirão cega, uma confiança que os fascistas, escandalizados, alertarão que está em iminência de ser traída — e de ter as falsas razões que a fundamentam reveladas.
No mundo das ideias, na ficção, a fraternidade de Caim já está presente na Casa da Farinha, em Viva o Povo Brasileiro, nessa sabedoria que a fervente e generosa inteligência de João Ubaldo soube realçar. Quem sabe um dia possamos ver isso também na prática, quando soubermos aprender com nós mesmos, com a nossa história e a história dos nossos povos, quando sentirmos que também temos coisas que ensinar aos civilizados, aos superiores, à Metrópole.