Um pensamento me acordou!

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Um pensamento me acordou. Literalmente, eu juro! Ele veio e eu fiquei com medo de perdê-lo, e despertei. Não importa se o pensamento tem valor ou não, o que importa é que algo tão etéreo quanto um pensamento foi capaz de despertar meu corpo, minha consciência, acender toda a máquina, apertar o botão ON. Isso diz algo sobre o meu sono, meu ritmo. Sobre o meu não conseguir estar inteiramente desconectado do mundo. E por acaso o pensamento que me veio tem a ver com esse estar-sujeito-a-ser-despertado por um pensamento. (— Por acaso?! Cada um acredita no que quiser!). Aquilo que me despertou foi um parágrafo de Nietzsche, lembrei que o que era dito ali guardava relação com a ideia de ritmo. Ele falava particularmente de excitação nervosa. O parágrafo bem poderia ser o estímulo que levou Foucault o escrever a volume da História da Sexualidade chamado O uso dos prazeres. E mais particularmente sobre a pederastia. É um belo comentário. Nietzsche diz ali que na sociedade grega o que cabia às mulheres era cuidar dos seus corpos, ser o receptáculo do gênio grego, onde ele poderia se desenvolver umbilicalmente ligado à natureza, a “ilógica relação fundamental com todas as coisas“.

As mulheres não tinham outra tarefa senão produzir corpos belos e fortes, em que prosseguisse vivendo incólume o caráter do pai, a fim de combater a superexcitação nervosa que crescia rapidamente numa cultura tão desenvolvida. Isso manteve a civilização grega jovem por um período relativamente longo; pois nas mães gregas o gênio grego retornava sempre à natureza.

Nietzsche, Humano, demasiado humano § 259 (grifo meu)

O comentário de Nietzsche é fabuloso, antecipa e deixa ver brevemente o que Foucault expõe cuidadosa e detalhadamente em O uso dos prazeres, mas o que me interessa e o que me despertou é a ideia de uma superexcitação nervosa. A ideia de que à medida que uma cultura cresce e se complexifica, ela gera uma excitação nervosa que na sociedade grega encontrava o contrapeso de uma feminilidade compulsoriamente ligada à natureza. O que nós temos hoje? O que nos conecta de novo a um ritmo natural e nos sereniza?

Eu comecei a acessar internet em 1998, já faz 25 anos. Pouquíssimo tempo, em termos naturais! E desde lá, nesse curto intervalo de tempo, parece que tudo mudou. Simplesmente isso: tudo mudou! É muito pouco tempo para que as coisas mudem tão radicalmente, mas é como se não houvesse alternativa, como se esse fosse o único ritmo possível. Esse é o ritmo da economia dos nossos estados nacionais, eles precisam produzir para que tenhamos empregos, e se esse ritmo estoura os nossos miolos, para isso estão os psicólogos, os psiquiatras e suas drogas (como bem conta Christhian Dunker em Depressão solidária, sobre o neoliberalismo como padrão social). Aliás, psicologia é não poucas vezes normalização social, mesmo o amado Freud não deixou de receber críticas pelo seu perfil “normatizador”, Marcuse e Foucault o acusaram, sempre com o carinho que ele merece, claro.

Eu lembro de novo da Tradeoff Hypothesis, do que essa hipótese tem de ilustrativa e heurística. A aceleração da nossa vida nos últimos séculos, milênios, afetou nossa memória, o modo como nosso cérebro funciona. Mas isso aconteceu ao longo de séculos. Nas últimas décadas, especialmente a partir da sociedade digital, os estímulos tem crescido exponencialmente, e é como se comprimíssemos mudanças que aconteciam ao longo de séculos, num intervalo de décadas. E isso afeta nosso cérebro também. Em que momento estamos num ritmo mais sereno? A serenidade está organizada socialmente como férias, para os privilegiados que podem fazer com que esse intervalo de tempo produza neles de fato alguma serenidade efêmera. (Por isso mesmo, eu acho que Triangle of Sadness deveria levar o Oscar esse ano, e com méritos!)

Eu tenho essa impressão constante de que não consigo me desconectar, que meu sono nunca é pleno, que meu cérebro não para de funcionar totalmente, ou pelo menos que não descansa como deveria. Essa profusão de estímulos certamente dificulta não apenas a concentração, o que já é bem sabido, mas qualquer estado semelhante ao de serenidade. É bem verdade que eu tenho algo de louco, mas no final, suponho que não seja o único que briga e se revolta contra a sua própria tendência a vender tão barato a sua atenção, num mercado tão valioso quanto o mercado da atenção.


No belíssimo filme “Three Thousand Years of Longing” (Era uma vez um gênio), o ritmo e os estímulos do nosso tempo são tematizados pelas constantes interferências sentidas pelo djinn interpretado por Idris Elba, quando ele se muda para a cidade.

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