Uma perspectiva sobre o poder e a propriedade
Invento e proponho um faz-de-contas bobo, uma ficção, uma fantasia, algo não real, não verdadeiro, você só precisa entender o sentido do que eu vou escrever, não importa que não seja verdade.
<ficção>
Vamos imaginar que toda pessoa tem algo que podemos chamar de super-poder. Não que todos tenham um poder singular, não!, muitos poderes se repetem, muitas pessoas tem o mesmo poder, e algumas tem muitos poderes. Mas ninguém tem todos os poderes que existem. Cada pessoa, no entanto, tem um super-poder universal, comum a todos os seres humanos, o poder de ceder voluntariamente — e apenas voluntariamente — seu poder a outra pessoa.
Agora vamos imaginar que você sabe pintar, ou programar, ou conversar com outros seres humanos, ou que você toca trombone de vara como Rita Payés1, e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!
A primeira coisa que me vem a cabeça quando penso nessa ficção é: se tivéssemos de fato esses poderes nós criaríamos um circuito livre de transmissão de poderes ou nós mercantilizaríamos nossas competências? Eu acho que nós criaríamos um mercado e venderíamos os nossos super-poderes e que essa seria a forma preferencial de transmissão de super-poderes, dada a força e a influência do capitalismo na vida e na visão humana — constatar isso me dá uma enorme tristeza! </ficção>
Por outro lado, no mundo real e não fictício, na chamada realidade (para quem acredita nela), independente do modo como cada um responde a essa sandice que eu inventei, a cultura de desenvolvimento de software tem uma atitude claramente anticapitalista diante de uma situação parecida a que eu criei.
A ideia de (software livre || código aberto) não é de nenhum modo uma ideologia comunista e na verdade aplicações open source estruturam todo o rentabilíssimo mercado de clouding computing e o futuro da transição digital; não por outra razão, e eu não canso de repetir, a IBM comprou a Red Hat, qualquer sistema Windows hoje em dia pode abrigar um subsystem Linux dentro de si e a Azure depende fundamentalmente do Linux. E pra se ter uma ideia da importância estrutural do open-source pra economia de uma sociedade digital, eu vou citar apenas quatro projetos open-source importantíssimos para toda infra-estrutura de clouding e Big Data, vinculados a uma única entidade, a Apache Foundation: Apache HTTP server (naturalmente), Apache Hadoop e Apache Spark, Apache Kafka.
A cultura de desenvolvimento de software está visceralmente articulada ao sistema capitalista, é verdade, mas é um mundo onde a propriedade privada não entra. Tudo é de todos e o fato de que tudo seja de todo mundo é decisivo pra que os softwares open-source sejam o que são hoje, um paradigma de desenvolvimento e uma certa atitude diante do código que se escreve e das inteligências que terão acesso a esse código. Nada, absolutamente nada, do que o poderoso mercado e o Capital podem comprar ou fabricar consegue superar a força e a magnitude do trabalho colaborativo. (Como se nos faltasse provas de que a colaboração é o melhor) Não falta dinheiro a Bill Gates para contratar os melhores engenheiros de software do mercado.. e durante muito tempo ele certamente teve os melhores que o dinheiro pode comprar. Mas como superar a força de uma coletividade voluntária quase-anônima e torrencial? (Mesmo que apenas uma parcela dos desenvolvedores do kernel Linux seja efetivamente voluntária, não é essa a questão)
A força quase inconsciente e inadvertida dessa colaboração — que tem alimentado na internet uma vontade de ensinar cada vez mais abundante e alegre, e de disponibilizar ferramentas para os outros gratuitamente — me faz sonhar e imaginar o que poderíamos fazer se, ao invés de criar um mercado, nós resolvêssemos (distribuir || transmitir || repassar) nossos super-poderes e nossas competências de forma igualmente aberta (não mercantilizada).. tendo a amizade como o elemento que nesse sistema não-mercantil cumpre função semelhante à do dinheiro no sistema mercantil.
Juro, meu coração vagabundo transborda e não aguenta pensar nessas coisas!
1 “Vamos supor agora que você sabe (pintar || programar || conversar com outros seres humanos || que você toca trombone de vara como Rita Payés)
e que você é capaz de transmitir essa competência, esse saber fazer, a outra pessoa, como quem passa um arquivo num pendrive. Imagine que isso fosse possível!”
Eu gosto muito da lógica booleana e ela é muito importante na computação, incluir a estranheza da sintaxe de um cálculo de booleanos no texto é um recurso enfático (inspirado por && que me faz lembrar) a necessidade, comum a Wittgenstein e Foucault, de repetir suas ideias uma e outra vez, como recurso enfático, mas, sobretudo, como abordagem pedagógica e modo peculiar de edição e apresentação do pensamento.
Tudo isso me faz lembrar também o micro-conto El mundo, de Eduardo Galeano, que está no Libro de los abrazos.
Un hombre del pueblo de Neguá, en la costa de Colombia, pudo subir al alto cielo.
A la vuelta contó. Dijo que había contemplado desde arriba, la vida humana.
Y dijo que somos un mar de fueguitos.
—El mundo es eso —reveló— un montón de gente, un mar de fueguitos.
Cada persona brilla con luz propia entre todas las demás.
No hay dos fuegos iguales. Hay fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco que llena el aire de chispas. Algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman; pero otros arden la vida con tanta pasión que no se puede mirarlos sin parpadear, y quien se acerca se enciende.