Salvador: terra sem lei, deserto político

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Faz algum tempo eu registrei o propósito de Geddel de se afirmar como o novo cacique da Bahia. As práticas lembravam e muito o modus operandi carlista. Na mesma ocasião, observei que parte desse cenário se arranjava em função das ambições nacionais do PT, ambições cegas e intransigentes o bastante para alienar um dos seus mais fiés redutos eleitorais às mesmas práticas e forças que permitiram o completo abandono da cidade.

Pois bem, recentemente o professor Paulo Fábio concedeu entrevista em que salienta os mesmos pontos — claro, com domínio significativamente maior da história e das tramas em que se envolve Salvador desde o final dos anos 70. A entrevista é imperdível e serve de trampolim às minhas considerações sobre um dos aspectos do sintomático esvaziamento da política soteropolitana.

Primeiro cabe reiterar o mascateamento da cidade, a subordinação dos seus interesses à mera barganha política que calcula ganhos na esfera estadual e federal, sem o claro e aprofundado olhar sobre as necessidades e respostas imperiosas que há tempos Salvador exige. Quero me deter num ponto específico, que se desdobra em outros e invade uma rede de interesses estratégicos: as questões vinculadas ao uso do espaço urbano. Desde antes da vergonhosa aprovação do PDDU já se desenhava o arranjo político que, a revelia das necessidades de Salvador, orquestrava um pacto de interesses. (É uma pena que eu não tenha registrado as fotos daquele ano — e, aliás, lamento também não ter registrado em fotos, como pretendia, a explosão imobiliária que hoje tem instalado canteiro de obras em todos os cantos da cidade, especialmente na orla). Naquele momento, o primeiro grande edifício construído em frente à praia já ensaiava seus traços finais, ainda que a elevação do gabarito estivesse em discussão. Surpreendentemente, a diretriz foi aprovada e pouco tempo depois a orla foi invadida por um sem número de projetos e construções que se valiam das novas regras.

Mesmo depois de instituído o PDDU, as obras em Salvador cresceram sem qualquer visível constrangimento, sem ordenamento prévio. Quem pode dizer, ao contemplar a Parelela ou a avenida Tancredo Neves, que as obras ali instaladas passaram por um rigoroso processo de licenciamento de qualquer natureza para avaliar os efeitos da sua presença. Basta um aspecto para tornar nítida a falta de controle: o impacto dos novos edifícios para o trânsito já comprometido nessas vias é inaceitável. Nenhuma avaliação responsável permitiria que novas estruturas do porte das que estão em via de conclusão fossem realizadas, lançando aquele já combalido espaço viário num ponto de completa e irreversível saturação. Não se trata tão somente de apontar a ausência de dispositivos eficientes de controle do crescimento da cidade, de subordinação dos cegos ímpetos imobiliários aos moldes de um projeto urbano responsável e sustentável, mas a falta também de uma coordenação entre políticas de controle e o papel organizador que deveria ser desempenhado pela administração pública municipal. Um Plano Diretor funcional deve organizar e condicionar as ações públicas no sentido de promover, quando necessário, o desenvolvimento estratégico de certas áreas, no intuito de retirar das mãos de grupos privados a iniciativa pela escolha dos pontos de crescimento da cidade. O que ora se vê é o controle exclusivo do crescimento sob domínio dos mesmos setores que lançaram Salvador e sua estrutura na condição calamitosa em que se encontra. Setores, curiosamente, historicamente ligados a grupos políticos veementemente combatidos.

Falta ainda uma coordenação das ações visando o ordenamento do espaço urbano às políticas (também incipientes e insuficientes) de transporte público — demasiado tímidas, para dizer o mínimo, diante do desafio gigantesco posto pela condição urbana de Salvador. Diante desse desafio, uma ação urgente e abrangente deveria incluir uma articulação entre estado e município no intuito de promover uma mudança cultural — via educação — da mentalidade dos baianos em relação ao uso de automóveis e ao transporte público. Claro, um movimento semelhante é vazio se não acompanhado de investimento substancial na melhoria do transporte público, na elaboração de alternativas viáveis e eficientes aos poucos meios de que dispomos. É preciso pensar um novo modelo de mobilidade urbana que amplie o número de opções e alternativas.

O que enxergamos no momento atual é algo inteiramente outro: a continuidade de um modelo atrasado, de inspiração carlista, que explora cegamente os recursos da cidade, deixando os soteropolitanos espremidos entre as sendas e caminhos que a sorte lhes destinou. O que resta hoje é a falta de planejamento que em curtíssimo prazo comprometerá a viabilidade econômica da cidade, impondo gargalos que deveriam ser evitados especialmente em função da progressiva expansão da economia ligada a serviços — em detrimento da economia industrial, em retração. Embora Salvador e Brasil ainda careçam de um desenvolvimento industrial significativo, ao meu ver, a área de serviços sofre mais diretamente com o colapso e paralisia do trânsito na cidade. Sem falar no Turismo, que nem mesmo precisa ser detalhado.

Curioso que tudo isso se dê à sombra da gestão do PT — que durante os últimos 5 anos empenhou-se quase exclusivamente em tentar banir o carlismo do território baiano. As raízes do poder carlista ainda estão entranhadas profundamente da organização do poder na Bahia, provocando estragos e esperando que qualquer deslize da situação alimente a força de uma oposição que não precisará de muito esforço para se recompor, na medida em que já conta com respaldo importante de forças ainda poderosas.

É preciso que o poder público enfrente o poder econômico de certos setores e lhes imponha seu papel regulador e organizador, do contrário estaremos condenados ao que julgarem conveniente os interesses privados. Até hoje a história não registrou a convergência dos interesses públicos e privados, ao contrário, ela está referta de mecanismos por meio dos quais os homens tentam equacionar as partes, fazendo, na maioria dos casos, prevalecer o interesse público. A política é o mais destacado desses mecanismos e para que escapemos à trágica sorte contrária, os atores políticos baianos devem preencher o vácuo político que tem hoje permitido que setor privado assuma o papel de legislador e organizador do espaço urbano da cidade. O quanto antes — e antes que seja tarde demais.

2 comentários

  • òtima reflexão, porém acredito que esse mecanismo de controle social o qual deveria existir também foi muito bem criada e mantida pelo poder público, que é a ignorância da maioria da população. Infelizmente está difícl da sociedade se mobilizar para exigir responsabilidade e respeito dos poderes municipal e estadual da nossa capital. Mas vale a pena a luz acesa por pessoas como vc.

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